Poucos discordariam de que é útil, e talvez necessário – filosoficamente –, estudar os filósofos do passado. É irrelevante para um físico ler Newton; e imprescindível para um filósofo ler Platão. A filosofia no presente se beneficia do conhecimento de seu passado, e por isso se justifica que tantos estudantes se dediquem a alguma questão histórica (no meu caso, por exemplo, a questão que pesquiso no mestrado é: “Qual a fundamentação epistemológica do conhecimento humano acerca do bem e do mal?”). Nesse tipo de estudo, a preocupação é desvendar o que um filósofo realmente diz sobre um tema; isto é, lê-lo e entendê-lo corretamente.
Em que medida isso importa? Em que medida nossa forma de ver o mundo depende de saber se, digamos, Aristóteles pensava X ou Y sobre o mundo? Além do benefício para o estudante, que é levado a pensar em diversas questões ao estudar um autor como Aristóteles, é difícil pensar que, hoje em dia, uma mudança em nossa leitura de Aristóteles tenha impacto na discussão filosófica. Imaginem que um novo comentador prove, sem margem de dúvidas, que a forma como lemos Aristóteles até hoje está errada. Imagine que ele prove, ademais, que a verdadeira leitura de Aristóteles, aquela que capta o sentido real de suas obras (enquanto todas as outras apresentam problemas sérios de leitura), seja, filosoficamente falando, muito mais tola e rasa. Imaginemos, por exemplo, que esse acadêmico prove que Aristóteles, sempre que fala de “formas”, refere-se exclusivamente ao formato geométrico e corpóreo do ser. Mesmo quando o assunto é a alma, Aristóteles estava a atribuir formato geométrico a ela(sim, sim, é absurdo e falso imaginá-lo; mas por um momento topem essa suspensão da descrença). Isso quer dizer que toda a tradição aristotélica, ao atribuir a seu pai fundador uma certa concepção muito mais rica e profunda de “forma”, estava equivocada.
[Um pequeno adendo: hoje em dia, com nossa técnicas de leitura, filologia e análise contemporâneas, é improvável – embora não impossível – que um erro grotesco de leitura se perpetue por tanto tempo. No passado, contudo, essa possibilidade estava muito mais presente. Em meu próprio mestrado, um conceito importante de Tomás, a “synderesis”, teve origem, vejam só, em uma cópia mal-feita que algum monge fez de um texto de S. Jerônimo. Em uma passagem em que S. Jerônimo se referia à “syneidesis” – termo grego traduzido como consciência – o copista escreveu “synteresis”, criando um novo termo (inexistente na língua grega). Adicione-se a isso algumas gerações de estudiosos e comentadores, e temos um novo conceito filosófico e teológico.]
A pergunta que quero fazer com base nesse exemplo é: e daí? E daí se Aristóteles tiver sido um tolo com uma tese ridícula acerca da realidade? Isso faria toda a diferença para a indústria acadêmica, causaria imenso rebuliço nos departamentos de filosofia, consagraria carreiras e talvez destruísse outras; mas para a filosofia nada mudaria. As questões, as posições e os argumentos atuais - nenhum dos quais depende da autoridade pessoal de Aristóteles - continuariam os mesmos. Da mesma forma, se encontrássemos, hoje em dia, algum texto perdido de Aristóteles, a importância do achado para os departamentos de filosofia seria imensurável. Para a filosofia em si, é improvável que ele tivesse grande impacto direto (a não ser que em sua obra inédita constassem argumentos e refutações inéditos de problemas atuais).
Não é possível falar de um progresso filosófico claro e mensurável, como nas ciências naturais; mas é igualmente claro que há um progresso em andamento: argumentos são consolidados, novas respostas e refutações surgem, problemas são reformulados, o conhecimento do mundo natural leva-nos a descartar certas possibilidades, etc. Um rápido exemplo: um argumento para a imortalidade da alma como o dos contrários, encontrado no Phaedon, não é mais sustentável hoje em dia. E é por esse motivo que um novo texto de Aristóteles, assim como um novo texto de Newton, embora criassem uma revolução no nosso entendimento da história do pensamento, não criariam uma revolução na filosofia ou na física.
Mesmo assim, essa correção da leitura faria muitos filósofos que gostavam de Aristóteles se sentirem mal. Aposto que haveria até um impulso inicial de defender Aristóteles da nova e desabonadora interpretação; e a motivação não seria a de fazer a defesa da própria leitura, mas a de provar que Aristóteles não era um tolo. Falando por mim, imagino que é exatamente isso que eu faria se uma nova interpretação de S. Tomás visasse mostrar que ele não passou de um pensador raso e limitado (a propósito, é isso que faz Anthony Kenny ao responder às passagens nada elogiosas que Russell dedica a S. Tomás em sua história da filosofia).
Não tenho resposta ou explicação para isso. Se tivesse que arriscar, diria que gostamos de ver nos autores clássicos uma personificação de suas ideias. Caindo Aristóteles, não cai o realismo metafísico, mas cai a ideia de Aristóteles como uma personificação do ideal ético e filosófico que associamos às suas ideias (e que pode variar muito de leitor para leitor: o Aristóteles de Garrigou-Lagrange não era o mesmo do de Ayn Rand). Também podemos fazer de um filósofo a encarnação de algo mau. No caso de um aristotélico contemporâneo, os (supostos) defeitos pessoais de Kant ou Bentham servem como um tipo de refutação poética de suas filosofias (nesse sentido, ainda bem que Aristóteles viveu há 2400 anos...). Nossa relação com a filosofia não é inteiramente impessoal; estão em jogo convicções, modos de ver o mundo, apostas existenciais; e daí importa saber se temos ou não exemplares reais dela no mundo, testemunhando a possibilidade de viver por diferentes ideias. A biografia, a dignidade ou a inteligência de nossos antepassados não importa para a filosofia; mas importa para os filósofos.