Estou aproveitando a ocasião do último post do Rafael para escrever algumas coisas que aprendi matutando sobre poesia nos últimos anos. Não se trata de implicância com Bruno Gripp — que não conheço pessoalmente ou mesmo “virtualmente” —, nem de uma defesa da poesia de Bruno Tolentino, com a qual tive pouquíssimo contato, geralmente por meio de poemas esparsos que podem ser encontrados na internet. Se me remeto à celeuma que se estabeleceu entre Falcón e Gripp é para refletir sobre uma postura muito corrente entre alguns leitores mais cultos de poesia.
Bruno Gripp, para demonstrar a inépcia técnica de seu xará, o Tolentino, tomou os versos de um dos poemas de Imitação do amanhecer, escandiu-os e terminou por concluir que o poeta não sabia manejar os alexandrinos. O Rafael, por meio de uns versos de Castro Alves, procurou alertá-lo sobre a utilização da versificação espanhola (para quem quiser se instruir mais sobre o assunto, sugiro a leitura da introdução de Péricles Eugênio da Silva Ramos à poesia completa de Álvares de Azevedo, publicada pela Saraiva no começo da década de 1960). Mesmo percebendo que muitos dos problemas identificados até então “caíam por terra”, Gripp continou insistindo na inadequação de três versos ao esquema métrico que parecia ser o do poema em questão.
A lição que o Rafael nos deu com seu texto — e aqui não estou dizendo no sentido de que ele teria “dado uma lição” no Gripp, mas sim que ele apresentou uma visão muito útil de como a poesia precisa ser lida — é que um poema, assim como qualquer texto literário, é alguma coisa mais do que a soma de suas partes. Quando Gripp analisa metricamente cada verso de maneira isolada, ele, logo de saída, está perdendo de vista algo que deveria ser considerado desde o princípio: a unidade rítmica do poema. Não estou afirmando que tal unidade seja evidente no poema de Tolentino, que é de fato de difícil apreensão formal, e sim que o importante é saber se os versos estão estruturalmente integrados e não se cada um dos deles foi metrificado exatamente do modo como os manuais prescrevem. Muitas vezes, um bom poeta se distingue por reconhecer a necessidade de distorcer algum verso para que este melhor se subordine à fluência do conjunto. Farei aqui uma analogia com a escultura.
O escritor ouropretano Bernardo Guimarães descreve, no capítulo IV de O seminarista, uma visita de sua personagem principal à Igreja Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, no adro da qual se encontram os Doze Profetas do Aleijadinho. O narrador apresenta as célebres estátuas da seguinte maneira:
Não é preciso ser profissional para reconhecer nelas a incorreção do desenho, a pouca harmonia e falta de proporção de certas formas. Cabeças mal contornadas, proporções mal guardadas, corpos por demais espessos e curtos e outros muitos defeitos capitais e de detalhes estão revelando que esses profetas são filhos de um cinzel tosco e ignorante... Todavia as atitudes em geral são características, imponentes e majestosas, as roupagens dispostas com arte, e por vezes o cinzel do rude escultor soube imprimir às fisionomias uma expressão digna dos profetas.
Ele chega a atribuir a feiura do conjunto às deformidades do artista: “É sabido que estas estátuas são obra de um escultor maneta ou aleijado da mão direita, o qual, para trabalhar, era mister que lhe atassem ao punho os instrumentos./ Por isso sem dúvida a execução artística está muito longe da perfeição”. No que pese o preconceito que até então vigorava em relação à arte barroca, a dificuldade de se talhar a pedra-sabão (que se esfarela facilmente, sendo difícil imprimir-lhe contornos mais delicados) e a evidente fealdade de algumas estátuas, Bernardo Guimarães deixou passar um detalhe importante: a aparente desproporção das formas tem por objetivo corrigir a distorção que a perspectiva causa às figuras. As estátuas dos profetas foram feitas para serem vistas de cima para baixo, e não frontalmente. As cabeçorras e os braços estendidos, enormes e longuíssimos — ao passo que as pernas são atarracadas —, têm por função compensar o fato de que as formas mais distantes, percebidas mais ao alto, aparentarão ser menores do que aquelas que estão mais próximas. Portanto, parece que Antônio Francisco Lisboa desconhecia completamente as leis da proporção, quando na verdade era Bernardo Guimarães que desconhecia as da perspectiva. Às vezes, pouco conhecimento é mais perigoso do que conhecimento nenhum.
Com a poesia se dá o mesmo: é preciso considerar a harmonia do conjunto e não se restringir a uma análise de cada verso em separado. Com isso não estou querendo dizer que não há espaço para a consideração dos versos individualizados, mas tal consideração deve estar subordinada à visão do todo, e não o contrário. A escansão é apenas uma das etapas do procedimento interpretativo. Da mesma maneira, é complicado considerar isoladamente as imagens que o poema traz; é preciso também verificar se elas conseguem se integrar coerentemente num todo semântico maior, que é o do poema. O problema de dar ênfase à escansão dos versos em detrimento da harmonia entre eles (colocando a fórmula acima da forma) é que isso deseduca os sentidos, prejudicando o desenvolvimento da experiência estética, que ocorre pela síntese dos elementos e dos aspectos da obra na imaginação do leitor. A verdadeira crítica literária é aquela que consegue demonstrar os termos pelos quais tal síntese é operada, pois a interpretação (que incorpora também a dimensão formal da obra) é sempre o objetivo maior.
Será então que o poema de Tolentino é harmônico, malgrado sua heterogeneidade métrica (ou mesmo por conta desta)? Para responder a isso eu precisaria dedicar um tempo ao estudo do poema, o que, por ora, não pretendo fazer, pois acredito que mais importante do que saber se Tolentino é o maior poeta da língua portuguesa depois de Camões é mostrar para os leitores as armadilhas de uma leitura muito fechada nas questões técnicas primárias.
Uma linha de investigação que eu adotaria no caso do poema que deu origem a esta discussão é pensar se a ampla utilização do enjambement, que encurta ou abrevia a pausa no final dos versos, não força uma reconfiguração da posição das cesuras para o bem do equilíbrio rítmico de todo o conjunto. Estará Tolentino fazendo algo semelhante ao que fez Aleijadinho com seus profetas, distorcendo os metros para que eles soem mais harmônicos ao ouvido interno dos leitores? É o caso de procurar perceber se há alguma ordem por trás da variação métrica, se ela segue algum princípio discernível. Enfim, as objeções técnicas de Gripp à versificação de Tolentino não provam nada. Deveríamos nos questionar se a variedade dos metros, e até mesmo de estilos de versificação, é fortuita (resultando, neste caso, da inaptidão do poeta em manter uma metrificação homogênea) ou se ela tem uma razão de ser, formalmente falando. Ela (a variedade) não é, necessariamente, uma deficiência.
Em suma, foi mais ou menos isto que aconteceu: a princípio, Gripp imaginou que quase metade dos versos do poema analisados estavam metrificados de forma equivocada; com a descoberta de que muitos desses versos eram dodecassílabos à espanhola (sem gracinhas, por favor), restaram três com a métrica em discussão. Posteriormente, duas hipóteses foram aventadas que explicavam a aparente inadequação de um desses versos; ainda restam dois. É de se imaginar, pelo andar da carruagem, que logo teremos também uma explicação aceitável para ambos. Por outro lado, Falcón tem insistido, desde o começo, na suposta harmonia do todo. O ouvido interno do Rafael, até agora, mostrou-se mais eficiente do que o esquadro do Gripp. E digo isto não para insinuar uma inaptidão ou a falta de sensibilidade estética deste, mas para criticar certa tendência de alguns leitores de poesia que acabam incorrendo numa redução dos poemas a seus aspectos meramente técnicos, ignorando a dimensão propriamente formal da obra, cuja consideração vai além da análise dos procedimentos empregados na construção do objeto poético.