quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ad Hominem Entrevista: Olavo de Carvalho

HÁ QUASE vinte anos, a indigência intelectual brasileira, sempre tão orgulhosa de suas nobres realizações, ganhava nome e sobrenome: O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras. O sucesso clamoroso do livro, que em pouquíssimos meses esgotou várias edições, era, a um só tempo, acontecimento preocupante e auspicioso: se de um lado ficava evidente que a inteligência nacional – ou sua falta – seria suficiente para preencher dezenas de volumes, em contrapartida o interesse pelo diagnóstico e possível tratamento sugeria que talvez não estivéssemos condenados a desaparecer do mundo civilizado de forma definitiva.

Muita coisa piorou de lá pra cá. A ascensão do PT ao poder, a hegemonia do pensamento de esquerda – predominantemente em sua versão gramsciana – e a quase absoluta sonegação de todo pensamento filosófico e político que não seja, de modo mais ou menos explícito, afeito às comodidades e cumplicidades daquilo que um dia já ousaram chamar de “jornalismo”, parecem denunciar o fracasso do empreendimento intelectual e pedagógico de Olavo de Carvalho. Se tudo piorou e a “longa marcha da vaca para o brejo” é mesmo o inescapável roteiro do pensamento guarani-kaiowá, que é que se ganhou com tudo isso?

Pois a ironia é precisamente esta: quase vinte anos depois, Olavo de Carvalho publica O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e inicia novo ciclo com novo sucesso. Milhares de exemplares vendidos e a mesma certeza: se a intelligentsia brasileira continua a dar o exemplo do que não se deve fazer, o filósofo reafirma seu propósito de mostrar que nem todo mundo está dormindo enquanto a vaca marcha, lentamente, para o infausto destino. E – Deus nos leia! – talvez o prognóstico seja outro, e menos acabrunhante, depois que os imbecis passaram a ser chamados, sem respeitos humanos, pelos respectivos e apropriados nomes.

Ad Hominem entrevista Olavo de Carvalho: para os imbecis de sempre, para os idiotas de costume, e para todos os outros que não se contentam em ser nem uma coisa nem outra.

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O sucesso instantâneo do seu novo livro nos leva a crer que o “olavismo” já não cabe nos limites de um gueto virtual – como querem alguns –, mas se alastra com velocidade entre as mais diversas camadas da sociedade brasileira. Se isto é muito bom, ao mesmo tempo há quem aponte um efeito colateral da dita “orkutização do olavismo”, a saber, o surgimento de um exército de entusiastas das suas ideias os quais aparentam não ter preparo intelectual para compreender o que justifica seu próprio entusiasmo. O senhor concorda com essa análise? Como avalia essa recepção “quase cega” das suas ideias por parte de seus leitores?

Tenho uns trinta e seis mil “seguidores” no Facebook (que só são seguidores num sentido ótico da palavra), uns cem mil leitores espalhados pelo Brasil e talvez uns duzentos mil ouvintes e espectadores no Youtube. Mas, de todos esses, só uns dois mil – menos de um por cento – são meus alunos no Seminário de Filosofia, e estes, a pedido meu, evitam participar de discussões na internet, só o fazendo quando é no quadro de alguma atividade profissional ou intelectual mais sistemática, como é o caso do Felipe Moura Brasil, o do Ronald Robson, o do Gustavo Nogy e o de mais alguns poucos. Por isso, o que acaba aparecendo superficialmente como “discussão” das minhas idéias é justamente o que vem do público mais geral, que não tem comigo nenhuma relação de aprendizado e que me chama de “professor” apenas por gentileza. Não tem sentido esperar que esse público tenha uma compreensão das minhas idéias no nível que a têm os meus alunos. Deles vêm, com freqüência, perguntas mal formuladas e opiniões toscas, que refletem um esforço de aprendizado sincero mas ainda muito incipiente. Alguns observadores maliciosos ou burros, no entanto, nada sabendo nem querendo saber dos meus cursos ou dos meus alunos, fazem questão de tomar justamente esse público geral como amostra típica dos resultados do meu ensinamento. É uma deformação caricatural monstruosa. Todo escritor ou filósofo tem um público geral que o aprecia sem compreendê-lo muito, mas tem também o direito de ser julgado pelos seus escritos e pelo seu ensinamento direto e não pela resposta incontrolável que obtém de um público difuso. Já pensou o que seria de Sócrates se não fosse julgado pelo que Platão e Aristóteles aprenderam dele, mas pelo que se lê a seu respeito no trabalho escolar de um estudante brasileiro do segundo grau? Que seria de Karl Marx se toda a imagem que temos dele não fosse baseada no que ele legou a um Georg Lukács ou um Karl Korsch, mas tão-somente no que o Punheteu sabe a respeito? Todo escritor, todo filósofo é “orkutizado”, mas somente um – este entrevistado – é aferido preferencialmente pela sua imagem orkutiana, que não o reflete de maneira alguma. Alguns fazem essa caricatura de análise por malícia, outros por ignorância genuína, mas nos dois casos o que está verdadeiramente orkutizado é o cérebro dessas criaturas. A confusão entre os dois níveis de recepção é um erro tão grosseiro, que o fato mesmo de que tantos o cometam é um índice sociológico da crise nacional de QI. Pior ainda é que aqueles que criticam a adesão simplória de certa parte do público às minhas idéias têm uma visão ainda mais simplória dessas idéias, baseada inteiramente em frases que ouviram nos meus programa de rádio sem nunca ter lido os meus livros nem freqüentado os meus cursos. Esses detratores do meu trabalho criticam nas outras pessoas o erro que eles próprios estão cometendo, em maior escala, nesse mesmo instante. Por que a simpatia “quase cega” deveria ser mais desprezível do que a hostilidade igualmente cega? Aplaudir sem compreender muito é por certo mais decente do que condenar sem compreender nada.

Apesar das frequentes advertências que o senhor, baseado no esquema aristotélico dos quatro discursos, fez e continua fazendo quanto à necessidade de dominar os registros poéticos e retóricos antes de passar ao estudo da filosofia, boa parte de seus admiradores e até alunos parece interessar-se sobretudo nos estudos teóricos (tendentes à lógica, segundo a classificação aristotélica). Isso produz fenômenos curiosos, como algumas interpretações bastante rudimentares de conceitos densos da teologia. Como o senhor explica isso? O que o senhor julga que pode ser feito para despertar as pessoas para a importância filosófica do estudo das letras?

O problema é muito mais sério do que eu mesmo imaginava no início. A presente geração foi toda alfabetizada pelo método socioconstrutivista, que a incapacitou não só para o domínio das regras da gramática, mas para a percepção das nuances, dos tons, da harmonia. É como uma surdez tonal adquirida. Para corrigir isso, a simples leitura de boas obras de literatura não basta. O pessoal, com isso, adquire cultura e às vezes progride um pouco na percepção das formas verbais, mas continua incapaz de “entrar” pessoalmente na tradição literária, de participar dela ativamente. Não sei como resolver esse problema, mas entendo que é ele que leva tantas pessoas a se sentirem mais à vontade em terrenos mais impessoais, onde a simples apreensão do sentido explícito dos conceitos parece bastar. É claro que nisso se enganam. Sem um bom “ouvido” literário não se pode ler com proveito nem o Tractatus de Wittgenstein, para não falar de livros de teologia.

Por falar em literatura, o senhor certa vez disse que Bruno Tolentino foi o melhor poeta em língua portuguesa desde Camões – e seus críticos adoram repetir essa frase em tom de chacota. O que faz de Tolentino um poeta tão grande, em sua opinião? Em que sentido ele seria comparável a Camões?

Acho que quem não percebe isso à primeira vista tem um cérebro lesado. A temática do Bruno abarca o universo quase inteiro da experiência humana e intelectual do século XX, da qual seus concorrentes brasileiros mal chegam a apreender uns pedacinhos, e ele a expressa com um domínio técnico alucinante. Nenhum outro poeta brasileiro fez isso. Nem Drummond, nem Manuel Bandeira. Em carne e osso, o Bruno foi notoriamente um semilouco, um mitômano, mas quantos poetas não o foram? Nunca ouviram falar de Guillaume Apollinaire, de Christopher Marlowe, de Fernando Pessoa?

A tese exposta em sua obra Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos – o discurso humano é uma potência que se atualiza de quatro formas diferentes, não necessariamente contraditórias entre si, mas complementares e com diferentes níveis de credibilidade – foi, desde seu lançamento, ou ignorada ou completamente incompreendida pelos estudiosos. Menção honrosa deve ser feita aos portugueses (professor Mendo Castro Henriques entre eles). O senhor sabe de algum professor brasileiro que tenha lido a obra, ou chegou a se corresponder com alguém, acerca desse estudo?

Quando esse livro saiu, fazia trinta anos exatos que nada se publicava de autor brasileiro sobre Aristóteles. Isso dá uma idéia do terreno miserável onde plantei aquela semente. Para não admitir que tinha ficado para trás, o pessoal da USP desencavou uma tese do Oswaldo Porchat Pereira, já velha de três décadas, e a publicou às pressas, mas era apenas um bom trabalho escolar, sem nada de original. Só obtive audiência inteligente no círculo de estudiosos de lógica, discípulos de Newton da Costa, especialmente Alexandre Costa Leite. No exterior, o meu livro foi muito bem recebido. O primeiro a lê-lo e aplaudi-lo foi o biólogo Antoine Danchin. Depois veio o círculo inteiro dos discípulos de Eric Voegelin – Frederick Wagner, Tudor Munteanu, Jody Bruhn, David Walsh. Roger Kimball recomendou o livro à Encounter Books, que prometeu publicá-lo se eu lhe acrescentar mais textos sobre o mesmo assunto para formar um volume mais grosso. Em Portugal, Mendo Castro Henriques, João Seabra Botelho, Carlos Aurélio e todo o pessoal da revista Leonardo. Na Romênia, Andrei Pleshu, Horia Patapievici, Gabriel Liiceanu e muitos outros.

O senhor tem dito que alguns de seus alunos já estão mais bem preparados para atuar na vida intelectual do que muitos professores universitários. E também alerta com frequência sobre a importância de passar anos estudando antes de se manifestar publicamente. Levando isso em conta, para quando podemos esperar a aparição pública de seus melhores alunos? Eles tenderão a ingressar nos meios já existentes (como universidades e jornais) ou criar postos de autoridade paralelos ao cenário cultural atual? O que o senhor julga ser mais adequado?

Estou recolhendo e analisando centenas de projetos de trabalhos de conclusão de curso que, mais dia menos dia, serão publicados em forma de livros. Quando digo que meus alunos têm mais preparo do que o típico professor universitário brasileiro de hoje, falo com base nessa documentação e não em impressões gerais. Nem menciono o meu filho Luiz Gonzaga, que, sem nunca ter freqüentado universidade alguma, não tem concorrentes à sua altura no meio universitário nos campos da sua escolha, as religiões comparadas e a filosofia medieval. Alguns dos meus alunos já têm livros publicados e dão uma amostra do que estou dizendo. Virgilio Dalla Rosa e Rodrigo Gurgel são exemplos. Eles superam de longe qualquer concorrente nos seus campos respectivos. Quando a produção dos demais começar a aparecer, ela injetará vida nova na atividade intelectual deste país. Talvez eu crie uma revista de cultura e promova cursos dados pelos meus alunos, mas, fora disso, não tenho planos. Cada um conduzirá sua vida como bem entenda.

Atualmente, que filósofos vivos o senhor considera dignos de atenção? E por quê?

Jean-Luc Marion, John Deely, Harry Redner, Glenn Hughes, Horia Patapievici, muitos outros. A inteligência não morreu no mundo. Só no Brasil.

Em um artigo de 2006 (A fossa de Babel, constante em O mínimo..., p. 287), o senhor escreve: “É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.” Sete anos após ter escrito essas linhas, o que mudou?

Muita coisa. Hoje tenho milhares de alunos que estudam a sério e tiram até mais proveito das minhas aulas do que eu teria esperado. Tudo melhorou muito, mas muito mesmo.

A maior e mais importante parte da sua obra permanece em estado bruto: em gravações de vídeo e em transcrições, por exemplo. Várias obras esperadas por seus alunos, como O Olho do Sol e A Mente Revolucionária, ao que parece não terão mais uma forma unitária, restando dispersas em registros de diferente natureza (apostilas, transcrições de aulas, palestras, artigos etc.). O que de concreto em termos de publicação, no entanto, seus leitores podem esperar para breve, seja em inéditos, seja em reedições, como se fez recentemente com Aristóteles em Nova Perspectiva?

Estou preparando para publicação o curso Sociologia da Filosofia e o Rodrigo Gurgel está dando retoques em Raízes da Modernidade, que sairá com outro título porque descobri que o Pe. Lima Vaz publicou um livro com esse título faz muitos anos. Esses dois sairão no ano que vem, sem falta. E Visões de Descartes tem lançamento marcado para 22 de novembro. Mas a massa de papéis arquivados à espera de correção é uma monstruosidade. Mesmo que eu chegue à mais extrema velhice não creio que conseguirei preparar todo esse material para edição. Legarei o abacaxi às boas almas que o desejem.

O senhor já afirmou algumas vezes que a multiplicidade de focos de atenção e intervenção da sua obra lhe impossibilita de dar a ela uma forma bem ordenada e editorialmente de fácil apresentação. O senhor poderia falar um pouco mais sobre que relação há entre sua postura intelectual e os modos de registro da mesma?

Na filosofia é tradicional o contraste entre as mentes sistemáticas, que vão construindo uma obra ordenadamente, como Kant ou Husserl, e as mentes reativas, que precisam de algum estímulo momentâneo para registrar suas idéias por escrito, como Leibniz ou Pascal. Guardadas as devidas proporções, pertenço decididamente ao segundo tipo. Às vezes fico meditando um assunto por anos a fio, sem escrever uma palavra. Mas basta que alguém diga uma bobagem a respeito, e instantaneamente começo a preencher páginas e páginas. A questão do Império sempre andava na minha cabeça, mas foi só a conferência desastrada do José Américo Mota Pessanha que me fez escrever O Jardim das Aflições. O problema, hoje, é que os estímulos são em número excessivo, ultrapassam a minha capacidade de reagir por escrito. Então registro minhas idéias oralmente, nas aulas.

No Brasil, nenhum filósofo conseguiu até hoje criar discípulos na acepção eminente da palavra: intelectuais de alto nível que prossigam com pesquisas que, de algum modo, são respostas à orientação que receberam dos seus mestres. Isso, que é coisa comum em outros países (inclusive em alguns da América Latina), no Brasil inexiste e é até visto com certo desprezo. O senhor, contudo, em alguma medida já criou condições para que nas próximas décadas se desenvolva um discipulado a partir de sua obra. Ao avaliar o seu pensamento e sua atuação pública, o que o senhor imagina serem as contribuições e problemas mais importantes com que no futuro seus alunos acabarão se preocupando mais?

O problema essencial é restaurar o senso da filosofia como uma disciplina integral da inteligência, superando, de um lado, a mutilação burocrático-profissional e, de outro, o empastelamento ideológico-partidário. Creio que alguns dos meus alunos já estão bem afiados para entrar nessa luta. Em segundo lugar, é preciso despertar da “longa noite” em que a cultura brasileira mergulhou nas últimas décadas. Temos de voltar a ser os contemporâneos de Manuel Bandeira, de Gilberto Freyre, de Otto Maria Carpeaux, de Mário Ferreira dos Santos, de Álvaro Lins e de tantos outros. Temos de fazer a ponte entre as gerações e produzir obras que não desmereçam o legado desses nossos ancestrais. Com isso o campo de batalha já se estende para muito além da área da filosofia em sentido estrito. Em terceiro lugar, é preciso escrever a história cultural e psicológica das últimas décadas, que os profissionais universitários abandonaram ou falsificaram quase que por completo. Em quarto, é preciso abrir um rombo no mercado editorial e inundá-lo com livros fundamentais do século XX que permanecem desgraçadamente ignorados no nosso meio. Neste ponto, muita coisa já se fez nos últimos anos, partindo de sugestões que dei nos meus livros e artigos, mas ainda há muito por fazer. Em quinto, é preciso atualizar o público brasileiro com a nova situação político-militar do mundo, que a nossa mídia ensina a ignorar. Esse é o programa.
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