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segunda-feira, 18 de março de 2013

Suma Verborrágica


Dedicado a Ronald Robson

S. Tomás de Aquino é um dos grandes pensadores da história da humanidade; alguém cuja obra até hoje atrai novos leitores. Sendo assim, penso que é dever nosso tornar sua obra mais acessível ao público. Isso envolve não apenas traduzi-la como também, na medida do possível, adequá-la aos pressupostos e ao modo de filosofar dos estudantes da nova geração. Obra intelectual é coisa viva. Para que S. Tomás fale com maior eficácia aos leitores e autores deste e de outros nobres sites, algumas mudanças são necessárias.

Na maioria das vezes (foi o meu caso), o primeiro interesse do leitor de S. Tomás é pelas famosas Cinco Vias: as cinco provas da existência de Deus dadas na Suma Teológica, sua principal obra. Ora, mas então é possível provar que Deus existe? Como? Com o tempo, cada um encontra outros interesses; mas a porta de entrada mais comum é essa. Por isso resolvi, como passo inicial de meu projeto de trazer a alta filosofia de tempos pregressos ao nível mais evoluído dos estudantes atuais (não falo, evidentemente, dos pobres universitários e acadêmicos), começar minha tradução/atualização por aqui. Tenho certeza que ficará bem ao gosto e ao nível dos fregueses. E vou além: o resultado é superior ao original! Não falo só do estilo literário mais desenvolvido, única maneira de expressar o que S. Tomás tentava em vão com seu latim tosco, mas até mesmo do teor filosófico, que ficou mais profundo, e dá mostras de maior erudição, ao despir-se do tom de clubinho de debates que impregnava a obra do Doutor Angélico.

[A Suma Teológica tem uma estrutura bem simples, mas que talvez não seja familiar a todos. A cada artigo, Tomás propõe uma pergunta. Em seguida, ele dá alguns argumentos contrários à tese que ele quer defender, também chamados de objeções. Em seguida, ele dá um ou dois argumentos de autoridade em favor de sua tese. Depois disso, escreve sua própria resposta. Por fim, responde às objeções iniciais. Para dar ao leitor uma ideia da diferença entre apenas traduzir e traduzir atualizando, fiz uma tradução literal das objeções e do argumento em contrário; a parte modernizada começa com o "Respondo".]

***
Pergunta-se: Deus existe?

Objeção 1: Parece que Deus não existe; porque se de dois contrários, um for infinito, então o outro seria completamente destruído. Mas o termo “Deus” significa que Ele é bondade infinita. Se, portanto, Deus existisse, não haveria mal a ser descoberto; mas há mal no mundo. Portanto, Deus não existe.

Objeção 2: Além disso, é supérfluo supor que o que pode ser explicado por poucos princípios tenha sido produzido por muitos. Mas parece que tudo que vemos no mundo pode ser explicado por outros princípios, supondo que Deus não exista. Pois todas as coisas naturais podem ser reduzidas a um princípio, que é a natureza; e todas as coisas voluntárias podem ser reduzidas a um princípio que é a razão humana, ou a vontade. Portanto não há necessidade de se supor a existência de Deus.

Em sentido contrário, é dito da pessoa de Deus: “Eu sou Aquele que Sou.” (Ex. 3, 14)

Respondo:

Seria, ou, se não muito me engano, é, possível descrever inúmeras – conta o matuto, pelo menos cinco –, não bem argumentos, mas provas, acerca da existência, se é que tal a Ele com justiça se atribui, de Deus. À mente lúcida calha jazer-se contente, quiçá locupleta, saciada pela farta ceia da verdade ofertada em aprazível abundância, com o manjar mais simples, porém assaz substancioso (e aqui, decerto, chiará o apetite debiqueiro dos novos ricos sempre a beliscar finos joguetes lógicos e regalos silogísticos; hors d’oeuvres e sobremesas apetitosas, sem dúvida, que todavia não substituem o filé suculento a proceder-lhes na refeição do estudo), da fina percepção contida no espírito de nossa tão menosprezada tradição, essa madrinha idosa que, experimentada em anos sua astúcia sagaz, bem lá acerta seus sopapos no jovem rebelde – merecemo-nos nós, não nego! –, sem nunca deixar de galantear com mimos de toda sorte aos afilhados que lhe prestem a devida devoção. Pois bem: um problema como o da presença de Deus entre os entes dos quais se pode dizer que participam do conceito que engloba aquilo a que vulgarmente denominamos "existência", se não quiser apenas relar na crosta sem nunca penetrar o âmago intrínseco da ciência mesma (ignoremos, por ora, a redução a que os apóstolos da modernidade submeteram o termo), tem que ser remetido ao tino dessa senhora astuta para sua frutuosa resolução.

Como ia dizendo, esta antiga, idosa e velha anciã presta-nos imenso serviço se ao menos soubermos olhar aonde nos cabe e pedir como se deve. Se há um saber que nos é legado pela mão generosa da tradição, pois perdê-lo enseja um achatamento paulistano de horizontes, é o conhecimento claro, evidente, intrinsecamente certo, da existência mesma de “Deus”. É conveniente lembrar: em todos os tempos e lugares, o homem, onde quer que tenha fixado morada, tem exclamado “louvado seja Deus!”, ou, o que lhe é equivalente, “Deus do céu!”; ou ainda, em certos casos, “Ó meu Deus” (para atermo-nos à fina caracterologia de Rozensweig). A essas três, poder-se-iam ainda somar outras duas vias: "valha-me Deus" e a um tanto elíptica "ó Céus!".

Será preciso algo mais? Frente ao testemunho do senso comum bem formado, cuja verdade se impõe ao intelecto dócil sem necessidade de justificativas externas, sequer formular a pergunta já demonstra, de uma parte, que o aprumo intelectual de nossa “cultura” foi pras picas, e, de outra, a ruína que representa a ascensão da classe média brasileira, doidivanas como sói ser, em termos gnoseológicos.

Resposta à primeira objeção: Mas o que é isso? Deu-se à súcia burra o direito de opinar? Poderia eu, debalde, citar farta bibliografia, decerto não lida e ignorada por meu objetor, que desmonta a pífia “argumentação” contida nesse sofisma. A vasta obra de um Platão, de um Aristóteles, as Catilinas de um Cícero, a Adversus Haereses de um Irineu de Lyon. Um Lactâncio, um Orígenes, um Filostórgio, um Mons. Sanahuja. Ou, para ficarmos nos limites da língua pátria, um Mário Ferreira, um Vilém Flusser, um Nivaldo Cordeiro, um Sidney Silveira. Isso para não falar do oceano metafísico, que não obstante palpita segundo o pulso vivo da concretude mesma do real, de S. Agostinho, cuja obra é, de fato, dever moral ler antes de se meter a palpitar loquazmente sobre o que se ignora. Após teres lido esses e muitos outros nomes, daí talvez aceitarei tua crítica, que por enquanto não passa de ludo pueril.

Suspeito que serei acusado de faltar com as regras de higiene da razão pura por efetuar este trabalho de limpeza profilática. Rio-me cá, à sombra do buriti, deste semblante cheio de orgulho a esconder tamanha bananada argumentatória. Contento-me com a parca glória da formiga que conhece seu lugar (sem jamais desmerecer à cigarra!), e que é, afinal, quem remove o lixo do jardim para que ele fecunde os subsolos. Replico que, em meio aos urros macáquicos da logofasia nativa, o racional é expor a moléstia, e não elevá-la ao estatuto de uma pretensa saúde sui generis para com ela debater. Ademais, quedo-me em paz; sei que o reconhecimento ora sonegado virá, múltiplo, em eras futuras.

Resposta à segunda objeção: Ofende que a filosofia tenha sido tomada pelo palpite, que não basta ser apressado, como irresponsável. Eu, mero estudante, um deslumbrado alpinista frente ao monte inescalável, a contemplar a neve eternal que em seu alto cume reluz, ouso sorver d’água cristalina que do mesmo cume escorre. Pois bem: eis que penetra-me o reto - bem sei como o agüentei calado até agora - propósito de dialogar com esse puro espírito de patuléia, que não só não aparenta qualquer fiapo de vergonha, como porta soberbamente as vestes do orgulho. A imodéstia, o estreitamento da mente como virtude intelectual, o fetiche do conceito, a pobreza do pensamento que se traduz na indigência vernacular (donde se entende o tom de slogan ou, quando muito, telegrama); não é possível respirar em tal atmosfera sem adoentar-se – a falta que fazem os bons doutores! Ao cruento padecer de tal metástase, preferiria eu o retiro de uma rede e um trago da boa Pitu. Mas avante: há uma cultura a salvar!

Ofende ainda mais que carne de tão baixa qualidade venha empacotada em jornal velho; que se exprima filosofia de segunda com discurso que beire as raias do semi-analfabetismo que hoje se ensina nos cursos de Letras. Meu enfaroso interlocutor se assemelha, em sua ociosa burundanga, a um egresso da base de nossa pirâmide social que, sem dela ter levado a sapiência do povo simples (tendo provavelmente trocado a terra nordestina pelo nigérrimo cinza do império paulista) e incapaz de ascender à vera aristocracia do espírito das gentes, vê-se preso como num limbo, não dos inocentes mas dos culpados, sem saber ao certo se a sabedoria virá com o próximo diploma do curso de técnico de informática por correspondência, com o consórcio para a compra do automóvel particular, ou com a quitação das parcelas da quitinete – cuja única janela dá para o banheiro das empregadas domésticas do prédio ao lado – pela qual abandonou a brisa revigorante do Atlântico, incapaz de distingui-la dos fumos negros de Cubatão. Ou da boate Kiss.

Mas, todavia entretanto, num gesto caridoso para com meu semelhante entralhado por tal sucúbica rede, condescendo em partilhar o que, todos os sensatos concordarão, é argumento irrespondível, advindo da doutrina oral, e portanto superior, de Zenão. É-me forçoso reconhecer o rigor argumentativo de um autor que, todavia, é insuspeito de pertencer ao cartel dos conservadores nacionais. 

“É razoável honrar aos deuses. Não é razoável honrar ao que não existe. Portanto, os deuses existem.” 

À inteligência iluminada a evidência é preclara. Ao resto, aos novos ricos da paulistéia inculta que não se dobram à luz e confundem a própria confusão mental com rigor analítico, inquiro apenas: acaso lestes, do cabo ao rabo, o corpus grego e latino? Então não ouses, antes de sessenta anos de estudo, dar pitaco extemporâneo sobre o que passa muito acima de tua míope visada e de teu focinho. Limita-te às linhas de montagem; à filosofia basto eu!

***

[Conta o biógrafo que, depois de ditar esta resposta, S. Tomás almoçou seu cuxá costumeiro, retirou-se do mosteiro e foi deitar em sua rede, na qual cochilou por seis meses, plenamente satisfeito com a contribuição inestimável que acabara de dar à cultura universal. Sonhou, ao que parece, com a fama que sua obra decerto teria nos séculos vindouros. Findo o semestre de repouso, lá estava ele pronto para produzir mais uma obra-prima.] 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Contra Estatizantes: Respostas a Sidney Silveira - I

Leia a segunda parte aqui.

1. Introdução: o austro-libertarianismo católico

O mundo do catolicismo de viés mais tradicionalista e/ou conservador (aos não familiarizados, é bom saber que os dois termos significam coisas diferentes, mas que não serão relevantes para este texto) é marcado por algumas interessantes cisões. Uma delas é acerca da posição político-econômica. Por algum motivo, calhou de que importantes intelectuais do movimento austro-libertário americano sejam católicos tradicionalistas.

"Opa, pera lá! Austro-libertário? O que é isso e como faço para fugir dele?” Esse termo se refere a uma corrente do movimento libertário, provavelmente a principal, que une duas coisas: a defesa de uma ética libertária, ou seja, uma ética da não-iniciação de agressão absoluta ou quase absoluta, e a análise econômica austríaca. Essas duas vertentes nem sempre andaram juntas. Quem criou essa fusão que podemos chamar de austro-libertarianismo foi Murray Rothbard, que uniu a tradição libertária americana (de gente como Lysander Spooner, Albert Jay Nock e o jornalista H. L. Mencken) à análise econômica austríaca (de Mises, Hayek, etc.).

Como eu disse, o movimento austro-libertário tem marcante presença católica. Posso citar três nomes de peso: Lew Rockwell, Jeffrey Tucker e Thomas E. Woods Jr. Woods, em particular, chegou a publicar em 2002 o livro The Great Façade, um verdadeiro manifesto tradicionalista contrário às mudanças do Concílio Vaticano II; livro do qual ele hoje se distancia. Seu coautor, Christopher Ferrara, é atualmente inimigo jurado de Woods, e a causa da briga é, como não poderia deixar de ser, econômica.

É um tanto misterioso o porquê da aproximação dessas duas correntes (tradicionalismo católico e austro-libertarianismo). O século XX teve autores católicos bastante contrários a diversos aspectos do crescimento estatal, mas eles também viam com maus olhos, via de regra, a economia liberal e o capitalismo. Chesterton é um belo exemplo; seus livros abundam em tiradas contra o crescimento sem precedentes do Estado; mas ele também defendia um sistema econômico sui generis e bem pouco liberal. Tolkien se considerava um anarquista, mas imagino que o criador da bucólica Shire não fosse lá muito afeito à economia moderna (posso estar enganado).

Talvez o elo que ligue as correntes seja, novamente, Rothbard. Ele, embora, agnóstico, era amigo e discutia muito com o padre jesuíta James Sadowsky (1923-2012). Sadowski, pela influência de Rothbard, tornou-se libertário; e Rothbard, embora não tenha se convertido, absorveu de Sadowsky uma metafísica realista (em oposição, por exemplo, ao idealismo kantiano de Mises, seu professor) e um apreço pela tradição de pensamento moral católica. (Interessante aqui relembrar o debate de alto nível deles sobre o aborto, na forma de artigos; a crítica de Sadowsky ao argumento de Rothbard, que é próximo ao argumento canônico de Judith Jarvis Thomson, é uma das melhores que já li.)

Com efeito, Rothbard empreendeu uma campanha ativa de realinhamento da “escola austríaca” (entre aspas porque não se trata de uma instituição, mas de uma metodologia de análise; e da qual ninguém pode, estritamente falando, se dizer representante ou líder) com o pensamento continental católico, distanciando-se do Iluminismo escocês (essa campanha é visível em uma de suas obras-primas, An Austrian Perspective on the History of Economic Thought). Segundo a nova leitura (ignorada, por exemplo, por Mises e provavelmente por Menger, o pai da escola austríaca), o pensamento austríaco tem uma antiga linhagem que se inicia em Tomás de Aquino e floresce com os teólogos da escola de Salamanca (principalmente jesuítas mas também dominicanos) nos séculos XVI e XVII, e por meio deles chega a alguns autores franceses e irlandeses do século XVIII. 

Que os doutores de Salamanca tivessem um entendimento econômico muito avançado para sua época é um fato já bastante documentado; mas que exista essa linhagem entre eles e a escola austríaca, ou seja, que a influência deles em Carl Menger seja decisiva e mais importante que a dos clássicos escoceses e ingleses, é algo que, na minha opinião, ainda não foi devidamente provado. Mises (aluno de Bohm-Bawerk, que foi aluno de Menger), por exemplo, desconhecia essa linhagem, e via um contínuo entre a ciência que ele fazia e o que faziam os economistas clássicos a partir de Adam Smith.

Enfim, talvez o diálogo entre Sadowsky e Rothbard explique o apreço desse último pelo pensamento católico (apreço também visível no maior continuador de seu espírito, Hans-Hermann Hoppe, ateu; e ex-aluno de Habermas, just to keep things interesting), e isso explique por que outros católicos conservadores e tradicionalistas se juntaram a seu projeto político. Na falta de informações direto da fonte, essa tese me parece plausível. A tradição católica da lei e do direito natural, que não enxerga no Estado a origem da moral, é um possível ponto de partida para muitos católicos considerarem as afirmações liberais sobre economia e sociedade.

O fato, contudo, é que a maior parte do tradicionalismo católico jamais engoliu o libertarianismo e mesmo a defesa do livre mercado de maneira geral. Fieis à tradição de aliança entre Igreja e Estado absolutista, e desejosos de um mundo no qual outras religiões não possam ser propagadas e hereges sejam punidos pelo braço armado do Estado, e às vezes até mesmo de um forte controle estatal para erradicar o problema da usura, as ideias liberais causam-lhes tanta repulsa quanto alho a um vampiro. A economia, a sociedade e a teologia liberais são vistos como cabeças de uma só hidra, e o mundo não estará salvo enquanto esse monstro durar.

Muitos no Brasil foram influenciados por essa vertente católica do movimento libertário americano: eu mesmo me conto entre as pessoas que participam desse meio liberal e católico, tendo lido avidamente os autores americanos acima citados. A mesma simbiose entre libertarianismo austríaco e catolicismo conservador/tradicionalista é observada em participantes ativos desse pequeno mas crescente movimento: posso citar, por exemplo, o Prof. Ubiratan Iorio, Leandro Roque e Cristiano Chiocca.

Como é de se esperar, no tradicionalismo católico brasileiro também surgiu oposição ferrenha ao liberalismo em geral e à sua vertente econômica em particular. Um dos nomes dessa reação é Sidney Silveira, cujo popular blog Contra Impugnantes foi criado com o objetivo expresso de combater a “cultura liberal” e divulgar o pensamento de S. Tomás de Aquino. Refutações de Mises eram frequentes em seu site; hoje, ele tem se atido mais a S. Tomás que aos debates políticos e econômicos (ou melhor, filosóficos, pois é aí que ele procura enfrentar seus adversários); não imagino, contudo, que suas opiniões tenham mudado. 

Depois deste longo excurso introdutório, quero resgatar do esquecimento um desafio que ele lançou aos católicos liberais, ainda em 2008: seu quodlibet antiliberal. Irei responder aos dez pontos e mostrar os erros de seus posicionamentos e da crítica tradicionalista ao liberalismo em geral. Publicarei, a partir de amanhã (não sei se de uma vez ou em duas partes), minhas respostas, sempre tentando dar, ao leitor que vem de fora, uma ideia da relevância da questão e das possibilidades de posicionamento. Não usarei linguagem escolástica, pois considero um anacronismo injustificável, mas acredito que o fato de discutirmos objetiva e friamente dez afirmações já nos aproxima, em espírito, do que havia de melhor na universidade medieval.

Uma última clarificação antes de publicar as respostas: embora eu leia muito dos autores ditos austro-libertários, e use a análise austríaca sempre que penso em algum problema social, não sou um libertário. Isto é, não tenho a defesa da liberdade enquanto tal como um valor último, e não aceito a validade irrestrita do princípio de não-iniciação de agressão. Sou, isso sim, um católico que se pode dizer liberal: defendo a sociedade, a cultura e a economia liberais - e todas elas têm bases e implicações éticas - que Sidney abomina, bem como uma visão por vezes crítica a certos aspectos da história da Igreja e das doutrinas proclamadas ao longo dos séculos; por isso o debate é substancial. (Também vale notar que não defendo o indiferentismo religioso, o relativismo da Fé, leituras naturalistas da Bíblia, e outras coisas associadas ao liberalismo teológico.)

Segunda parte aqui.

domingo, 18 de novembro de 2012

Ler e Filosofar


Poucos discordariam de que é útil, e talvez necessário – filosoficamente –, estudar os filósofos do passado. É irrelevante para um físico ler Newton; e imprescindível para um filósofo ler Platão. A filosofia no presente se beneficia do conhecimento de seu passado, e por isso se justifica que tantos estudantes se dediquem a alguma questão histórica (no meu caso, por exemplo, a questão que pesquiso no mestrado é: “Qual a fundamentação epistemológica do conhecimento humano acerca do bem e do mal?”). Nesse tipo de estudo, a preocupação é desvendar o que um filósofo realmente diz sobre um tema; isto é, lê-lo e entendê-lo corretamente.

Em que medida isso importa? Em que medida nossa forma de ver o mundo depende de saber se, digamos, Aristóteles pensava X ou Y sobre o mundo? Além do benefício para o estudante, que é levado a pensar em diversas questões ao estudar um autor como Aristóteles, é difícil pensar que, hoje em dia, uma mudança em nossa leitura de Aristóteles tenha impacto na discussão filosófica. Imaginem que um novo comentador prove, sem margem de dúvidas, que a forma como lemos Aristóteles até hoje está errada. Imagine que ele prove, ademais, que a verdadeira leitura de Aristóteles, aquela que capta o sentido real de suas obras (enquanto todas as outras apresentam problemas sérios de leitura), seja, filosoficamente falando, muito mais tola e rasa. Imaginemos, por exemplo, que esse acadêmico prove que Aristóteles, sempre que fala de “formas”, refere-se exclusivamente ao formato geométrico e corpóreo do ser. Mesmo quando o assunto é a alma, Aristóteles estava a atribuir formato geométrico a ela(sim, sim, é absurdo e falso imaginá-lo; mas por um momento topem essa suspensão da descrença). Isso quer dizer que toda a tradição aristotélica, ao atribuir a seu pai fundador uma certa concepção muito mais rica e profunda de “forma”, estava equivocada.

[Um pequeno adendo: hoje em dia, com nossa técnicas de leitura, filologia e análise contemporâneas, é improvável – embora não impossível – que um erro grotesco de leitura se perpetue por tanto tempo. No passado, contudo, essa possibilidade estava muito mais presente. Em meu próprio mestrado, um conceito importante de Tomás, a “synderesis”, teve origem, vejam só, em uma cópia mal-feita que algum monge fez de um texto de S. Jerônimo. Em uma passagem em que S. Jerônimo se referia à “syneidesis” – termo grego traduzido como consciência – o copista escreveu “synteresis”, criando um novo termo (inexistente na língua grega). Adicione-se a isso algumas gerações de estudiosos e comentadores, e temos um novo conceito filosófico e teológico.]

A pergunta que quero fazer com base nesse exemplo é: e daí? E daí se Aristóteles tiver sido um tolo com uma tese ridícula acerca da realidade? Isso faria toda a diferença para a indústria acadêmica, causaria imenso rebuliço nos departamentos de filosofia, consagraria carreiras e talvez destruísse outras; mas para a filosofia nada mudaria. As questões, as posições e os argumentos atuais - nenhum dos quais depende da autoridade pessoal de Aristóteles - continuariam os mesmos. Da mesma forma, se encontrássemos, hoje em dia, algum texto perdido de Aristóteles, a importância do achado para os departamentos de filosofia seria imensurável. Para a filosofia em si, é improvável que ele tivesse grande impacto direto (a não ser que em sua obra inédita constassem argumentos e refutações inéditos de problemas atuais).

Não é possível falar de um progresso filosófico claro e mensurável, como nas ciências naturais; mas é igualmente claro que há um progresso em andamento: argumentos são consolidados, novas respostas e refutações surgem, problemas são reformulados, o conhecimento do mundo natural leva-nos a descartar certas possibilidades, etc. Um rápido exemplo: um argumento para a imortalidade da alma como o dos contrários, encontrado no Phaedon, não é mais sustentável hoje em dia. E é por esse motivo que um novo texto de Aristóteles, assim como um novo texto de Newton, embora criassem uma revolução no nosso entendimento da história do pensamento, não criariam uma revolução na filosofia ou na física.

Mesmo assim, essa correção da leitura faria muitos filósofos que gostavam de Aristóteles se sentirem mal. Aposto que haveria até um impulso inicial de defender Aristóteles da nova e desabonadora interpretação; e a motivação não seria a de fazer a defesa da própria leitura, mas a de provar que Aristóteles não era um tolo. Falando por mim, imagino que é exatamente isso que eu faria se uma nova interpretação de S. Tomás visasse mostrar que ele não passou de um pensador raso e limitado (a propósito, é isso que faz Anthony Kenny ao responder às passagens nada elogiosas que Russell dedica a S. Tomás em sua história da filosofia).

Não tenho resposta ou explicação para isso. Se tivesse que arriscar, diria que gostamos de ver nos autores clássicos uma personificação de suas ideias. Caindo Aristóteles, não cai o realismo metafísico, mas cai a ideia de Aristóteles como uma personificação do ideal ético e filosófico que associamos às suas ideias (e que pode variar muito de leitor para leitor: o Aristóteles de Garrigou-Lagrange não era o mesmo do de Ayn Rand). Também podemos fazer de um filósofo a encarnação de algo mau. No caso de um aristotélico contemporâneo, os (supostos) defeitos pessoais de Kant ou Bentham servem como um tipo de refutação poética de suas filosofias (nesse sentido, ainda bem que Aristóteles viveu há 2400 anos...). Nossa relação com a filosofia não é inteiramente impessoal; estão em jogo convicções, modos de ver o mundo, apostas existenciais; e daí importa saber se temos ou não exemplares reais dela no mundo, testemunhando a possibilidade de viver por diferentes ideias. A biografia, a dignidade ou a inteligência de nossos antepassados não importa para a filosofia; mas importa para os filósofos.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Tomás de Aquino: ninguém nunca quer o mal, Agostinho viajou na batatinha


**TRECHO DA MINHA (ASSIM ESPERO) DISSERTAÇÃO DE MESTRADO**

3.4.3.3 Problema: o mal enquanto tal
Do que foi exposto até aqui, fica claro que o mal nunca é uma finalidade direta da ação humana. O argumento, sinteticamente, é esse: nossas inclinações racionais primeiras visam a um bem. Toda ação humana tem um fim dado por alguma inclinação racional primeira. Portanto, toda ação humana visa a um bem. Logo, nenhuma visa ao mal enquanto tal.
Tomás é bastante consistente nesse ponto, repetindo-o ao longo de toda sua obra. “A vontade é o apetite racional. Todo apetite é apenas de algo bom” [1]. Considerando apenas o primeiro princípio prático, já havia-se concluído que todo agente busca o bem considerado formalmente; agora conclui-se que, para além da consideração puramente formal do bem (cuja busca seria compatível com perseguir algo mal em si mesmo, sob a ilusão de que tal coisa má era boa), há sempre um bem concreto que atrai o agente. Ou seja, mesmo no pior dos pecados haverá algum bem que o agente procura, e esse bem é de fato bom para o agente e digno de busca pelo ser humano, embora esteja sendo buscado numa ocasião, ou de maneira, inadequadas.
O mal em si não movimenta a vontade. Ele só pode ocorrer, portanto, “à parte da vontade do agente”, seja de maneira totalmente involuntária (como quando o agente pensa beber mel mas bebe veneno de gato) ou como um efeito colateral previsível mas que não foi o suficiente para desviar o agente do bem que ele buscava com aquela ação específica [2]. Mesmo um ato plenamente autodestrutivo como o suicídio é feito por motivos bons, inteligíveis a qualquer animal racional; Tomás cita a perspectiva de uma vida infeliz, a vergonha do pecado, o medo do estupro e mesmo o medo de que, se não morrer, consentir-se-á a algum pecado (perdendo portanto a vida eterna) [3]. Nenhum desses, é preciso deixar claro, justifica o suicídio aos olhos de Tomás. Eles apenas mostram como mesmo uma ação destrutiva da felicidade do indivíduo é feita em vista de algum princípio prático; e, portanto, em vista de algum componente da mesma felicidade que se destrói no ato. Mesmo nesse caso, o mal não é desejado enquanto tal.

3.4.3.3.1 As peras de Agostinho
Essa posição contrapõe-se a uma forte tradição de pensamento filosófico cristão que chegara até Tomás e com a qual ele frequentemente dialoga: o pensamento de Agostinho, segundo o qual a liberdade da vontade e a corrupção da natureza humana são tais que o homem é capaz de, e de fato busca se não for ajudado pela graça divina, o mal enquanto tal. Embora fuja ao escopo deste trabalho comparar a fundo as diferenças entre o pensamento de Tomás e o de Agostinho (e ainda menos entre este e a tradição agostiniana com a qual Tomás tinha contato), é instrutivo apontar um caso peculiar que sublinha exemplarmente essa diferença.
Na obra de Agostinho, entre as muitas passagens que se dedicam a expor e explorar a maldade do pecado e da condição humana, uma se sobressai na história do pensamento como singularmente eloquente: o relato de um aparente pequeno delito da juventude, o furto de algumas peras junto a amigos, que na verdade ocultou a mais profunda maldade na alma de Agostinho. Suas palavras não poderiam ser mais claras quanto ao que ele desejara:

“Carregamos uma grande quantidade de peras, não para comer, mas para jogá-las aos porcos mal as tendo provado. Isso nos aprouve ainda mais porque era proibido. Assim era meu coração, ó Deus, assim era meu coração – do qual vós vos apiedaste mesmo naquele poço sem fundo. Observe, deixe meu coração confessar a vós o que ele procurava, naquela prodigalidade gratuita, sem nada que me induzisse ao mal que não o próprio mal. Era torpe, e eu o amei. Amei perecer, amei minha própria falta; não aquilo pelo que eu a cometia, mas a falta em si.” [4]

Tomás não tem nenhum comentário às Confissões e, embora citações e referências a Agostinho sejam quase onipresentes em sua obra, raramente se detém sobre ele como seu objeto de estudo. Tampouco há alguma questão ou algum artigo de sua obra que se refira diretamente a essa passagem. Contudo, no De Malo, Tomás se refere a essa passagem. E, condizente com o que foi apresentado sobre seu pensamento até aqui, vê-se forçado a contradizer o texto de Agostinho. Cito a ocorrência integralmente, que se dá em dois momentos no artigo 13 da questão 3, em que se pergunta se é possível a um homem pecar por malícia deliberada.
O primeiro momento em que a passagem de Agostinho ocorre é em um argumento da seção dos argumentos em contrário, que, embora concorde com a posição que Tomás defenderá (a de que é possível pecar por malícia), discorda na hora de definir o que é a malícia.

“Segunda objeção em contrário: Agostinho diz em suas Confissões que quando ele estava roubando frutas, ele amou sua delinquência, isto é, o próprio roubo, e não a fruta em si. Mas amar o próprio mal é pecar por malícia. Portanto, uma pessoa pode pecar por malícia.”

O segundo momento se dá ao fim do artigo, quando Tomás responde a esse argumento, um expediente incomum (o normal é que ele só responda aos argumentos que discordam de sua tese) embora não único:

“Embora os argumentos apresentados na seção cheguem a conclusões verdadeiras, devemos notar, com respeito ao segundo argumento, que quando Agostinho diz que amava sua própria delinquência, e não o fruto que ele roubava, não devemos entender essa afirmação como se a própria delinquência ou a deformidade da falta moral pudessem ser primária e intrinsecamente desejadas. Na verdade, seu desejo primário e intrínseco era ou exibir um comportamento típico a seus pares ou experimentar algo ou fazer algo proibido ou alguma coisa do tipo.” [5]

É uma pena que Tomás não tenha se dedicado mais longamente à passagem das Confissões, pois seus exemplos dos possíveis bens buscados por Agostinho fogem um pouco à listagem normal. Tendo que adequá-los à lista apresentada anteriormente, classificaria os possíveis motivos aventados por Tomás da seguinte maneira: o desejo de impressionar seus pares provavelmente se encaixaria no princípio da amizade ou sociabilidade; o “experimentar algo” (“experientiam habere alicuius”) se encaixa, possivelmente, no princípio prático do conhecimento; a grande incógnita é o “fazer algo proibido”; Tomás pareceria indicar que há um bem intrínseco em se agir de forma autônoma, em afirmar a própria individualidade ou poder. Que o homem seja mais livre que o resto da criação material, e que essa sua autonomia seja um bem metafísico, é afirmado em diversos momentos. Mas a concretização dessa autonomia livre é justamente agir segundo o ordenamento da razão, ou seja, segundo leis, coisa de que as feras são incapazes. Aqui, o bem da autonomia vem justamente de se violar um preceito racional (não roubar, constante do Decálogo), e permanece, portanto, enigmática.
Seja como for, está bem claro que, segundo Tomás, o mal não pode ser desejado enquanto tal; isso vai contra a própria definição do que é o mal humano (aquilo que repele o homem e que, conforme o primeiro princípio, ele busca evitar). Mesmo nos atos mais baixos, há um bem que guia a vontade do agente; ocorre que, naquela instância, a busca daquele bem ignora ou até impede a busca dos demais bens que compõem a felicidade, tornando-se portanto má. O pecado é trocar o bem permanente por um bem transiente. E o pecado por malícia ocorre quando essa troca não advém de uma ignorância ou de uma paixão incontrolável, mas de um “hábito [que] às vezes inclina a vontade, quando o comportamento costumeiro transformou, por assim dizer, a inclinação a tal bem em um hábito ou disposição natural pelo bem transiente, e então a vontade, por seu próprio movimento e independentemente de qualquer emoção, se inclina por si mesma ao bem em questão” [6]. A malícia é antes uma absolutização de um bem parcial do que a busca intrínseca pelo mal; ocorre quando, num ato deliberado da razão, o agente, “para se deleitar no bem desejado [a pessoa] não evita incorrer no mal” [7].


[1] ST I-II, q. 8, a. 1.
[2] SCG III-I, 4.
[3] ST II-II, q. 64, a. 5, ad 3.
[4] Agostinho. Confissões, III, 4.
[5] De Malo, q. 3, a. 13, rsed 1-2.
[6] De Malo, q. 3, a. 13.
[7] Ibid., ad 1.
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