quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Vida Longa ao Rei do Camarote



Perdoem a escolha do tema antigo; isso é tão novembro/2013! Espero que valha a pena. Estiquemos um pouco a memória e voltemos para aquelas duas semanas do mês passado em que o esporte favorito das pessoas lindas foi odiar e ridicularizar o Rei do Camarote. Participei com gosto da segunda modalidade, e não vejo nada de muito errado nisso. Só acho que os motivos que suscitaram essas reações não foram devidamente esmiuçados, e por isso estou aqui para repisar o cadáver. Já aviso que a exposição não será lisonjeira; nem para ele, nem para nós.

E há dúvida sobre os motivos da hostilização? O sujeito é ostentador, rico, fútil; plenamente egoísta. É o que andaram dizendo. Outros, mais conservadores, viram nele a boa e velha “auri sacra fames”, o sórdido amor pelo dinheiro. Seja como for, mereceu.

Pois eu digo que ele não ama o dinheiro. Amor ao dinheiro é um vício ascético. É o que acomete o trabalhador compulsivo, o trader para quem o aumento do saldo bancário é um fim em si mesmo; o poupador muquirana que evita religiosamente qualquer pequeno gasto a mais. Esses têm o dinheiro como um fim, e não como um meio para comprar a felicidade. É um vício bem infeliz e solitário. O Rei do Camarote é infeliz, mas, ao contrário dos amantes do ouro, esbanjador. Se ele tem e quer dinheiro, é para usá-lo; para comprar muito luxo.

Só que os bens de luxo também não são, para ele, finalidades em si. Tem gente (poucos) que querem bens de luxo pela qualidade, pela beleza e por outros prazeres diretos que eles proporcionam. Dirigir uma Ferrari, por exemplo, deve agregar valor, não ao camarote, mas à experiência do sujeito. Sentir o ronco do motor, a velocidade, o poder enorme aliado à elegância das formas; para alguns, isso bastaria.

Não para o Rei do Camarote. Ouçamo-lo: “Ferrari é um sonho de consumo de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo.” (CAMAROTE, Rei do. 2013.) Ele quer a Ferrari apenas porque todo mundo quer uma Ferrari. É tudo pelo social; tudo pelos outros. “Uma questão de status”. Ele não é nada egoísta; não coloca a si mesmo acima de tudo. Ele coloca a si mesmo abaixo de todos os outros, seu valor à mercê da opinião alheia. Se vamos acusá-lo de algo, é de excesso de altruísmo, preocupação constante com os outros, em se sacrificar pelos valores dos outros, deixando seus próprios valores de lado. Gosta de vodka, bebe champagne.

Até aí, contudo, nada fora do comum; quem nunca? A ausência de amor próprio pode ser um grande pecado, mas não é o que nos levou a condená-lo. O grande pecado do Rei do Camarote não é procurar a glória dos homens; é falhar nessa busca.

Pobre Alexander. Ele se circunda de todos os sinais exteriores do poder e ainda assim projeta impotência; continua sendo um coitado, um loser, um panguão. Não me levem a mal; aposto que há vários homens e mulheres querendo se aproximar dele; por oportunismo. É impossível acreditar, contudo, que algum homem realmente o inveje e que alguma mulher realmente o deseje. O sucesso feminino de que ele se gaba, e que lhe custa muito dinheiro, é realidade corriqueira de muito pé rapado.

O insuportável no Rei do Camarote é essa desconexão entre pretensão e realidade. Alguém aparentando ser o que não é, um tema clássico do humor (todo mundo sacou, aliás, que o sujeito é gay; isso leva a desconexão a um outro nível). Puxar o tapete das pretensões alheias; colocar cada um em seu devido lugar: sempre para baixo. O riso é a arma mais destrutiva de todas. É a única eficaz na arte da degradação moral e social. Nenhum valor que se queira absoluto pode tolerar o humor; por isso monarquias antigas e políticos modernos querem-no proibido, assim como todas as religiões (catolicismo, islã, feminismo, etc.). O humor é o ácido universal da condição humana e, para quem ainda nutria alguma nobre esperança, não tem absolutamente nada de moral, ético ou sustentável. O Rei do Camarote está nu, e nós aproveitamos para jogar um ácido. Quem mandou sair assim?

Não sei porque achamos graça em demolir pretensões. Tenho uma suspeita, que acho que deve servir para pelo menos alguns casos. Aparentar o que não se é é um jeito de tentar ser o que não se é. Tentar melhorar a própria condição. E no fundinho do coração de muita gente (não do meu, não do meu!) reside uma linda voz que lhes impele a rebaixar todo desejo de melhora alheio; que, por contraste, revela o quanto não temos melhorado em nossa. Humilhá-lo, ainda que em pensamento, alivia um pouco a angústia de nossa própria nudez.

O ambicioso, muito mais do que o pobre ou mesmo do que o rico, é sempre mau; é visto e representado ou como risivelmente falso ou como psicopata. O pecado não é estar em cima, se você nasceu em cima; é tentar chegar lá. Sendo assim, nem vem ao caso se o Rei do Camarote merece as zoeiras todas que recebeu (e não foram só zoeiras; teve muito ódio em estado puro também), pois, merecendo ou não, isso não tem nada a ver com o que nos levou a zoá-lo. A justiça é o melhor pretexto para as piores crueldades.

O que nos redime é a memória curta. Passado um mês, é só mais uma pessoa normal, vagando perdido neste mundo. E aposto que mesmo seu pior algoz das redes sociais, se porventura lembra-se que ele existe, já não sente mais nada de ruim, espera que ele encontre seu rumo e seja feliz.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A Morte dos Heróis





















It turns out que meus amigos do face são profundos conhecedores e admiradores do “Madiba”. Parece que só eu faltei a essa aula; só eu não li os livros. Todos manifestaram sua dor, alguns arrebatados pela emoção, desestabilizados com a morte do herói, do raio de luz que guiava suas vidas e que os dava esperança de um mundo melhor. Teceram loas ao fim do racismo, à democracia, à paz, ao espírito acolhedor dos sul-africanos. Bem, nem todos. Alguns outros amigos, minoritários, acusaram a farsa, pintando um outro Mandela: terrorista sanguinário e/ou monstro corrupto. Veja este e este links (calma, é da Piauí e da Enciclopédia Britânica; não do ARENA-Jovem).

Há um quê de espírito de porco na tentativa de destruir os ídolos alheios, por mais justa que seja a destruição. Aliás, especialmente se for justa. Mas, sendo justa, como não aceitar suas conclusões? Mandela não foi herói; foi apenas demasiado humano numa escala maior do que a dos outros mortais. Mandela o comunista radical, stalinista, o aliado de ditadores sanguinários e magnatas do diamante; Mandela o terrorista; Mandela o corrupto; é tudo verdade. Sustento, no entanto, que Mandela o herói também existiu. A discussão é o embate entre dois símbolos – um bom e outro mau – que não correspondem ao ser humano real. A posição minoritária não acrescenta nada, e acaba aparentando oposição aos valores representados pelo símbolo bom.

Mandela tinha seus esqueletos no armário. Não foi um puro, um santo. Mas representou para muita gente – via seleção midiática – coisas boas. Sua vida representa a vitória sobre o preconceito racial e, para coroá-la, a atitude da reconciliação ao invés da vingança. Eu penso que, se simboliza coisas boas, e há alguma razão para aplicar o símbolo ao sujeito real, deixem o herói estar. Que me importa se, no fundo, Mandela foi um canalha, ou se seu governo falhou em garantir a paz e prosperidade? Só não acreditem literalmente no herói, no santo. Em verdade, ninguém é santo; nem mesmo os santos.

Os dois lados da polêmica Mandela me lembram das brigas acerca da nossa história. Dos paulistanos que vandalizaram a estátua do Brecheret no Ibirapuera, e que querem derrubar a estátua do Borba Gato em Santo Amaro. Os bandeirantes não foram heróis; foram monstros, gananciosos, caçadores de índios. Concordo, desde que se adicione: e foram heróis. A coragem desses homens do mato, a sede pelo ouro, ou pedras ou escravos ou o que fosse, a determinação de entrar na mata fechada, de ser indiferente à morte como só um predador faminto é capaz; esse pecado desbravou nosso território e formou nosso país. Viva!

Os homens do nosso século são incapazes de querer algo com a mesma veemência e falta de culpa com que os homens da Renascença queriam. Olhamos para trás e nos horrorizamos com a violência. Os vícios dos outros são sempre mais chocantes. Algo similar ocorre quando olhamos os ícones políticos de meados do século 20; todos – Che, Churchill, Mandela –, envolvidos em muito mais violência do estamos prontos a tolerar hoje em dia.

Não quero adotar o papel ridículo daquele que condena o tempo em que vive para exaltar um passado virtuoso, que, sabemos, não existiu. Digo que estamos corretos em condenar a violência política daqueles tempos, mas temos também o dever de compreendê-la em seu contexto; o mesmo vale para a escravidão. E vou além: nossos revoltados anti-bandeirantes também têm um herói legítimo para substituir os bandeirantes: Zumbi dos Palmares. Para o bem da inocência deles, espero que jamais leiam uma biografia de Zumbi. Ou melhor, espero que leiam. Inocência é coisa perigosa; adora atirar a primeira pedra.

O panteão dos homens é como o dos deuses gregos – grandes feitos e grandes defeitos; e não menos digno de culto. Celebremos Mandela, os nossos bandeirantes, Zumbi. A Inglaterra, país tão conciliador, tem lições a nos dar: celebram Henrique VIII e Thomas More – nenhum dos quais era flor que se cheirasse.

Crescer individualmente requer, entre outras coisas, perder a devoção incondicional aos pais, aos professores, etc.; vê-los como os homens que são. Uma cultura madura, da mesma forma, não acredita na verdade literal dos heróis; e por isso mesmo pode prestar-lhe homenagens mais verdadeiras. A admiração de uma figura heroica, que fez algum grande bem, não requer a salvação de sua alma. Mandela lutou pelo bem, marcou a percepção de seu tempo de forma positiva. Sendo assim, viva Mandela, ainda que eu – e não só eu – não saiba nada do homem! 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobre os perigos da leitura cuidadosa

Está depositada na devida secretaria. 148 páginas. Resta às engrenagens acadêmicas triturá-las e transformá-las em pasta. O tempo que essas páginas custaram, e o mal que produziram, jamais serão recuperados. Indo depositá-la, tinha o desejo de que, logo que a tivesse entregue, uma ânsia mais forte do que eu me fizesse correr ao banheiro e vomitar copiosamente, tirando das entranhas o bolo espiritual que me pesava. A realidade foi bem mais serena, e voltei mais leve mesmo sem fazer jorrar minha bile nos canos da FFLCH. Finalmente me libertei do espírito maligno de Santo Tomás de Aquino (sim, apaguemos o título! Foi a primeira e mais sábia lição da faculdade). Não é dele, contudo, que quero falar. Ele foi apenas o meio, o diabinho subalterno a serviço de uma máquina funesta que certamente foi pensada no inferno, mas que criou consciência própria e desbancou a Lúcifer e todos os outros.

Pós-graduação em Humanas numa instituição séria deste país é negócio de réprobos. Exotericamente, vende-se trabalho acadêmico, um domínio do texto de algum palpiteiro célebre do passado. O que se prepara, contudo, no plano esotérico, é a possessão voluntária da alma estudantil pelo espírito do morto.

Muito se critica a universidade brasileira por não formar filósofos, mas historiadores de filosofia, eruditos de filosofia. Sabem o que Platão ou Espinosa diriam do PT, mas são incapazes de formular algum argumento que vá além dos chavões. O que ninguém diz, ou ninguém quer ver, é que a ausência de filosofia não é uma escolha, ou mesmo, como achei em momentos mais ingênuos (quando estava por fora, achando que todos “tinham pontos”), efeito de uma falta de coragem, um medo de se expor. Isso implicaria que a possibilidade de fazer filosofia é rejeitada, quando na verdade ela nem existe.

Ao ler qualquer texto, a reação da pessoa normal minimamente formada (que já transcendeu o “se está escrito, é verdade”) é se perguntar se aquilo é verdade. A afirmação bate com sua intuição e sua experiência sobre o assunto? O autor dá algum argumento? Os argumentos são bons? Se for falso, quais as implicações? E se for verdadeiro? Isso é uma mente normal em funcionamento. Mas a vida acadêmica em Humanas não é compatível com uma mente normal. E isso não é de todo o mal...

No começo de uma vida acadêmica, a grande luta é deixar de lado essa faculdade de julgar; abrir mão da pergunta básica por trás de toda empreitada cognitiva: “Isso é verdade?”. A postura é sábia. Para entender um pensador, deixa-se de lado as próprias convicções (e mais, os gostos e preconceitos) e lê-se o que ele disse de espírito aberto, procurando reconstruí-lo e entender a lógica interna daquele pensamento. Junto com o entendimento ganho, vem também o demônio de brinde.

Primeiro ele te dá o gostinho bom que vem ao se habitar o mundo conceitual que se estuda. Um mundinho pequeno, fácil de se localizar. Saber operar dentro das regras dadas pelo sistema, discutir, investigar os menores recantos à procura de novas migalhas de informação; como é bom encontrar aquele detalhe textual que embasará toda uma nova interpretação!

Às vezes a pergunta ressurge: mas será que ele acertou quanto a essa opinião? Será que Tomás fez bem ao propor a pena de morte a hereges, ou ao dizer que os bem-aventurados do Céu se alegrarão ainda mais ao contemplar a desgraça dos condenados? Só que já não é tão fácil respondê-la, dado que cada termo dele exige uma definição também nos termos dele, e que as posições em jogo – agora já se sabe – se davam num contexto conceitual diferente do nosso, etc. Matéria e forma, potência e ato, intelecto passivo e ativo; quanto mais se lê, mais difícil transplantá-los para este nosso mundo de facebook e jogos universitários.

Imagine uma foto digital. Temos ali uma representação relativamente fiel, embora imperfeita, de um aspecto da realidade. Agora aumente o zoom milhares de vezes, de modo que cada pixel ocupe sua tela inteira. Vida acadêmica é maximizar pixels. Uma vez nesse nível, aprende-se a ir de um a outro; dá até para prever como será o próximo; decorar a ordem dos pixels, entender o sistema por dentro. Só que nesse nível a questão da representação desaparece, pois aqueles quadrados monocromáticos obviamente não se referem a nada. “Hã? Esse negócio de potência e ato, intelecto agente, synderesis, era para ter a ver com o mundo real??”  O único modo de se entender qualquer um desses conceitos, em Tomás, é segundo os termos que ele próprio usa. Onde termina a terminologia e começa a realidade que ela nomeia? Quanto mais se lê, mais a resposta tende ao “nunca”.

Logo, a única resposta possível é ver se a tal opinião concorda ou não – ou melhor, remodelar todo o sistema conceitual para que a tal opinião concorde – com o resto do sistema. E daí você já está tão dentro do labirinto que esqueceu o caminho de volta e nem quer mais voltar; esqueceu que há algo fora dele e o resquício de memória, já bem abafado pelo inconsciente, só suscita dor e medo.

Um dia você acorda e o diabinho já terminou o serviço: a possibilidade da questão sumiu. O que era mapa virou quadro virou mundo. O mundo em que a synderesis abarca os princípios da lei natural não tem nada a ver com o mundo em que a Dilma se reelege, não porque estejam distantes no tempo, mas porque habitam universos paralelos. (“Mundo como ideia”? Não, nada a ver, e não me façam falar de uma raça ainda mais perdida...). Não é que os acadêmicos brasileiros tenham medo de discutir certas questões. É que é impossível conceber certas questões, a verdade é algo que não surge. Não é uma defesa do relativismo ou do subjetivismo, mas a total indiferença – ou melhor, incompreensão e esquecimento – quanto à própria noção de verdade.

Já repararam que os grandes filósofos nunca foram bons leitores da filosofia alheia? Aristóteles “não entendeu nada” de Platão. Onde já se viu, achar que refuta a noção de participação com aqueles argumentinhos rasteiros! Tomás por sua vez não compreendeu Aristóteles, tentando encaixá-lo num outro universo de pressuposições. Leibniz tinha parca noção dos escolásticos que tanto respeitava, e adulterou-os sem limite. É tudo verdade. Descartes, Espinosa, Kant, Hume, Wittgenstein; se citaram a outros, foi para mostrar que nem existia filosofia séria antes deles.

Não foi por acaso. É justamente porque não foram leitores profundos que escreveram coisas profundas. Agora durmam com essa! 
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