sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Pai de Saia - dilemas da paternidade



Uma notícia e uma foto verdadeiramente tocantes. Um pai, sabendo que seu filho estava sendo hostilizado pelos colegas e pela sociedade em geral por usar vestidos e saias, resolveu ele também vestir saias junto do garoto para dar-lhe apoio.

Acho que ninguém consegue ler isso e ver a foto sem se sentir comovido pelo ato de generosidade e amor do pai. Ele estava disposto a jogar pela janela sua própria imagem pública para que o filho pequeno, que ainda não entende direito por que tem sido hostilizado e é plenamente indefeso frente à agressão, sinta-se seguro e amado. Isso é profundamente admirável.

Devo admitir que minha admiração diminui um pouco quando leio o depoimento do pai: "Sim, eu sou um daqueles pais que tentam criar seus filhos de maneira igual. Eu não sou um daqueles pais acadêmicos que divagam sobre a igualdade de gênero durante os seus estudos e, depois, assim que a criança está em casa, se volta para o seu papel convencional: ele está se realizando na carreira profissional enquanto sua mulher cuida do resto." E ainda: "É absurdo esperar que uma criança de cinco anos consiga se defender sozinha, sem um modelo para guiá-la. Então eu decidi ser esse modelo". Na hora de falar sobre sua ação, de quem é que ele fala? De si mesmo e de como quer ser visto. O filho parece quase um acessório que ele, o pai, usa para brilhar. Bem sei que não dá para julga-lo por essas frases que chegaram a nós mediadas pela edição do jornalista, e no fundo tanto faz: muitas de nossas ações têm várias motivações simultâneas - algumas boas e algumas não tão boas.

Quero pensar na tensão que há entre a atitude do pai (considerada no que ela tem de admirável) e o caráter problemático daquilo que ele concretamente acaba incentivando no filho. Pois não é totalmente verdadeiro dizer que o menino apenas queria "usar saia", como se seu desejo fosse primariamente por uma opção de uma peça de vestuário entre outras que, para ele, ainda desconhecedor dos padrões sociais masculinos e femininos, eram equivalentes. A princípio, poderia ser isso; poderia ser apenas o desejo de usar um outro tipo de roupa sem nenhuma conotação de sexo ou gênero (por ela ser mais confortável, ou ele achar mais bonita). Mas um detalhe revela que não é só isso: ele também gosta de pintar as unhas. Então, não é que ele tem um desejo de "usar saia"; usar saia é um componente, um meio, um modo de concretizar um desejo de identidade mais profundo: ser mulher. (E tudo indica que é ser mulher adulta, e não menina, pois pintar unha não é coisa de menina).

Agora penso: se o meu filho, do sexo masculino, revelar desejos de ser e se comportar como uma mulher, acho que tomarei duas atitudes iniciais: 1) tentar entender o porquê disso, isto é, o que ele procura; 2) tentar levá-lo por um caminho pelo qual ele possa transcender, superar, esse desejo. Bem sei que há casos e casos, e em alguns deles a predisposição a querer ser do sexo oposto é tão forte que é invencível; não sei o que eu faria nesse caso, mas acho que acabaria aceitando a decisão, sem contanto incentivá-la ao longo de seu desenvolvimento. Mas até que isso fique claro, o papel do pai é ajudar o filho a se desenvolver, tornando-se plenamente aquilo que ele é. Depois do vestido, vieram as unhas pintadas; depois das unhas, o que virá? Maquiagem? Lingerie? Em que ponto seu desejo deixa de ser encarado como autoexpressão e passa a sinalizar desvio preocupante no desenvolvimento?

Como é que, afinal, um pai um dia "percebe" que seu filho de 5 anos gosta de usar vestidos? Não é como se um menino de 5 anos tivesse toda uma vida própria independente e desconhecida dos pais. Os pais no mínimo deixaram e provavelmente incentivaram o filho a usar vestido, prática que está longe de ser inédita na Europa. Baseados na ideia de que o gênero é uma construção social e histórica, pais procuram libertar os filhos de toda e qualquer imposição de caminhos prévios, para que cada um cresça e se desenvolva à sua maneira.

Entretanto, a relação entre sexo biológico e psicológico é forte. O que não quer dizer, obviamente, que as formas particulares em que cada cultura expressa os sexos não sejam criações históricas. É claro que são. Na Escócia medieval, homem usava o que nós chamaríamos de saia. Em países muçulmanos, ainda é comum o uso da túnica, que é similar a uma camisola. Mas essas variações todas, e a forma como elas se articulam e se integram na cultura e na autopercepção individual, variam; um escocês de saiote sente-se muito diferente, e significa algo muito diferente, de um brasileiro de saia. As variações culturais são radicadas em dados da biologia. A natureza biológica não tem, em si, valor normativo; mas o desvio dela não raro é sintoma de problemas que o próprio sujeito reconheceria como tais. Se um indivíduo se vê e se associa com o outro sexo, isso é sinal claro de que algo em seu desenvolvimento psicológico não seguiu o caminho normal, e é preciso descobrir o quê.

Dar ao filho opções iguais, tratá-lo como um sexo neutro, sendo que seu sexo biológico é um só, talvez só confunda a cabeça da criança. Longe de ajudá-la, os pais podem estar interferindo negativamente no desenvolvimento saudável de sua personalidade. Não que seja o fim do mundo, e que toda criança que passe por isso sairá traumatizada; digo apenas que talvez não faça bem. (Nesse sentido, também sou contra fazer um tempestade em copo d'água no caso do filho pequeno apresentar um comportamento desviante; talvez a própria tempestade feita pelos pais ajude a tornar importante algo que do ponto de vista da criança não era importante, mas só uma fase passageira).

E portanto chega-se a um impasse: o apoio que o pai dá ao filho, mesmo às custas de sua imagem, é louvável. No entanto, há situações em que a criança pode estar seguindo por um caminho errado, e nesse caso é preciso não só apoiar como redirecionar. Um pouco de proibição e de reprimenda (leves, é claro; o foco deve ser sempre no reforço positivo), embora não sejam tão admiráveis, podem ser as atitudes que, a longo prazo, mais contribuem para o bem do filho. E é isso que realmente importa.

Para quem realmente não consegue me acompanhar até aqui porque rejeita fortemente a ideia de que o gênero não seja pura construção cultural, pense em um exemplo análogo. Pense em uma criança pequena que se identificasse, sabe-se lá por quê, com indumentária e estética nazistas (algo que pode também ter um componente sexual latente?), ou com sangue, cadáveres e coisas extremamente mórbidas. Por um lado, seria bonito ver um pai apoiar o filho mesmo nesses casos; por outro, não é o tipo de coisa que devesse ser incentivada. Talvez um equilíbrio entre os dois, com apoio público (afinal, não é do dia para a noite que o menino mudaria) associado à tentativa privada de melhor direcionar os gostos e a identidade dele tentando também restringir suas escolhas? Dilemas da paternidade que não se resolvem facilmente...

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A Tolerância do "Cala a Boca!"

O colunista André Barcinski está indignado com a intolerância religiosa de nosso país. E qual o crime hediondo, qual a mostra de ódio religioso fanático, que despertou sua revolta? Pegue um copo d'água e tire as crianças da sala, porque é chocante: o time feminino de vôlei rezou um Pai Nosso.

Para Barcinski, um time rezar unido é uma forma de intolerância. Afinal,
"O que aconteceria se alguma jogadora da seleção de vôlei fosse budista? Ou mórmon? Ou umbandista? Ou agnóstica? Ou islâmica? Alguém perguntou a todas as atletas e aos membros da comissão técnica se gostariam de rezar o “Pai Nosso”?"
Em primeiro lugar, se alguma jogadora fosse mórmon ou umbandista, ela rezaria o Pai Nosso sem problemas, dado que a oração é usada nessas duas religiões (e talvez uma muçulmana aceitasse rezar também, dado que o islã tem uma oração muito similar).

Em segundo, quando se tem um grupo unido, é óbvio que qualquer um tem o direito de não participar de uma atividade do grupo, embora talvez prefira até integrar a oração para não colocar ruídos naquele momento de união. Se ninguém no time rezasse, é bem possível que uma jogadora religiosa resolvesse rezar sozinha, um pouco afastada das demais, para não quebrar, digamos, o momento de silêncio grupal. Ou se as jogadoras resolvessem cantar escravos de Jó depois do jogo, é bem capaz que alguma delas, que por si mesma não teria interesse em fazê-lo, entrasse na música só para não atrapalhar a brincadeira. O que não significa que ela não teria pleno direito de não participar, se assim o quisesse. Não se feriu o direito de ninguém. Grupos se organizam assim, naturalmente; não é preciso assinar contrato antes de cada atividade  para garantir que todos estejam de acordo.

Se - e não há evidência nenhuma de que isso tenha ocorrido - ao recusar participar da oração, alguém fosse hostilizado e mal tratado pelos demais membros do grupo, daí sim haveria uma questão a se melhorar. Mesmo nesse caso, contudo, o problema não estaria na oração, que não causa dano algum, mas apenas na reação dos que rezam ao membro que não reza. Eles não precisariam, e nem deveriam, deixar de rezar; deveriam, isso sim, aprender a ser mais tolerantes e compreensivos.

Na concepção de Estado laico de Barcinski (que não é só dele, e por isso escrevo este texto), liberdade religiosa não é cada um poder seguir e manifestar qualquer religião. Liberdade religiosa, em sua visão, é cada um manter sua religião escondida para evitar ofender algum agnóstico hipersensível hipotético. Há pessoas, e o próprio Barcinski parece ser uma delas, que se ofendem profundamente quando são lembradas da existência de crenças diferentes da sua. O mundo deveria ser organizado de forma a que nada - nem mesmo as ações alheias - destoasse de sua própria visão de mundo. Quer rezar? Vá lá, vou permitir; mas apenas dentro do banheiro da sua casa, bem baixinho, para que eu nem suspeite que sua crença existe. Na esfera pública, só vale manifestar o meu agnosticismo, e não a sua crença.

Isso explica a frase de maior efeito no artigo, que já está sendo replicada nos cantos menos recomendáveis das redes sociais: "Liberdade religiosa só existe quando não se mistura religião a nada. Nem à política, nem à educação, nem à ciência e nem ao esporte." Em outras palavras: a religião deve se manter dentro de sua esfera particular, isto é, a casa e o templo. Se o fiel permitir que sua crença inspire e molde suas atitudes em outras áreas de sua vida, e ainda mais se manisfestar essa crença fora do contexto estritamente religioso, estará violando a liberdade religiosa alheia. Ora, toda religião se coloca como uma das principais, se não a principal, formadora e guia da vida do fiel em todos os âmbitos. Portanto, para que a religião se adeque ao ideal de "liberdade" defendido por Barcinski, ela não pode ser levada a sério; sua principal função tem que ser ignorada. O que equivale a dizer dizer que ela não deve existir.

No mundo real, em que nem todo mundo está disposto a abrir mão de suas convicções para não ferir a sensibilidade de algum neurótico, liberdade religiosa é simplesmente poder acreditar e manifestar qualquer religião (ou nenhuma religião). Atletas com fé têm que ter completa liberdade de rezar nos jogos. Se alguém se ofende com isso, sinto muito, mas o preço da liberdade é saber conviver com o diferente. Se você não consegue olhar uma pessoa rezando ou manifestando suas crenças sem sair abalado ou com raiva, então você, mais do que todos, precisa de umas lições de liberdade. Viver num país livre não é viver num país que coíbe a expressão da crença alheia para que sua mente fique em paz. Os preconceitos, ódios e sensibilidades de um grupo não podem ditar o que vale e o que não vale ser expresso na esfera pública.

O Estado brasileiro é laico, secular; isto é, nossas leis e instituições públicas não se pautam por nenhuma confissão religiosa. Mas essa regra não se estende aos indivíduos, que são e têm que ser livres para, tanto na vida privada quanto na pública, acreditar, praticar e manifestar a crença que lhes pareça verdadeira. O limite desse direito são os direitos individuais inalienáveis dos outros. Se sua religião prega o sacrifício humano, bem, infelizmente você não terá o direito de colocá-la em prática nesse quesito. No mais, vale tudo, e os indivíduos é que, convivendo e dialogando, aprendem a não ter chiliques e nem sentir ódio da crença e devoção alheia.

O mais irônico da história toda é que, além da reza totalmente livre e voluntária do time brasileiro, tivemos uma outra manifestação religiosa ligada ao Brasil, muito mais pública e oficial. No show de encerramento, Marisa Monte foi fantasiada de Iemanjá, divindade do candomblé, que é em parte encarada como puro folclore mas é também cultuada a sério por muita gente. Nisso Barcinski não viu problema nenhum. Se tivéssemos alguém fantasiado de Jesus Cristo ou de Virgem Maria, por outro lado...

Coisas muito intolerantes se escondem sob o nome de "liberdade".

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Glossário da Liberdade

Não tenho poder sobre como as pessoas falam. Mas, quando o tema é liberdade econômica, noto uma grande confusão no uso dos termos, muitos dos quais perdem seu significado próprio e viram mais ou menos sinônimos, quando não deveriam sê-lo. E se tudo vira sinônimo, perdemos a capacidade de nos referir às diferenças que os termos outrora denotavam.

Assim, elaborei este curto glossário de termos ligados à liberdade política e econômica, que faz algumas distinções importantes. Meu critério não é lá muito científico, mas procurei conciliar duas coisas: 1) preservar o significado que os termos têm ao menos em parte de seu uso comum - isto é, nada do que vai abaixo é uma invenção minha. 2) dar a cada termo um sentido específico que o diferencie dos demais.

Minha preocupação é, também, diferenciar posições políticas de linhas argumentativas. Duas pessoas podem ter a mesma posição política (que é, digamos, uma conclusão baseada em algum tipo de argumentação) e sustentá-la por motivos completamente diferentes.

Espero que seja útil a pessoas que começam a navegar por esses temas!

Termos que nomeiam posições políticas:

Liberalismo - a defesa da liberdade individual; e, portanto, de um Estado pequeno ou, no limite, inexistente. Em português, o termo é usado no dito "sentido europeu", que é esse, e não no "sentido americano", que é a defesa das causas da esquerda moderada americana (que inclui altos impostos e uma grande rede assistencialista; ou seja, que defende um Estado grande). É um termo genérico; duas pessoas podem se considerar liberais, usando o termo neste mesmo sentido, e mesmo assim defender papéis muito diferentes para o Estado. Quando alguém é chamado de "neo-liberal", isso em geral significa que a pessoa é um liberal que, embora defenda que o Estado seja um pouco menor do que ele é hoje em dia, ainda assim defende um Estado bastante intervencionista (por exemplo, que controle a moeda - ainda que por meio de um Banco Central independente -, que forneça educação básica, saúde para quem não possa pagar, etc.).

Minarquismo - A defesa do Estado mínimo, o que quase sempre significa um Estado que se limite a impor as leis que garantem a proteção dos direitos individuais dos cidadãos. Isso inclui, no mínimo, autoridade sobre o código de leis, tribunais e polícia. Ainda que esses serviços possam ser terceirizados ou que se dê liberdade a diferentes provedores, o Estado tem que manter algum tipo de supervisão, e ser capaz de impor suas leis; precisa, portanto, controlar algum aparato de coerção. O minarquismo exclui, de um lado, versões mais estatizantes de liberalismo, e, de outro, o anarco-capitalismo.

Anarcocapitalismo - A defesa de uma ordem social baseada na propriedade privada e em que o Estado não exista; tudo se resolve na base de contratos voluntários. Ninguém tem o direito de iniciar agressão contra ninguém. Simples assim.

***

A seção acima se refere a, digamos, conclusões políticas. Ela não diz nada, contudo, sobre as argumentações, isto é, sobre o caminho pelo qual se chega a essas conclusões. Muitas vezes as duas coisas são confundidas.

Libertarianismo / libertarismo / libertário - Esse termo é o que tem sido usado com menos precisão hoje em dia. Muitas vezes ele é usado como sinônimo de liberalismo ou de anarco-capitalismo. Proponho, contudo, que seu uso seja restrito a uma certa filosofia política (ou antipolítica): aquela que se baseia na aplicação irrestrita do princípio da não-iniciação de agressão. Todo argumento que se contrapõe a uma medida estatal porque ela envolve uso da violência, e o uso da violência contra inocentes é ilegítimo, é um argumento libertário. É uma consequência lógica do pensamento libertário que todo Estado é moralmente ilegítimo, pois  o Estado depende do uso da coerção para existir (por exemplo, ao cobrar impostos ou ao proibir outros Estados em seu território); e se não usasse coerção, não seria Estado, mas apenas uma instituição que presta um serviço sem obrigar ninguém.

Utilitarismo - A ética que propõe como critério do bem a promoção da maior felicidade para o maior número de pessoas. Ela não descreve o que é a felicidade para o homem; deixa a cargo de cada um dizer o que é bom ou mal para si. Sua afirmação é simples: seja o que for que deixe as pessoas felizes, é bom que elas o alcancem. Todo homem busca o prazer (ou seja, aquilo que ele considera bom, e que pode até não incluir o prazer físico - como no caso de um faquir hindu) e foge da dor; ajudemo-los nisso. No início de sua história (séculos XVIII e XIX), o utilitarismo costumava estar ligado à defesa de maior liberdade econômica e política.

Objetivismo - Nome do pensamento originado pela Ayn Rand e que, no que diz respeito à ética, efetua uma atualização do pensamento aristotélico. Em linhas gerais: o homem procura a felicidade, aquilo que realmente o realiza; sua ferramenta nessa busca é a razão, que descobre os valores objetivos (porque determinados pela natureza humana, e não pelo capricho individual) que são dignos de serem buscados. A consequência política do objetivismo (que não é, segundo Ayn Rand, seu aspecto mais importante) é um Estado mínimo, quase inexistente; ou seja, o minarquismo.

Escola Austríaca - nome dado a certa corrente de pensamento econômico que busca entender o funcionamento causal do mercado por meio da dedução lógica a partir de certas verdades a priori impossíveis de serem negadas (por exemplo: o homem age, ou seja, usa meios para alcançar fins que ele valoriza; ao fazê-lo, revela uma ordem de preferência entre seus fins: se eu podia fazer tanto A quanto B, e fiz A, é porque, naquelas condições, A pareceu-me preferível a B). Todos os economistas mais célebres ligados à Escola Austríaca foram ou são liberais.

Escola de Chicago (ou economia ortodoxa, mainstream) - outra maneira de estudar o funcionamento do mercado: por meio de modelos matemáticos formalizados que representam situações de mercado. Embora abra mão de explicar a causalidade envolvida nos fenômenos, busca representar fielmente a relação entre as variáveis e chegar a resultados que, se essas variáveis vierem da realidade, se aproximem dos valores reais. Os economistas mais célebres dessa linha de estudo, hoje dominante na academia, também são ou foram liberais.

***

São poucos termos, mas creio que se usados com um pouco mais cuidado nos textos e conversas liberais, ajudariam a limpar bastante o ar intelectual. Vejam só: Mises, por exemplo, é economista austríaco, utilitarista e minarquista. Já Rothbard, embora também economista austríaco, é libertário e anarcocapitalista.

Muitas vezes termos como "libertarianismo" e "escola austríaca" são tratados como se fossem equivalentes ou sempre ligados. Mas o primeiro é uma posição filosófica com implicações políticas, e o segundo é uma maneira, uma metodologia, de se estudar o funcionamento do mercado, e que não faz juízos de valor. Ambos podem existir (e já existiram) perfeitamente bem sem o outro. Quem inaugurou a união das duas coisas foi Murray Rothbard, que integrou sua análise austríaca do mercado a uma estrutura libertária de direitos naturais.

É possível haver profundos conflitos entre partidários de diferentes dessas linhas de pensamento. Uma figura importante no mundo liberal, Ayn Rand, rejeitava o libertarianismo, que segundo ela era uma negação da ética, pois que partia de um axioma arbitrário (o princípio da não-iniciação de agressão), e abria mão de qualquer embasamento racional, aceitando como legítimos libertários pessoas com os valores mais discrepantes (e até conflitantes) e sem nenhuma unidade de fundo, apenas porque estavam todos de acordo em que não se deve iniciar a agressão contra ninguém. Ela também não via com bons olhos o utilitarismo e subjetivismo ético de um Mises, embora o considerasse um grande economista.

Para um libertário, as posições de Mises e Ayn Rand, que defendem em alguma medida um Estado monopolista em seu território, envolvem atos imorais e são, portanto, inaceitáveis, ainda que menos piores do que o estado atual da política.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O que Querem as Mulheres?

Minha geração tomou contato com as redes sociais justamente na passagem da adolescência para a vida mais ou menos adulta: entre o fim do colegial e meados da faculdade, época em que se vai aos poucos descobrindo como agir e se colocar no mundo por conta própria, sem nenhuma máscara ou demanda institucional ou familiar. Talvez a isso se deva o fenômeno paradoxal de exibicionismo e paranoia da era dourada do Orkut.

Inicialmente, todo o conteúdo do Orkut era livremente acessível a todos. Amigos ou desconhecidos xeretando seu perfil podiam ver todas os seus scraps, fotos e vídeos. Todo mundo sabia disso. Uma menina que colocava fotos no Orkut (às vezes fotos de decote, biquini etc.) sabia perfeitamente que qualquer um poderia vê-la; e dado o alto grau de promiscuidade online e fascínio com a rede social, ela sabia perfeitamente bem que havia muita gente (provavelmente ela também) navegando pelos perfis de conhecidos, semi-conhecidos e desconhecidos, no mais das vezes por pura curiosidade ociosa. Premissa implícita: ela não se importava em - ou queria ativamente - ser observada.

Vejam, contudo, que curioso: um belo dia (em 2006, se não me engano), o Orkut implementou uma nova função que permitia ao usuário saber as últimas pessoas que acessaram seu perfil. O rebuliço foi geral. As mesmas pessoas que sabiam que seus perfis eram públicos agora ficavam assustadas ao saber que, bem, o público os tinha frequentado. Lembro de uma amiga comentando sobre o "medo" ao constatar que um sujeito de outra classe que nem a cumprimentava no corredor tinha recentemente visitado seu perfil. Não tardou para que o Orkut permitisse restringir o acesso dos perfis apenas a amigos (opção implementada especialmente pelas mulheres, que têm bons motivos para se preservar mais do olhar de estranhos); e o que antes era campo livre para a investigação dos curiosos virou área restrita. Assim acabou a onda inicial da promiscuidade informativa das redes sociais, e o Orkut perdeu a graça.

Escolhi esse fenômeno da nossa história virtual para falar de algo que me parece ser recorrente no mundo real: uma contradição interna de muitas mulheres na relação que elas estabelecem entre seu corpo e sua relação com as demais pessoas. A mulher usa minissaia e decote; mas no momento que alguém faz um comentário, ou repara ostensivamente no corpo dela, sente-se invadida e amedrontada.

Nossa aparência é o que aparece para outras pessoas. A decisão de como se vestir e como agir em público   sempre passa pela reação que o público terá. Muitas vezes, a roupa é escolhida justamente para gerar um certo tipo de reação. Exemplos óbvios: camisetas com logo de banda ou com mensagens. Nesse caso, a intenção é comunicar algo de que o usuário gosta, e dessa forma mostrar também que tipo de pessoa ele é; gerar uma identificação (ou às vezes repulsa, dependendo do meio em que ele está) em quem o olha. Outro exemplo: roupas sexualmente provocantes. Elas visam a despertar o interesse sexual em quem olha a pessoa (por uma série de motivos, talvez biológicos, talvez culturais, em geral essa pessoa é mulher). Querer se fazer bonito é querer se fazer bonito para outros (mesmo quando queremos estar bonitos para nós mesmos, estamos nos olhando no espelho, projetando e pensando o que um outro ideal pensaria de nós). E no caso das mulheres, beleza não significa apenas ter a beleza angelical do rosto, mas ser gostosa. Não nos enganemos quanto a este fato.

Deixemos em aberto, isso sim, se há algo de moralmente condenável em querer ser gostosa (e, da parte do homem, em desejar o corpo feminino). Noto apenas alguns limites que me parecem inescapáveis: condenar essa forma de lidar com o corpo alheio como intrínseca e gravemente imoral implica a burqa e o confinamento feminino, que são as medidas que minimizam os riscos de se olhar e desejar o corpo da mulher. Por outro lado, não ver nada de errado em qualquer nível de apelo sexual nas relações humanas dá vazão desenfreada para instintos nossos que com muita facilidade tomam conta da pessoa, e que inviabilizam toda uma série de compromissos e ideais caros à vida humana, sem falar que aumentam muito a propensão a realmente usar e abusar do outro como instrumento de prazer carnal. Dada a força do prazer sexual, não é nada difícil que ele domine totalmente os horizontes do indivíduo.

Enfim, deixemos o juízo moral de lado. O fato é que há muitos tipos de roupa feminina cujo objetivo é provocar o desejo sexual masculino. Elas são produzidas e vendidas com essa finalidade, muitas delas constituindo até mesmo o traje profissional de prostitutas, já que cumprem bem a função de vender o corpo da usuária (isto não é para insinuar que haja equivalência entre uma mulher que se vista de uma maneira e uma prostituta; aliás, rejeito categoricamente essa equiparação). Uma criança pode usar essas roupas sem a menor ideia do que elas significam; mas uma mulher já em idade sexual não tem nem um segundo de dúvida. Nossas roupas transmitem mensagens aos outros; mensagens que queremos transmitir (ou então usaríamos outra roupa). Se você vivesse totalmente isolado/a do mundo, vestir-se-ia com cuidado, usaria maquiagem, ficaria asseado/a? Você por acaso já passou um fim-de-semana sozinho/a sem sair de casa? Então você sabe a resposta.

Claro, assim como seu cartaz...
Não duvido que a mulher da foto acredite ser sincera. Isto é, não acho que ela esteja mentindo, ao menos não no nível do discurso verbal. Ela só não fez questão de investigar muito a fundo os motivos de suas próprias ações. A ingenuidade do feminismo da Marcha das Vadias está em achar, ou fingir, que esse nível verbal da consciência e dos desejos é tudo o que deveria existir nas relações humanas, numa espécie de separação radical entre alma e corpo: como eu me visto e ajo não tem nada a ver com o que desejo e com a reação que os outros deveriam ter a mim. O mundo não é tão simples.

Vivemos num estranho pacto social: é perfeitamente aceitável que uma mulher se vista de forma a provocar o interesse masculino, e ninguém vê nada de errado nisso, contanto que nenhum homem demonstre interesse. Se alguém fizer algum comentário, ou olhar descaradamente, a mesma mulher que se vestiu para ficar gostosa sentirá medo. Foto do decote na capa do perfil não tem problema nenhum, desde que todo mundo finja não reparar. E não é sem razão: o homem, ao dar alguma vazão (limitada: estamos falando de olhares e comentários) a seu desejo, já age de forma agressiva. A relação romântica e o sexo heterossexual, afinal, têm uma relação de dominação: ativo e passiva, dominador e dominada; invasor e invadida; a própria mecânica dos órgãos é essa. E, acredito, ela é espelhada pela dinâmica do relacionamento romântico entre homem e mulher.

Como eu disse, a mulher não está mentindo; ela não está sendo hipócrita. Há uma real inconsistência, ou ambiguidade, em suas intenções. Por um lado, em algum nível meio fantasioso, ela quer provocar o desejo, quer provocar o instinto dominador de algum homem abstrato; por outro, ela morre de medo de provocar esse instinto em um certo homem concreto pelo qual ela não tem interesse nenhum. Mas nossa aparência não é seletiva; não posso me vestir para provocar um efeito apenas em uma pessoa, apenas em algum príncipe encantado. Essa pode ser minha intenção ingênua, mas o fato é que provocarei reações em todas as pessoas que me virem, e não tem como eu não saber disso. Para piorar as coisas, justamente as pessoas que menos pudores têm de demonstrar seus desejos animais não costumam ser príncipes encantados.

É verdade também que há mulheres gostam de receber a atenção masculina; gostam dos homens que têm coragem de violar algumas fronteiras (não todas, claro, a não ser que consideremos casos patológicos como o de uma mulher que gostasse de ser estuprada) para demonstrar interesse claramente sexual. Mas o mais normal, pelo menos até onde eu vejo, é o contrário: receber esse tipo de avanço sexual (um olhar aberto, ostensivo, ou um comentário lascivo), na imensa maioria dos casos, seria muito desagradável.

Aqui a diferença com os homens é enorme: pois eu, se algum dia alguma mulher do nada demonstrasse ostensivamente algum interesse sexual em mim (filosoficamente, é permitido considerar cenários impossíveis para testar suas implicações), embora eu repudiasse o avanço, não posso dizer que me sentiria invadido ou tivesse algum medo; pelo contrário, sentir-me-ia lisonjeado. A diferença, creio, está em que o avanço sexual do homem é uma invasão; e o da mulher é um convite. E o mesmo convite pode ser feito de forma passiva, pelas roupas e jeito de ser, mesmo sem intenção (tanto é que algumas mulheres, cientes de seu poder de atração, usam e abusam de trejeitos e flertes para manipular os homens, sem qualquer interesse em realmente ter relação sexual com eles), ou de forma ativa - comentários, cantadas - sem deixar de ser um convite. No final das contas, fico com o paradoxo de que a mulher quer ser conquistada, mas não por qualquer um, e não contra sua vontade. Mas se é conquista, não tem que necessariamente haver algum elemento de oposição da vontade envolvido?

Em suma, os atos parecem dizer uma coisa, mas quando a mensagem recebe sua reposta natural, o desejo se inverte. Mulheres que lêem esse blog, talvez vocês possam me ajudar a entender se isso tudo faz sentido de sua perspectiva. Posso estar completamente equivocado, e os pensamentos acima talvez reproduzam apenas uma visão construída para os homens. Ao mesmo tempo, não posso negar o que minha percepção das coisas me mostra sem ter bons motivos para tanto.

domingo, 5 de agosto de 2012

Por que não existe um partido de “direita” no Brasil?

Volta e meia aparece alguma matéria ou texto na imprensa de alguém perguntando e tentando explicar a ausência de partidos de direita no Brasil. Eles acabam usando a direita para englobar conservadores, neoconservadores, libertários e esse povo xenófobo como os integralistas e autoritários de outras estirpes. Não concordo com essa classificação (prefiro me classificar como Libertário), mas o fato é que essas correntes ideológicas não têm representação política no atual cenário partidário brasileiro. 

E entendendo isso, acredito que a resposta para a pergunta seja muito mais simples do que acabam apontando. A inexistência desses partidos mais fortes ideologicamente (os de esquerda também estão cada dia mais sem ideologia) é uma consequência direta da existência e dependência dos partidos ao fundo partidário. 

Sim, esse é o principal motivo. A existência da ditadura também é um fator para atrapalhar a vida dos conservadores, assim como questões culturais, mas acredito que os recursos estatais sejam de longe o maior impedimento. 

Para servir de comparação, vejam o caso americano. Apesar de lá também existirem alguns fundos estatais para os partidos, eles dependem muito mais de doações privadas para ganhar eleições e se manter do que no Brasil. E o resultado disso é que eles têm que se fortalecer ideologicamente para atrair esses doadores. Defender qualquer coisa não fará as pessoas doarem para uma campanha. 

Aqui no Brasil já ocorre o contrário, e com a independência que os partidos políticos brasileiros têm da ideologia dos grupos que compõem a população, vemos partidos como o PMDB que tem mais de 1 milhão de filiados. Se esses filiados tivessem que pagar anuidades, arrisco dizer que não existia 1% dos atuais, a não ser que o partido incorporasse alguma ideologia específica. 

Um dos resultados diretos de fazer isso seria a existência do partido “Democratas” realmente conservador (não que isso seja bom) e alguns outros partidos que seriam chamados de “direita” provavelmente iriam surgir. Os partidos de esquerda iriam acabar se aglomerando em alguns poucos, mas não veríamos uma desideologização da esquerda, mas também um fortalecimento do discurso deles com as bases; que é o contrário do que vem acontecendo com o partido democrata nos EUA, que cada dia mais depende de recursos do estado e vê a sua base e ideologia se enfraquecerem em consequência. 

Então se você quer um partido de “direita” no Brasil, a única panaceia disponível é aumentar o peso que as pequenas doações têm no financiamento dos partidos; até mesmo colocando 100% de desconto no imposto de renda para essas doações com um teto absoluto.
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