quarta-feira, 28 de março de 2012

Confissões

A leitura recomendada do dia (mais especificamente aos católicos e àqueles que se interessam pela Igreja Católica) é esta sobre o Sacramento da Confissão ou Reconciliação. Os três textos do link são ótimos, mas meu foco está no terceiro, que relata as experiências de um padre (e frade franciscano) como confessor, e o que tem mudado ao longo das décadas.

Nasci e vivo num período posterior às mudanças por ele relatadas; contudo, como a Igreja não é homogênea, convivendo nela elementos conservadores, liberais, progressistas, tradicionalistas, etc. tenho alguma experiência das duas maneiras de se realizar o Sacramento. Elas partilham, é claro, da mesma essência, mas suas diferentes roupagens externas têm relevância prática. Abaixo faço um "tipo ideal" das duas (ou seja, uma descrição genérica com os diversos elementos que as caracterizam, sabendo perfeitamente bem que, na prática, poucos casos concretos unem todos esses elementos).

A maneira antiga: a confissão se dá num confessionário, um objeto de madeira (cujo uso começou no século XVI, embora janelas de confissão com grades separadoras já existissem há mais alguns séculos) que garante a separação, e a anonimidade, entre sacerdote e fiel. O fiel se ajoelha, o padre abre uma janelinha, o fiel confessa uma lista de pecados de acordo com a gravidade deles (definida no ensino oficial da Igreja), às vezes seguindo os Dez Mandamentos como um guia. O padre lhe prescreve alguma penitência ao fiel: algo como 3 pais-nossos e três ave-marias, e diz o ato de absolvição.

A maneira nova: a confissão se dá numa pequena sala, ou mesmo num espaço um pouco apartado dentro da igreja. Sacerdote e fiel estão ambos sentados ou de pé, sem nada que os separe; mantêm contato visual. O fiel conta suas angústias ao padre, revelando aqueles atos, situações e relações que mais pesam em sua consciência. O padre prescreve uma penitência mais intrinsecamente ligada às dificuldades do fiel, como fazer as pazes com quem ele brigou, fazer alguma leitura específica da Bíblia, fazer uma boa ação, etc. e diz o ato de absolvição.

A maneira antiga (que é antiga para nós; já é algo muito diferente do que era a confissão e a penitência nos primeiros séculos da Igreja) visa acima de tudo facilitar as coisas para o fiel. Como o foco é em confessar atos pecaminosos, com especificidade o bastante para que fiquem caracterizados, e isso é algo que gera uma certa vergonha, cria-se uma situação na qual fiel e padre não se identificam. Ele facilita a transformação da confissão num ato rotineiro e indolor. As próprias penitências, embora algo mecânicas, são quase sempre muito leves (a ideia de que padres no passado davam centenas de pais-nossos e ave-marias para o pobre fiel passar o dia rezando em penitência é falsa; a coisa sempre foi muito leve). O fiel vai, confessa sua lista de forma impessoal, recebe uma pequena penitência (às vezes também um conselho genérico), ouve as palavras da absolvição e sai renovado. O pior que pode acontecer é o padre ser ranzinza e ser ríspido, mas mesmo nesse caso o custo psicológico é baixo, pois o padre pode mesmo ser um anônimo. A experiência é indolor (ao contrário do que mostram os filmes), mas também tende à complacência.

A maneira nova exige mais do fiel. Ele está ali para abrir sua alma ao sacerdote, expondo elementos comprometedores de sua vida. Exige mais do padre também, que tem que olhar mais profundamente cada caso e tocar o fiel de alguma maneira pessoal, sempre tomando cuidado para não julgá-lo; ele deve ali ser exemplo da infinita misericórdia de Cristo. Corre-se um risco maior de se desvirtuar a experiência, transformando-a numa sessão de psicanálise amadora; ao mesmo tempo, a forma de ministrar o Sacramento tem um potencial maior de transformar internamente ao fiel, que é exatamente sua finalidade.

A primeira preocupa-se em dar aos fiéis, ao maior número deles, as condições mínimas necessárias para não irem para o Inferno. Bem ao estilo do Catolicismo trentino, é muito tolerante e que exige pouco das massas, desde que se mantenham dentro das regras, muito bem definidas, do jogo. A segunda quer elevá-lo à santidade; e por isso exige mais dele, mas também tem mais a oferecer. Representa o Catolicismo que já passou pelo Concílio Vaticano II, que ao invés de se fechar ao mundo, abre-se para ele, confiante nas promessas de Cristo. Talvez por isso mesmo a mudança no nome: ao invés de Confissão, falamos agora em Reconciliação.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Uma carta acerca da tolerância, ou: Por que ninguém tem paciência com os fumantes?

Por Erick Vasconcelos


O motivo pelo qual liberais clássicos como John Locke escreveram cartas acerca da tolerância foi porque eles reconheciam que era necessário o mínimo de respeito aos hábitos e crenças das outras pessoas para que uma sociedade pacífica fosse possível.

A ideia liberal clássica era que todo mundo poderia ter sua casa, sua família, seu trabalho e que, depois de suar durante o dia, poderia entrar na sua propriedade e louvar o seu deus sem ninguém encher o saco.

Não é à toa que os liberais sempre estiveram na vanguarda de lutas pelos direitos dos negros, das mulheres, dos homossexuais e de outras minorias - porque sabiam que sem uma esfera privada bem delineada em relação ao que é "público", fatalmente a gente cai em situações sociais de conflito.

Por exemplo, por conta da intolerância social com os usuários de drogas, o que temos é um combate bizarro a entorpecentes que custa uma bolada e mata milhares todo ano. Também foi assim quando os puritanos resolveram que as bebidas deveriam sumir da vida americana.

O argumento não é que você, pai de família honrado, respeitável e tradicional, tenha que receber os maconheiros em casa com toda a pompa, mas só que você não vai ficar fazendo barraco quando vir alguém com baseado na rua. Afinal, a vida é do maconheiro, deixa ele.

Assim, sob o liberalismo, todo o progresso social era no sentido de que os hábitos, mesmo os ruins, são privados, e ninguém tem nada a ver com isso.

Igualmente, qualquer boçal hoje em dia sabe que o cigarro faz mal, que seu uso excessivo pode causar câncer, além de, segundo as carteiras de cigarro, infarto, impotência, horror, gangrena, malformações fetais, derrame cerebral e todos os males da história (interessantemente, ninguém observa que o cigarro também traz vários efeitos psicológicos positivos, como relaxamento e tranquilidade).

Só que, apesar de a sociedade já ser bastante bem informada sobre o cigarro, e embora seja um hábito essencialmente privado (apesar do que tenta passar a propaganda exagerada sobre o "fumo passivo"), o tabaco continua sendo demonizado.

A Anvisa achou de proibir os cigarros com sabor, porque estimulam o fumo e podem levar os jovens a esse hábito objetivamente desprezível.

Não vou nem tentar argumentar contra isso, a coisa é palpavelmente absurda e qualquer zé neguinho consegue ver que a tendência não é das mais benévolas enquanto a Anvisa continuar baixando decreto dizendo o que 190 milhões de pessoas podem ou não consumir, principalmente em questões banais como o cigarro (e, diga-se, a questão de incentivar ou não o fumo de menores é absurdamente irrelevante e oportunista nesse caso).

Eu só vou observar que, apesar de várias pessoas de esquerda serem favoráveis à liberação de drogas e à não-criminalização de hábitos privados, os argumentos que eles usam dão munição para os super-burocratas da Anvisa. Enquanto a ideia adotada não for a de John Locke e seus amigos, lá de 1600 e bolinha, vamos continuar recebendo notícias pela manhã de que um dos nossos hábitos foi subitamente proibido e a gente nem viu.

terça-feira, 20 de março de 2012

A Donzela Enjeitada

Eu, que estas cousas senti
n'alma, de mágoas tão cheia,
--- Como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu, só, descansos enjeito.
- Camões, estrofe 15 de “Sôbolos rios que vão...”
Os povos não se salvam pelo arrependimento, como as almas. Os povos morrem de uma só vez, pelos erros que cometeram. E a ressurreição de um povo dura séculos.
- Lúcio Cardoso, “Diário Completo”
A poesia e a música são o próprio território da liberdade. Pois se colocam no ápice da arte. E esta, como já vimos, por mais de uma vez, é o domínio do poder ser. Enquanto a moral é o dever ser. E a filosofia, e a ciência de que ela é também a ponta extrema, é a própria expressão do ser. A filosofia e a ciência, portanto, são servas da verdade. Enquanto a poesia e a música são donas da verdade, pois se colocam no plano do possível e não do que é ou do que deve ser. Daí ser a liberdade a própria essência da beleza. E a poesia e a música expressões extremas da criatividade humana. A música como poesia do som. E a poesia como música da palavra. (...) Não há grandes poetas para pequenos leitores.
- Tristão de Athayde, Jornal do Brasil – 23.06.1978

Tendo abordado a face atual da poesia, ou o que poderíamos chamar de a atmosfera em que paira a produção poética contemporânea, fica em suspenso a pergunta que na verdade deveria presidir a todas as outras: ainda faz sentido lutar para escrever poesia no Brasil desse início de século? Existe algum motivo sólido para a permanência do verso em face a tantas novas formas simbólicas de comunicação? O desinteresse do grande público (aí inclusa não desprezível parte do público letrado) pela poesia não apontaria para o ocaso natural e irreversível da mesma?
Recuperemos alguns pontos do artigo anterior. Eis alguns fatos sobre a situação brasileira: 1) Há um número incrivelmente pequeno de poetas e leitores de poesia. Não, o que há em abundância nos blogs e respectivas caixas de comentários não são poetas nem leitores de poesia, mas arremedos dos mesmos; 2) Tem-se acercado da poesia uma aura pejorativa, um cunho feminil, flébil, fleumático, uma condescendência de avó, em cujo fundo se encontra a confirmação do item 1: o que há por aí, nas feiras e baladas literárias, nos saraus hippies de faculdades de Letras, são caricaturas de poetas, e a ideia que se faz de poesia hoje ignora o que é poesia realmente. Poesia não é o modo por excelência de um sujeito exprimir seus sentimentos. Nem toda quebra de linha se pode chamar de verso, como nem toda disposição vertical de linhas quebradas onde se leiam confissões sentimentais é um poema. (Isto não é um poema.)
Mas o ponto agora já não é lamentar o miserável estado em que se encontra a atual poesia brasileira, e sim levantar a questão: apesar de tudo, ainda é mais do que delírio solitário, egocêntrico e dead-ended um sujeito decidir, hoje, lutar contra as circunstâncias para se tornar um poeta, tendo a certeza de que terá pouquíssimos leitores, entre outros desestímulos? Reclamar dos poucos leitores não é querer ter fama ou aclamação popular. No artigo anterior eu dizia, repetindo João Cabral de Melo Neto, que um poeta, como todo artista, deve estar consciente de sua inserção sócio-temporal e deve compor sua obra como monumento a seu próprio tempo – como chave, como registro formulador desse tempo. Obras de arte dissolvem-se na atmosfera cultural de um povo, fecundando seu inconsciente, mas para isso é preciso que sejam minimamente consumidas. O que me parece particularmente problemático no Brasil atual é que obras de arte de verdade, aquelas que se colocam à altura das tradições a que se reportam, dando-lhes continuidade – obras de arte realmente boas, hoje, não conseguem alcançar o inconsciente coletivo, pois não há a quota mínima de sua circulação. Ou seja, parece que não estão conseguindo surtir o efeito desejado (ao menos não ainda), pois há um fosso aberto entre a realidade e o povo brasileiro, por assim dizer. Não ignoro que tudo o que existe seja real e legítimo, inclusive a ignorância dos povos, mas refiro-me a isso que se assemelha a um delírio coletivo, um distanciamento tão cabal das noções mais básicas que sustentam a dignidade humana, que é difícil colocá-lo no mesmo nível de “realidade” da realidade ela-mesma. Um povo que esqueceu que tem alma continua sendo humano e imortal, mas delira e, nessa espécie de cegueira, perde, entre outras coisas, a capacidade de entrar em contato com obras que o deem a ver a si mesmo, como ele realmente é, não a imagem distorcida com que se aprendeu a identificar.
Graduei-me em Letras na Universidade de São Paulo. Foram cinco anos de curso, ao longo dos quais nunca – NUNCA –, isto é, nenhuma vez sequer, ouvi o nome de Bruno Tolentino integrar qualquer reflexão acerca de literatura ou cultura que se fizesse ali. Não reclamo de não ter tido cursos inteiros sobre esse grande poeta, como os tive sobre Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Machado de Assis e Shakespeare – digo que nunca nem sequer ouvi falar em Tolentino dentro daquelas salas de aula. Eventualmente, soube de sua existência por meio de colegas de curso, mas nunca, nunca ouvi qualquer referência a ele da parte dos Professores Doutores. E isto, prezado leitor, não é sem relevância para a totalidade do que somos enquanto povo, não é uma exceção casual – isto é o próprio coração do problema. Tolentino legou às culturas de língua portuguesa um livro como As Horas de Katharina, entre outros, mas que só este já bastaria para serem erguidos para ele templos de culto em todas as faculdades de Letras desse país. Ao invés disso, os caciques e seus seguidores calam-se solenemente sobre o autor e sua obra, e não duvido de serem capazes de rir com escárnio à menção de seu nome (nunca fiz o teste, mas ainda farei).
E eis, pois, a questão: se não há ponto de contato entre a poesia e a mentalidade de quem seriam seus destinatários imediatos, se se sabe que se vai dar tiros n’água, por que escrever, por que ser um poeta? A mera satisfação pessoal a partir da prática da escrita não é resposta suficiente – nenhum artista o é exclusivamente para si mesmo. (Me vem à mente o caso de Emily Dickinson, a introvertida poeta americana, famosa por sua vida reclusa e que escreveu poesia lírica, subjetivista, avessa a pensamentos sociais. A poesia de Emily, vinda a público somente após sua morte, foi cuidadosamente organizada pela autora em pequenos cadernos feitos à mão. Difícil pensar que tamanho esmero não aguardasse vir à tona um dia.) A existência dos poucos gatos pingados, contemporâneos do poeta, que o hão de ler e que ele ajudará a educar é, por sua vez, um bom estímulo ao autor de versos, porém há algo mais, e eis o “x” da questão: há os poetas do futuro. Pode ser que no presente e ainda durante algum tempo faltem leitores, mas me parece que a atividade do poeta em tempos de seca ainda se justifica pelo que podemos chamar de o vínculo intergeracional entre poetas.
Na falta de imagem melhor, pensemos o seguinte: a tradição poética de uma língua é como uma escada a que cada geração acrescenta um novo degrau (sendo que o fim da escada, e se ela sobe ou desce, não interessa, é apenas uma sobra da imagem). Com a mudança dos tempos, muda a linguagem poética correspondente, mas, diferente da História, que se faz como à revelia das vontades individuais dos homens (cf. Tolstói, Guerra e Paz), a linguagem poética é produto direto da consciência individual do poeta, do modo como ele interpreta a si mesmo e suas circunstâncias. O que um poeta é enquanto poeta não lhe foi dado de graça pelo ambiente, como se gosta de pensar nos Núcleos de Estudos Relativistas de nossas universidades; um poeta não é a voz espontânea do tempo; que ele seja a voz do tempo, estamos de acordo, mas de modo algum sê-lo-á sem esforço, automaticamente: antes, o raro, o excepcional poeta a que se possa conceder a alcunha de tradutor simbólico de seu tempo só a conquistará após incansáveis tentativas laboriosas e conscientes de dominar o reino do verossímil, para qual tarefa só dispõe de si mesmo e dos poetas que o precederam.
E não todos e quaisquer poetas, mas especialmente os poetas de sua própria língua. Porque poesia é a arte da imagem, sim, mas apenas na mesma medida em que também é a arte da dicção. Um poeta aprende a pensar e a imaginar com os poetas do mundo, mas o expressar-se poeticamente é lição tomada aos poetas de sua própria língua. Ler Dante, Baudelaire, T. S. Eliot é, por um lado, fundamental, indispensável mesmo à formação de qualquer poeta brasileiro que escreva em português; mas é também certo que esse poeta jamais desabrochará na ausência de um conhecimento profundo – de uma imersão total na poesia em língua portuguesa de todas as épocas. Porque poesia é como escultura que se faz com o barro da língua, e cada língua é maleável a seu próprio modo; conhecer a musicalidade da língua na qual se escreve – aprender a tirar dela certos padrões sonoros como se tiram acordes de um instrumento musical, isso é fazer poesia. E isso só se aprende in loco: dentro da tradição a que escrever em determinada língua necessariamente filiará você.
É preciso ter ainda em mente a fundamental importância, para um poeta, da produção das duas ou três gerações anteriores à dele, e como o sucesso delas fomenta o trabalho de quem as sucede. Aqui retornamos à metáfora da escada: sem o suporte das gerações imediatamente anteriores, o salto que o poeta terá de dar para chegar onde deve pode tornar sua tarefa impossível. O poeta que escreveu cinquenta anos antes de mim está mais próximo daquele que escreveu há cem anos do que eu estou; ele me aproxima deste. Falando de modo menos abstrato: sem Bruno Tolentino e João Cabral, sobrar-nos-ia o Modernismo brasileiro em sua bruta forma; aqueles dois poetas, tendo transcendido este movimento, legaram aos poetas de hoje as soluções que os levaram adiante, seus degraus na escada. Seria muito mais difícil escrever poesia hoje sem o link lógico provido pela poesia das gerações de intermédio entre o Modernismo e nós  o que nos permite pensar que, a despeito da esterilidade de suas circunstâncias imediatas, o poeta contemporâneo encontra sua razão de ser na tarefa de comunicar-se com os poetas do futuro, "mantendo a chama acesa" ou algo que o valha.
Poderia dizer ainda que um livro como As Horas de Katharina é um bem em si, cuja composição se justificaria mesmo que para deixá-lo enterrado por todo o sempre, pois o fato de a espécie humana ter vindo a produzi-lo testemunha a nosso favor diante da Eternidade – mas afirmá-lo seria ofuscar os motivos mais imediatos, que existem, para que jovens poetas persistam na tarefa de dizer, ainda que solitários, as verdades mais altas – as quais, evidentemente, só vêm à tona através de formas tendendo à perfeição. Nos nossos dias e em nossa situação, escolher dizer tais verdades por meio da poesia é escolher um caminho dificílimo: além de nadar contra a corrente, e muitas vezes contra si mesmo, para compreender a realidade (e até aqui se está no mesmo barco do filósofo e do cronista), ainda cabe ao poeta reaprender todo um código de representação simbólica e reacostumar-se a formas musicais perdidas, para levar adiante uma arte quase de todo desmoralizada, reduzida pelo senso comum ao ridículo da confissão sentimental.
E tudo isso para quê? Consegui argumentar, creio que suficientemente, no sentido da importância de um poeta para outros poetas – mas e para as pessoas em geral? Por que, afinal, a poesia? Será que, aumentando a erudição (ou a inteligência) de um povo – digamos, da população brasileira – recuperar-se-á o interesse pela poesia? Nos países ainda um pouco educados, ainda se lê e escreve poesia? Eu não sei ao certo, mas sou capaz de apostar um dente da frente na resposta positiva. Se o que nossa população precisa é se reaproximar de verdades eternas e da dignidade humana, tenhamos em mente que poesia e verdades eternas têm andado de mãos dadas há uns milhares de anos. Há alguns casos em que confiar no que é constante ao longo do tempo não é mero conservadorismo covarde, sobretudo quando dentro de nós vive o impulso por integrar essa constância.

sábado, 17 de março de 2012

Roupas e Fantasias

Pensando na mudança de trajes da população e nos valores que ela representa (e, talvez, engendre?), indago qual deveria ser a reação de alguém que não concordasse com os valores da forma de se vestir contemporânea, e quisesse mudá-los. Há um problema prático ligado ao uso das roupas: uma path dependence, ou dependência de percurso: o rumo que as coisas tomaram no passado determina em grande parte o campo de ações moralmente possíveis no presente, e isso acaba tendo consequências complicadas para quem não gosta do status quo.

Começo minha explicação com uma observação simples: São duas coisas muito diferentes usar uma roupa e usar uma fantasia. Uma coisa é pegar uma roupa para ir ao trabalho; outra é vestir-se de pirata ou de centurião romano. É algo difícil, contudo, definir bem a diferença. Vou tentar uma definição provisória: roupa é o que se veste sem nenhuma, ou com pouca, tentativa de se parecer com algo ou de expressar algo. Fantasia é o que se veste com finalidade primária de parecer ou de expressar algo. Tanto a roupa quanto a fantasia expressam algo, mas no caso da roupa não é essa expressão a finalidade que guia o vestir; ela é uma consequência orgânica, espontânea, daquilo que se veste por outros motivos; e aí está o problema.

Pois, como no artigo do Dalrymple que eu linkei no texto passado ilustra, o modo de se vestir expressa valores. Então o estilo dominante estabelece alguns valores, estilos, básicos, que viram como que a linguagem  vestuária da época e do lugar. Quem fugir muito dela, cai na fantasia. Isso pode se dar para várias direções: o cara independente, descolado, metido a artista, que usa chapéu e colete meio solto, está em parte fantasiado; ele visa, antes de tudo, projetar algo. O mesmo para aquele que escolhe sair de sobretudo, ou de terno e colete e relógio de bolso. Ou você fala a linguagem vestuária do seu meio, ou você cai na fantasia. Uma outra analogia é com a linguagem: usar arcaísmos ou fazer questão de estar sempre na vanguarda dos coloquialismos e modas, são jeitos de falsificar a linguagem. É fazer de fim o que deveria ser meio.

Não há uma linha divisória clara entre as duas coisas, mas ela existe. Se o sujeito se veste como se estivesse no século XIX, ou se ele passa meia hora passando pó de arroz e lápis para ser gótico, ele está se fantasiando; está fazendo algo muito diferente de quem escolhe uma roupa porque ele gosta dela e ela lhe cai bem. Quem se fantasia vive num mundo imaginação, um mundo falso em que ele representa, ou quer expressar, um personagem. Não foi por acaso que eu mencionei os góticos: as tribos adolescentes são um exemplo claro de fantasia. O adolescente, inseguro de si, precisa pertencer a um grupo, e isso inclui interpretar um papel falso: punk, gótico, skinhead, mano; não são formas de expressar a própria individualidade, mas de escondê-la.

Com tudo isso, quero apenas tirar um conclusão: somos limitados por nosso vernáculo vestuário. Podemos nos expressar honestamente apenas dentro de seus parâmetros, levando-os mais para um lado ou para outro. Mas quando nos distanciamos muito deles, caímos no falso, na fantasia, na irrealidade; escondemos a nós mesmos atrás de um personagem ou tipo. E por isso não adianta se vestir de forma diferente, excêntrica (a não ser que sua área de atuação seja a moda); isso será apenas falsificar a própria identidade, ou seja, abandonar o mundo real e viver ridiculamente num conto-de-fadas. Quem quer mudar algo, parece-me, tem que se contentar com um caminho mais humilde: descobrir, dentro das possibilidades das roupas atuais, como se aproximar dos valores que se quer comunicar. É um processo muito mais lento, mas também orgânico e, acredito, com potencial real de efetuar alguma mudança no longo prazo.

E essa própria decisão, se for algo consciente, visando a mudança cultural, já terá um pouquinho de fantasia (ou será que não? Posso estar exagerando ao condenar toda instância de self-consciousness como artificialismo). O esperado é que o sujeito com valores um pouco diferentes do padrão social terá também uma percepção estática um pouco diferente: ele achará que está bonito com um tipo de roupa que, embora dentro da linguagem atual, seja um pouco diferente da média. E se os valores dele forem se tornando mais populares, cada vez mais gente se vestirá de formas similares, o que deslocará a média social ao longo do tempo, até que um dia os homens se darão conta que a moda mudou: "Olhe só, eles usavam chapéu, terno e colete; nós não. Algo mudou!"

quinta-feira, 15 de março de 2012

A Revolução das Roupas

Theodore Dalrymple revela sua melhor forma, na minha opinião, ao fazer o comentário sobre costumes contemporâneos salpicados de dados anedóticos, tirados em geral de sua própria experiência, e alusões literárias. Desnecessário dizer que sempre vêm acompanhados de motivos, e bons motivos, para mostrar que os costumes atuais são inferiores aos que vieram antes. É o que ele faz em seu artigo mais recente para a New English Review, examinando a mudança realmente notável no vestuário de homens e mulheres ao longo do último século e a mudança de valores que a troca de guarda-roupas revela.

Dalrymple parece ter um prazer especial em defender o ponto polêmico; quanto mais aparentemente retrógrado e detestável na opinião dos "bem-pensantes", melhor. Seus leitores agradecem a perspicácia da crítica. Neste caso, ele defende que é perfeitamente possível e válido julgar o livro pela capa: o que a pessoa veste, como ela se apresenta ao mundo, diz muito (sempre, é claro, com alguma possibilidade de erro) sobre como ela é.

Ele é acurado ao apontar: o que décadas atrás era o modo "boêmio" de se vestir, hoje é o modo normal. A estética boêmia venceu, e a estética burguesa encontra-se em franca retirada, restrita aos setores mais conservadores do mundo profissional: escritórios de advocacia, distritos financeiros, etc. Tempos atrás, era impensável ir trabalhar sem gravata; hoje em dia, para muitas pessoas (para este que escreve inclusive) é impensável trabalhar com ela.

Não posso deixar, contudo, de oferecer uma interpretação diferente e mais benévola das mudanças de vestuário em curso. O traje clássico burguês - terno e gravata (e colete entre os mais antiquados) - representa certos valores: profissionalismo, eficiência e impessoalidade (o único possível elemento de expressão pessoal é a escolha da gravata). A estética boêmia (camisas coloridas para fora das calças, sapatos casuais ou mesmo tênis sociais) reflete novos valores: relações menos frias, mais pessoais; um trabalho talvez um pouco menos eficiente, mas também mais humano, caloroso e criativo; um ambiente profissional mais acolhedor e menos implacável, e que dá mais espaço para a expressão da individualidade de cada um, e exige menos rigor e disciplina na apresentação pessoal (uma leve barba por fazer, por exemplo, é aceitável).

Entendo os pontos positivos de ambos os arranjos, mas sinceramente me agrada viver num mundo menos impessoal e formal nas relações humanas que outrora. Isso não exclui o juízo de Dalrymple, de que as novas gerações (e os membros da velha que pegaram o bonde) são mais egoístas e preguiçosas, e que muitos de seus membros caem num verdadeiro solipsismo, que se reflete, por exemplo, em universitários vestidos como mendigos (faltou, contudo, examinar os vícios das gerações passadas, que eram outros, mas não menos reais). Só ressalta que essa mudança social e cultural também tem seu lado bom. Se houve decadência cultura nesse quesito, ela não é tão clara quanto parece à primeira vista; as aparências revelam, mas também enganam.

terça-feira, 13 de março de 2012

Subterrâneos Inconfessos da Alma

Não conheço André Gravatá. Seu texto foi-me recomendado por uma amiga em comum. E ele toca, com aquela sinceridade necessária à literatura, algo real e profundo, uma arquibancada maligna que existe por baixo de nossa psique:

O resultado dos exames chegaram. Ela está abrindo o envelope exatamente agora. Não quero que a minha mulher esteja doente. Ela não quer que ela esteja doente. Mas, por um segundo, ou menos, ou menos do que menos de um segundo, chego a torcer para que ela esteja doente. 
Não vou dizer que já tenha partilhado desse desejo momentâneo específico, mas eu também tive e tenho diversos pensamentos inconfessáveis, alguns deles em momentos nos quais tê-los é verdadeiramente monstruoso. Quero crer, contudo, que todos os têm, e não os vejo como algo muito sério e nem revelador da pessoa (claro, aí entra uma concepção, digamos, otimista da natureza humana: o que há de mais verdadeiro na identidade do indivíduo é o que ele tem de bom, e não de mau, que é a degeneração de seu ser; espontaneamente, costuma-se pensar o contrário: é o "lado mau" que revela quem ele realmente é), e a não ser que virem algum tipo de neurose ou compulsão, não têm muita importância.

Dois parágrafos depois, contudo, o autor tenta caiar o sepulcro, embelezar o defunto. Em vão.
Os membros da arquibancada interna são menos maniqueístas do que o cérebro ocidental dentro de nós. A arquibancada construída nas nossas entranhas não deseja exatamente o mal. Ela torce apenas pela mudança...
Essa explicação definitivamente não cola. Se quisesse apenas mudança, quereria um bilhete premiado na loteria, ou que o exame revelasse que a mulher está grávida, e não o câncer, não a morte, não a destruição.

É justamente quando ele se põe a analisar a experiência que ele se afasta da realidade. "Nossos cérebros ocidentais" - pra falar isso foi preciso todo um colegial de aulas de história e literatura, mais uma faculdade, mais discussões com amigos das Humanas, etc. A arquibancada dentro de nós deseja o mal. Não necessariamente o mal moral (embora, frequentemente, ele também), mas aquilo que é mau, ou seja, destrutivo, para o objeto querido sobre o qual se pensa (que pode ser o próprio sujeito. Quem nunca pensou, segundos antes do metrô chegar até você, em dar um passo além...?). Mal moral é agir de forma errada, inadequada. Mas o mal considerado de forma pré-moral é tudo aquilo que é ruim para o objeto em questão. A falta d'água é um mal para a planta.

Muita gente tem um problema com o conceito de mal. Muitos fogem dele, se assegurando de que tem que ser uma invenção, uma construção cultural. Não é; o mal é universal. Do Budismo ao utilitarismo, fala-se nele, e pensa-se sobre ele. O homem é capaz de fazer o mal, e de desejar o mal, inclusive para quem ele ama; às vezes parece que há algo que até o empurra nessa direção.

Eu vejo isso como o primeiro reflexo, o primeiro movimento - anterior ao ato voluntário e portanto não-moral - da revolta de nossa irascibilidade (a capacidade da raiva e da agressividade, que em si é boa e que serve para que o indivíduo supere obstáculos e subjugue inimigos), uma revolta interna muito profunda e ancestral, que nos leva ao debate teológico sobre o pecado original. A irascibilidade desordenada é uma fonte do mal e do mal moral na nossa alma, embora não a única. Talvez ao teorizar sobre o assunto eu o empobreça, assim como ocorreu com o texto que me inspirou. Não creio, contudo, que eu o falsifique, como creio que o autor do texto falsificou.

domingo, 11 de março de 2012

Está escrito na constituição que...

Acredito que esse post seja mais um relato pessoal de que um artigo organizado sobre o que Eu gostaria de falar, mas talvez seja mais fácil para as pessoas entenderem dessa forma. 

Me incomoda profundamente a imprecisão com o qual as pessoas utilizam diversos conceitos. Não, Eu não tenho nenhum problema com você defender uma ideia diferente da minha, mas Eu sempre espero que as pessoas utilizem os conceitos corretamente e que não saiam jogando afirmações ao vento. Acredito que desenvolvi uma metodologia com o tempo que me ajuda a evitar falar um grande número de bobeiras, que é de antes de fazer qualquer afirmação, buscar mentalmente uma evidência teórica e uma evidencia empírica. Isso evita que tudo não passe de suposições ou que você esteja sendo vítima do que chamam de idealismo. 

Mas o que me motivou a tratar isso é a confusão que as pessoas fazem com a palavra direito. Usam com frequência em discussões o argumento de que “está escrito na constituição que Eu tenho direito à saúde (troque por educação ou qualquer outra coisa)...” como se isso provasse alguma coisa. Em primeiro lugar, esse argumento legalista pode ser desmontado facilmente levantando a ideia da escravidão e do extermínio dos judeus terem sido leis em alguns momentos; então evitem utilizar. Mas o problema principal com isso é que direito não significa isso que estão defendendo, o que estão defendendo é algo chamado de benefício. Mesmo o entendimento jurídico atual da constituição defende essa minha proposta, já que caso contrário eles vão cair em um sério problema de definição de conceitos. Para ilustrar isso, pense no caso do direito à liberdade de expressão. O direito à liberdade de expressão significa que ninguém pode te agredir para impedir que você diga algo; não é o direito de usar os veículos alheios para dizer o que você quiser, porque se fosse isso, isso seria um benefício. Voltando para o caso da saúde, utilizando o método empregado para analisar o direito à liberdade de expressão, podemos ver que o direito à saúde significa que ninguém pode te impedir de buscar a sua saúde, e isso não significa que você deve recebê-la gratuitamente, como não deve receber gratuitamente uma página no jornal da sua cidade; e o que você está querendo dizer na verdade é que você quer um benefício, que é ser atendido gratuitamente por meio do estado. 

Entendido isso, não se pode utilizar a constituição para defender programas de saúde estatais; você só pode usar o argumento de que se a constituição não proíbe o estado de fazer isso, então ele pode fazer. 

Em alguns momentos tenho vontade de fazer um guia de argumentos que estatistas as pessoas devem evitar usar, da mesma forma que já fizeram em alguns sites para que cristãos não utilizem argumentos facilmente refutáveis; talvez seja a forma mais fácil deles verem que estão utilizando os conceitos de forma errada, porque se levarem às últimas consequências o que defendem, vão ver que o raciocínio empregado está errado.

quinta-feira, 8 de março de 2012

O Fogo Divino, os Santos e os Pecadores

Partiram de Sucot e acamparam em Etam, na periferia do deserto. O Senhor os precedia, de dia, numa coluna de nuvens, para lhes mostrar o caminho; de noite, numa coluna de fogo para iluminar, a fim de que pudessem andar de dia e de noite.
— Êxodo 13, 20-21

A coluna de nuvens que estava na frente postou-se atrás, metendo-se entre as tropas dos egípcios e as de Israel. Para uns a nuvem era tenebrosa, para outros iluminava a noite, de modo que durante a noite inteira uns não podiam ver os outros.
— Êxodo 14, 19-20
Já defendi em outro lugar — e é uma tese em nada estranha à autêntica tradição cristã — que a punição do inferno está intrinsecamente ligada ao estado da alma ao qual ele corresponde: amar uma criatura mais do que ao Criador. Preferir um bem finito e relativo ao Bem absoluto, que é a única fonte possível da felicidade humana, é condenar-se à miséria eterna. A dor sensível é decorrência do mal moral.

Hoje quero explorar um ponto ligado a essa idéia: a dor dos condenados e o deleite dos santos provêm do mesmo objeto. Toda a diferença entre a alma em estado de beatitude e a alma condenada reside na disposição delas perante Deus. Quero ilustrar isso com a imagem do fogo, muito cara à tradição católica, que é composta basicamente da Bíblia, dos ensinamentos magisteriais e dos escritos de santos e místicos.

A primeira imagem que nos vêm à cabeça quando falamos de fogo num contexto cristão é o Inferno. A dor dos condenados sendo consumidos por seus próprios crimes, remorsos e desejos maus é comumente representada pelo fogo, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. O próprio Cristo, por exemplo, explica a parábola do joio e do trigo: “O joio são os filhos do maligno. [...] Como se junta o joio para ser queimado ao fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os anjos e eles recolherão do Reino todos os escândalos e todos os promotores da iniquidade, e os jogarão na fornalha de fogo, onde haverá choro e ranger de dentes” (Mateus 13, 38.40-42). O remorso e o desespero de se saberem claramente maus consome a alma dos condenados; os desejos desordenados de sua vida agora queimam com intensidade máxima; com a morte, a alma dirige-se, determinada e sem titubeios, àquilo que amava em vida. O fogo é uma imagem particularmente forte: é aquilo que a tudo consome e destrói, implacável e doloroso.

Mas essa imagem aparece também em outro contexto: para falar de Deus. A mesma passagem acima continua: “É então que os justos brilharão como o sol no reino do Pai.” João Batista batizava com água, mas anunciava alguém que viria batizar “no Espírito Santo e no fogo”. O Espírito Santo, quando desce aos apóstolos (pouco depois da ascensão de Jesus ao céu), aparece como “línguas de fogo”.

Cristo diz que veio “pôr fogo à terra”. Pensamos em primeiro lugar na justiça terrível a ser feita contra os maus e impenitentes. Mas esse mesmo fogo efetua a salvação dos justos. Explica S. Paulo: “Se sobre este fundamento [Jesus Cristo] alguém edifica ouro, prata, pedras preciosas ou madeira, feno, palha, a sua obra ficará manifesta, pois em seu dia o fogo o revelará, e provará qual foi a obra de cada um. Se a obra constituída sobre o fundamento resistir, o autor receberá o prêmio, e aquele cuja obra for consumida sofrerá o dano; ele, todavia, se salvará, mas como quem passa pelo fogo.” (I Coríntios 3, 12-15). Aqui a oposição não é entre os justos e os condenados, mas entre os justos que se santificam ainda em vida e aqueles que, embora estejam no caminho bom, embora ergam suas obras no fundamento de Jesus Cristo, ainda deixam muito a desejar. É o fogo o teste que revela a obra de ambos. E aqueles cuja obra não resistir ainda terão que passar “pelo fogo” mais uma vez, isto é, pela purificação além-morte, pelo mesmo fogo dos condenados, mas numa duração finita. Em suma, o estado que se convencionou chamar de Purgatório. O fogo consome, mas também purifica e endurece. A argila temperada no fogo (imagem minha), resiste àquilo que quebraria a argila mais frágil.

O fogo também é usado para representar o amor, como no “fogo que arde sem se ver” de Camões. S. Tomás de Aquino usa a mesma imagem para o efeito do fogo: aquecer. Assim como o mesmo fogo age com maior força no que está perto do que no está distante, assim também a caridade ama com maior fervor aqueles que estão unidos a nós do que aqueles mais distantes; e sob esse aspecto o amor pelos amigos, considerado em si mesmo, é mais ardente e melhor do que amor pelos inimigos.” (ST, II-II, q. 27, a. 7). “Deus é amor”, diz S. João. E o que é o fogo do amor-caridade senão o próprio Deus enquanto vive e age na alma humana? Com efeito, o coração de Cristo é sempre representado, na arte sacra, como um coração em chamas.

Nessa mesma linha, o misticismo ocidental usa a imagem do fogo para descrever a ação do Espírito Santo. João de Ruysbroeck (não sei se é o primeiro a usar a imagem a seguir; mas é o primeiro que me lembro diretamente), monge flamengo do século XIII, bota nestes termos: “Se um homem quiser penetrar mais fundo, com seu amor ativo, nesse amor de fruição: então todas as potências de sua alma devem ceder, e devem sofrer e pacientemente suportar a Verdade e o Bem penetrantes que são o próprio Deus. Assim como [...] o ferro é penetrado pelo fogo; de modo que ele faz, pelo fogo, as obras do fogo, pois ele queima e brilha como o fogo. [...] E no entanto cada um permanece com sua própria natureza. Pois o fogo não se transforma em ferro, e o ferro não se transforma em fogo, embora sua união seja não-mediada; pois o ferro está dentro do fogo e o fogo está dentro do ferro…”. Essa imagem é muito rica, e mais tarde rendeu um novo elemento: é pela ação do fogo que o ferro se torna moldável, ou seja, dócil à ação do Espírito na alma que efetua a transformação espiritual e moral do indivíduo, que passa a se assemelhar a Deus e a participar de sua natureza. Como o metal que participa do fogo, a criatura participa do Criador, ainda que ambos preservem suas naturezas. O Céu, lembrou Bento XVI esses dias, é viver no amor de Deus. Portanto, por essa imagem, o Céu, tanto quanto o Inferno, é fogo.

Voltemos à Bíblia: na parábola do semeador que joga suas sementes pelo caminho, é o mesmo sol que faz as plantas nascerem e crescerem e que faz com que aquelas que crescem em solo pedregoso sequem e morram. Quero, com tudo isso, apenas apontar um fato: depois dessa vida, nos encontramos com Deus. E o estado da nossa alma consiste na nossa reação a esse encontro. Para uns é o fogo do amor unitivo, para outros o da purificação esperançosa e para ainda outros o fogo da destruição. Santos e condenados se encontram na presença de Deus. A distância que os separa é a distância espiritual entre amar o Bem ou detestá-lo. Para os egípcios a coluna de nuvens/fogo cegava e aterrorizava; para os judeus, guiava e protegia. É como escreveu C. S. Lewis: “No final há apenas dois tipos de pessoa: as que dizem para Deus ‘seja feita a Vossa vontade’, e aquelas a quem Deus diz, no fim: ‘seja feita a vossa vontade’”.

quarta-feira, 7 de março de 2012

A estratégia do Ron Paul está funcionando?

Libertários que estão acompanhando as prévias do partido Republicano (GOP) para as eleições presidenciais de 2012 nos Estados Unidos parecem desanimados com os resultados obtidos por Ron Paul, principalmente depois da Superterça que ocorreu ontem. Como Eu não compartilho desse pessimismo e dessa visão de que ele está indo mal nas prévias, vou tentar explicar aqui de forma resumida por que Ron Paul está fazendo tudo certo para ter alguma chance de se tornar o próximo presidente americano. 

A estratégia de Ron Paul – ou de seu cunhado e gestor da campanha Jesse Benton – é conseguir o maior número de delegados possíveis. Até ai nenhuma novidade porque todos os candidatos querem atingir a marca de 50% dos delegados e encerrar a disputa e com isso poder começar a focar a campanha em Barack Obama. Mas a diferença da estratégia do Ron Paul nessas prévias para os outros candidatos é que ele está levando a sério as regras que existem e com isso focando exclusivamente em obter delegados, mesmo que os delegados acabem não expressando o que a maioria dos eleitores do GOP desejam ao sair de casa e dar uma quantidade de votos maior para os outros candidatos do que para o Ron Paul. E isso só é possível porque o sistema eleitoral americano é extremamente complexo (alguns diriam que é propositalmente confuso) e principalmente devido à existência do que eles chamam de caucus. Nos caucus, o que importa é obter a maioria dos delegados, que não são selecionados pelo voto popular, apesar da escolha deles vir acompanhada de votações. Sabendo disso, a campanha do Ron Paul está focando (há muito tempo com o Campaign for Liberty) em fazer os libertários galgarem posições de comando no GOP e em se tornarem os delegados aonde eles são escolhidos por meio de caucus. 

Entender o que está sendo feito é a primeira etapa para saber se o sucesso está chegando ou não. E pelas minhas lentes parece que está tudo ocorrendo como o planejado. É claro que Ron Paul poderia ganhar votações populares em alguns estados e atrair mais atenção da mídia, mas isso demandaria muito mais dinheiro e duplicaria esforços, tornando a estratégia dos delegados menos efetiva. E o apoio da mídia não viria da mesma forma que vem para os outros candidatos porque as suas posições não são apenas polêmicas, são uma ameaça a “tudo que está ai”. 

Uma outra questão que desanima os simpatizantes são as contagens “oficiais” de cada canal/jornal, já que não existe uma contagem oficial feita pelo GOP. Os dados da CNN, Fox, Real Clear Politics e muitas outras diferem bastante quanto ao número de delegados que cada candidato tem, mas eles têm algo em comum: Ron Paul sempre está em último. E isso é a demonstração de que eles não entenderam a estratégia do Ron Paul ou estão achando que ele não está sendo bem sucedido em colocá-la em prática. Mas de acordo com relatórios de sites de militantes e a campanha do Ron Paul, eles estão conseguindo um bom resultado em infiltrar seus membros nos caucus. Até mesmo a mídia volta e meia cita o nível de dedicação dos militantes do Ron Paul, que é uma prova de que ele tem os recursos humanos necessários para conseguir isso. Uma prova mais evidente é que devido às acusações de fraudes para prejudicar os votos do Ron Paul, diversos diretórios estaduais do GOP estão caindo; e em todos eles o diretório está sendo inteiramente formado por gente do Ron Paul. A estratégia de tomar o partido está funcionando, como ficou claro nas eleições internas e Iowa e Nevada e as que vão acontecer agora no Maine, só pra citar alguns exemplos. 

Mas pra não ficar sem algo pra mostrar, segue abaixo uma estimativa minha de quantos delegados o Ron Paul tem, que é tão arbitrária quanto as outras contagens não oficiais, mas ao mesmo tempo leva em conta a particularidade dos caucus. 

Iowa: 22 delegados (estimativa)
New Hampshire: 3 delegados (primária)
South Carolina: 0 delegados (primária com o vencedor levando tudo)
Florida: 0 delegados (primária com o vencedor levando tudo)
Maine: 19 delegados (estimativa)
Nevada: 22 delegados (estimativa)
Colorado: 28 delegados (estimativa)
Minnesota: 32 delegados (estimativa)
Arizona: 0 delegados (primária com o vencedor levando tudo)
Michigan: 0 delegados (primária)
Washington: 34 delegados (estimativa)
Alaska: 21 delegados (estimativa)
Georgia: 0 delegados (primária com o vencedor levando tudo)
Idaho: 25 delegados (estimativa)
Massachusetts: 0 delegados (primária)
North Dakota: 22 delegados (estimativa)
Ohio: 0 delegados (primária)
Oklahoma: 0 delegados (primária)
Tennesse: 0 delegados (primária)
Vermont: 4 delegados (primária)
Virginia: 3 delegados (primária híbrida)
Wyoming: 20 delegados (estimativa)

Parece surreal Ron Paul ter 255 delegados? Parece sim. E por isso avisei que essa contagem é tão arbitrária quanto a contagem dos principais veículos, pois não tem como saber o número real de delegados nos caucus até a convenção estadual do estado, que ainda vai demorar bastante em todos eles. Essa estimativa é a feita por diversos membros do GOP que fazem campanha pro Ron Paul e estiveram presente nas assembleias que definiram os delegados; e por isso pode não ser uma fonte confiável, mas é uma possibilidade real, já que eles estão vendo o processo acontecer, e a estratégia da campanha é conseguir isso. Por fim, agora que a Superterça passou o próximo mês deve ser o melhor para o Ron Pau, já que nele acontecem cinco caucus quase seguidos, terminando com isso sua estratégia de explorar os caucus; porque daí pra frente só restam 25 primárias, e ai o Ron Paul vai ter que jogar o jogo das primárias e não sabemos o que pode acontecer. Mas mesmo se ele só ficar com o número de delegados que tem agora, ele vai chegar com força na convenção, já que nenhum dos outros 3 candidatos devem conseguir os 50% necessários para obter a nomeação automática, o que não acontece há muito tempo, e com isso abrindo espaço para que possam aparecer candidaturas de consenso como Rand Paul, Sarah Palin e até mesmo Judge Napolitano.

P.S.: Correção do número dos delegados. Os números continuam os mesmos, mas a somatória estava dando um resultado menor que a soma dos estados. Com isso o número total passou de 225 para 255.

terça-feira, 6 de março de 2012

A irmã bastarda

Le bât -   Pierre Subleyras (1732)

A pornografia é uma das mais persistentes manifestações do espírito humano. Os homens pré-históricos já deixaram, gravados ou pintados sobre a pedra, inúmeros exemplos da representação de atos sexuais e de órgãos genitais, enquanto algumas civilizações antigas  como a hindu, a grega e a romana  atingiram um elevado nível de requinte em sua arte pornográfica. Em tempos mais recentes, tão logo a imprensa, a fotografia e o cinema se desenvolveram, foram utilizados na produção de material pornográfico, constituindo uma indústria que, hoje em dia, por meio da internet, coloca um volume crescente de conteúdo à disposição de um público cada vez maior. Da pintura rupestre à banda larga, a pornografia sempre esteve presente na história humana, provavelmente em todas as culturas e nos mais diversos meios de expressão. Mas de onde vem esse interesse aparentemente inesgotável da humanidade pela pornografia?

Como se sabe, a pornografia funciona de modo bem simples: ela oferece uma excitação dos sentidos ou da imaginação que, a partir do estímulo correto, possibilita um descarregamento de energia sexual. Cientistas acreditam ter desvendando a engenharia neurológica por trás desse processo. Em 1994, na cidade de Parma, na Itália, alguns pesquisadores monitoravam o funcionamento do cérebro de um macaco ao manipular objetos. Sempre que o macaco agarrava alguma coisa e a movimentava, um determinado padrão de atividade cerebral se produzia. Certa vez, por acaso, o animal viu um dos pesquisadores levando um sorvete à boca, o que produziu em seu cérebro um padrão de atividade semelhante àquele verificado enquanto desempenhava algum tipo de ação  era como se o macaco vivenciasse mentalmente a situação presenciada. Atribuiu-se o fato ao que então passaria a ser chamado de “neurônios-espelho”, ou “células-espelho”. Em 2001, também em Parma, outra pesquisa foi levada a cabo com o objetivo de verificar se as mesmas células poderiam ser verificadas no cérebro humano. Foram mostradas imagens de mãos, pés e bocas em movimento para um grupo de pessoas; em resposta, a região do cérebro responsável pelo controle daquela parte do corpo se ativava.

A descoberta dos neurônios-espelho ajudou a compreender melhor diversos aspectos da atividade mental humana. É por conta deles, por exemplo, que bocejamos ao ver alguém bocejar, ou que salivamos ao ver, numa propaganda de televisão, uma pessoa mordendo um suculento sanduíche. Tais células cerebrais atuam ainda na aquisição da linguagem, auxiliam na compreensão das intenções de outras pessoas e possibilitam nosso envolvimento emocional com situações das quais não fazemos parte ou até mesmo com obras de ficção. E, é claro, estão relacionados a nosso interesse pela pornografia, como mostrou um estudo realizado em 2008, na Universidade Picardie Jules Verne, na França, cujo objetivo era estabelecer a ligação entre a visualização de imagens pornográficas e a ereção masculina. Nesse estudo, voluntários eram submetidos a um exame de ressonância magnética enquanto assistiam a vídeos pornográficos. Registrou-se uma intensa atividade na região cerebral conhecida como pars opercularis, especialmente abundante em neurônios-espelho. A excitação ocorreria porque, mesmo não estando cientes disso, os voluntários se projetavam na situação representada, experimentando-a mentalmente, como se fizessem parte dela. Eis o mecanismo por trás do voyeurismo e da pornografia. Contudo, os neurônios-espelho são também o fundamento neurológico de outros aspectos considerados mais nobres da mente humana, como a moralidade.

Duas mulheres - Egon Schiele (1915)

Esquematicamente, podemos dizer que a moralidade se estabelece sobre dois eixos: o cuidado consigo mesmo e o cuidado com o outro. Tais princípios são invariáveis, sedimentados na natureza humana, mas podem receber diversas configurações, de acordo com as circunstâncias históricas e sociais. O cuidado consigo possui motivações fáceis de discernir. Como se sabe, o aparelho psíquico humano (assim como sua versão rudimentar nos animais) está projetado para buscar a satisfação das necessidades do indivíduo e evitar seu sofrimento. Com o desenvolvimento da cultura, aprendemos a negociar com esses dois âmbitos da experiência humana, mas ainda assim, como consequência de um processo de seleção natural, continuamos geneticamente programados para preservar nossa integridade física e perpetuar nosso repertório genético. Indivíduos mais propensos a se preservar (poderíamos dizer, com um princípio de moralidade mais pronunciado) têm maior probabilidade de sobreviver às adversidades e passar seus genes adiante, o que, num certo número de gerações, resultaria numa população mais cautelosa (e, provavelmente, mais moral).

As motivações evolutivas para o cuidado com o outro são igualmente evidentes, mas o modo como tal princípio de moralidade se estabelece em nossa constituição psíquica é menos óbvio. Como espécie, somos vulneráveis aos perigos naturais. Andar em bando e agir cooperativamente aumentaram em muito nossas chances de sobrevivência, de maneira que indivíduos mais sociáveis começaram a prevalecer na população, o que também propiciou o surgimento da cultura a partir de um potencial intelectual inerente à espécie, já neurologicamente estruturado. Porém, tal processo seletivo ainda não explica como é possível, num nível individual, passar do instinto de sobrevivência, que é o fundamento do cuidado consigo, para a preocupação com a integridade do outro.

Na natureza, encontramos, em diferentes níveis, abundantes exemplos de cuidado com o outro, principalmente na relação entre progenitores e suas crias; além disso, em algumas espécies, machos e fêmeas podem defender seus potenciais parceiros sexuais. Quando não se trata de animais intelectualmente mais desenvolvidos, tais arranjos de cooperação tendem a não ser duradouros, ficando ao sabor dos ciclos reprodutivos e sua química hormonal. Sabemos que feromônios regulam o interesse sexual e que há um hormônio responsável pelo “amor materno”, a ocitocina, que estabelece um vínculo emocional primário entre mãe e filho. Muito provavelmente, tais hormônios estão na origem da construção de nossos vínculos familiares,  organizados posteriormente em estruturas sociais, mas o que explica, na espécie humana, nossa capacidade de nos compadecer de indivíduos que, muitas vezes, sequer conhecemos? A organização de uma sociedade em grupos de reprodução não consegue explicar a existência de sentimentos como a amizade e a solidariedade.

É justamente o cuidado desinteressado com o outro que oferece a real medida da moralidade humana, o que só pode ser alcançado quando um “eu” se identifica com um "outro", considerando-o digno dos mesmos cuidados que reservaria a si mesmo. É preciso que esse eu, ao ver uma pessoa sofrendo, entenda a dimensão de tal sofrimento, compartilhando dele, ainda que virtualmente. Ou seja: é necessário que eu me coloque na situação da outra pessoa, “vestindo sua pele”, projetando nela minha própria experiência como ser humano, para então descobrir um ser estruturalmente análogo a mim, potencialmente igual a mim, distinto apenas pelas circunstâncias; descubro que partilho com ele uma mesma natureza — a natureza humana. Para chegar neste ponto, há toda uma elaboração moral que não necessariamente se dá, mas o princípio de nosso sentimento moral está na capacidade de nos identificar imediata e inconscientemente com os outros, de reproduzir mentalmente a situação experimentada por eles, e vivenciá-la subjetivamente. “Amar ao próximo como a si mesmo” e “não fazer aos outros o que não gostaria que fizessem a você” são princípios que expressam tal fundamento natural da moralidade humana. Em outras palavras, a raiz de nossa moralidade, naquilo o que ela nos diferencia dos animais, está na capacidade de criar empatia, uma operação mental realizada pelos neurônios-espelho.

Mas se é possível constatar a existência de neurônios-espelho em outras espécies de animais, por que não encontramos entre elas o mesmo tipo de cuidado desinteressado com o outro? Em primeiro lugar, é possível observar manifestações desse tipo em algumas espécies mais inteligentes de mamíferos, como em cachorros, macacos, elefantes etc. Para outras espécies, possivelmente também aparelhadas com neurônios-espelho, talvez o que falte seja algum grau de apreensão da própria subjetividade, o que aqueles outros animais, mais sofisticados, teriam num nível menos desenvolvido do que os humanos. O circuito da empatia só se fecha integralmente, produzindo as formas mais desinteressadas do cuidado com o outro, quando aquele que experimenta a empatia possui plena consciência de sua individualidade; para ser capaz de sentir as implicações de se colocar na situação do outro, é preciso antes reconhecer-se como uma pessoa concreta. O autoconhecimento, portanto, é condição para uma consciência moral plenamente desenvolvida, pois apenas ele pode nos dar uma real compreensão daquilo o que é melhor para nós e, dessa maneira, o que pode ser melhor também para as outras pessoas.

The sculptor - John Koch (1964)
A moralidade humana e a satisfação voyeurística encontrada na pornografia estão ancoradas numa mesma estrutura cerebral, responsável pela empatia. A pornografia, portanto, não representa um rebaixamento aos instintos mais animalescos do homem, nem fornece um índice confiável para o nível de imoralidade de uma cultura. Na verdade, ela, como uma irmã bastarda da moral, é o produto cultural de uma espécie excepcionalmente sensível ao prazer e ao sofrimento alheios. É por isso que o crescimento da oferta de material pornográfico, ocasionado pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de difusão, não é incompatível com o progresso moral de nossa civilização que, embora não seja retilíneo nem uniforme, é contínuo. Talvez até haja, arrisco dizer, uma relação de causalidade entre os dois, para além do avanço dos meios técnicos. Creio que uma reflexão nesse sentido ajudaria a distinguir moral de moralismo, distinguir o que de fato contribui para o melhor proveito humano daquilo o que se deve a contingências e interesses de âmbito restrito.

Deixo agora uma questão para discussão ulterior, que talvez se torne um próximo artigo. Acredito que a pornografia não é em si imoral, mas que ela pode ser o meio de representação de algo imoral, o que, na minha perspectiva, acontece quando se representa algo degradante à condição humana. Deixo bem claro que, para mim, que não sou cristão, a castidade não é um valor moral, mas um moralismo, uma virtude que tem sua validade dentro de um sistema de valores particulares, isto é, não universais. 

domingo, 4 de março de 2012

Clarice Lispector e As Borboletas Menstruadas

Mas o certo é que na desordem de um primeiro encontro houve um momento em que os dois, enfim esquecidos do que penosamente queriam copiar para a realidade, houve um momento não preparado por ambos, dom da natureza, em que ambos precisaram saber por que o outro era o outro, e se esqueceram de dizer “por favor”; um momento em que, sem um injuriar o outro, cada um tomou para si o que lhe era devido sem que um roubasse nada do outro, e isso era mais do que eles teriam ousado imaginar: isso era amor, com o seu egoísmo e sem este também não haveria dádiva. Um deu ao outro a avidez em ser amado, e se havia certa tristeza em submeter-se à lei do mundo, esta obediência também era a dignidade deles. (…)

Foi com um ar obediente e agradecido, como o de uma mulher, que ela avisou a Martim que ia remendar suas roupas. Sobretudo, obstinada, o que ela queria era prolongar-se no ambiente seguro que o homem, vivendo no depósito, ali terminara por criar: esporas no chão, a foice, botas enlameadas, mundo palpável. Pegando, calma, nas roupas a emendar, ela sentiu uma felicidade muito menor do que era capaz de sentir, mas tratava-se dessa coisa que se quer: concreta. Então ela o olhou: obrigada por você ser real, disseram seus olhos abertos.

O homem não entendeu, mas inflou um pouco o peito. Quanto a ela, agora poderia sem mentir usar a palavra amor, e com tanta esperança ingênua como se o desconhecesse. (…) Então a moça se levantou, como dando ao homem uma ordem de ir embora e deixá-la só.

— Você é meu dono, dizia o modo altivo e mudo como estava de pé, serena e sem humildade.

Ele pareceu entender, e ele não queria ser dono de ninguém, e assobiou disfarçando, depois olhou para os próprios sapatos: mulher era sempre mais impudica que um homem, ele encabulou. Ela estava nobre. “Teve o que quis”, pensou Martim ofendido na própria castidade e disfarçando-se com um novo assobio desajeitado. “Você é meu dono”, dizia com tirania o modo como ela estava de pé; ele grunhiu assentindo, incomodado, com vontade de se livrar dela. Os ombros dela eram finos e quebráveis, a pele de criança, e, como se ele tivesse quebrado a atualidade da moça, havia algo de antigo nela. (…)
E talvez porque sua submissão àquela mulher fosse o modo como ele próprio a submetia, ao sair do depósito Martim se tornara poderoso e vivido, e com alguma insolência.

Martim respirou profundamente como se até agora tivesse sido amordaçado. É que era doce e poderoso um homem sair e uma mulher ficar. Assim provavelmente é que deviam ser as coisas.

In: LISPECTOR, C. A Maçã no Escuro. Ed. Rocco. Pp. 163-164.

Há muito que se dizer sobre Clarice Lispector no sentido de defendê-la das acusações absolutamente indevidas que lhe fazem: mulherzinha histérica, literatura profunda (grossas aspas jocosas envolvendo o adjetivo), autora de afetações sem preocupações sérias, universais, objetivas.

Por ora falarei de apenas uma característica que sozinha já destacaria a obra de Lispector dentre a literatura brasileira: seu modo de lidar com a dita questão feminina. Não é que Lispector se (pre)ocupasse com as picuinhas feministas; acontece apenas que, sendo mulher e criando seres humanos ficcionais, ela nos presenteia com uma admirável atitude em relação ao feminino e ao que se poderia chamar de condição existencial da mulher.

É verdade que não se precisa ser mulher para se ter essa atitude (a qual logo explicarei), que consiste finalmente em uma visão de mundo. Raros são os grandes nomes da literatura que conseguem ser grandes tratando a mulher como algo diferente disso: uma mulher. (Não consigo pensar em nenhum grande autor que caiba nessa exceção, mas vá lá, é possível que os haja.)

Pois eis a atitude lispectoriana em relação ao feminino: suas mulheres são desavergonhadamente mulheres. Em primeiro lugar, Clarice Lispector não tem vergonha de admitir que ser mulher é desejar a força e a virilidade de um homem. Ser a mulher quebradiça de um homem bruto não é uma culpa. Querer ser fecundada e possuída não é uma culpa. Remendar altivamente as roupas do homem amado: as personagens de Lispector o fazem “altivamente”. Clarice não macaqueia a natureza feminina para lhe conferir a seriedade e relevância que esta supostamente não tem pelo que simplesmente é. Clarice nos mostra a Mulher Rainha querendo ser domada como égua braba pelo touro semeador. E não nos deixa dúvidas: é a Mulher Rainha.

Clarice é um problema para os simples de pensamento. Ela consegue escrever os trechos mais despreocupadamente machistas (é como o vulgo os chamaria se tivesse força de enfrentá-los!) da literatura universal e ao mesmo tempo ser ícone das feministas. Porque, apesar de tudo, no fim das contas vem à tona a dicção por assim dizer menstruada de seus textos. Clarice escreve como uma mulher, e tanto, que não sobra alternativa a suas colegas de sexo senão se sentirem incluídas por ela. Sem contar que haver uma mulher com a força de Clarice Lispector (a inteligência, a técnica, a disciplina, o espírito) é algo tão na contramão da literatura brasileira que os feministas tupiniquins seriam burros se não a tomassem como aliada.

Essa bizarra aliança se faz daquele modo que já conhecemos: lê-se a obra de Lispector ao bel prazer dos aproveitadores. Suas mulheres universais, arquetípicas, são reduzidas a estereótipos sociais cuja criação teria como óbvia finalidade evidenciar a luta de classes e defender a igualdade entre os sexos, dívida histórica a ser paga às mulheres. Apontam-se suas protagonistas economicamente independentes, que moram sozinhas e têm quantos amantes desejam. Mas o que esses leitores mal-intencionados esquecem, não entendem ou fingem não entender é que todas essas mesmas mulheres sofrem, via de regra, da grande carência feminina por forças que as subjuguem. Se livres, dissipam-se, maiores do que si mesmas. (Cf. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, “A Imitação da Rosa”, A Maçã no Escuro, “Amor”…)

E, no entanto, se existe subjugação nas relações, se existe escravidão, se os opostos se traduzem em maior e menor, forte e fraco, dominador e dominado — em Clarice Lispector isso são meros símbolos, quando o que importa em verdade é o produto final do embate criador entre os sexos (tal produto seria, talvez, a própria realidade?). Homem e mulher são igualmente perfeitos cada qual em seu nicho. Se em terminologia humana receber é um tipo de passividade, por que seria inferior em natureza, em essência? Qual o fundamento real, não teórico, do senso comum que eleva o ativo em detrimento do próprio fundamento deste — o passivo? Por que uma mulher deveria se envergonhar de, em certo sentido, desejar entrar em posse de um homem?

O que precisamos esclarecer é esse “certo sentido”. Aqui estive falando o tempo todo em arquétipos, porque é sobre isso que se debruça Clarice Lispector. Está em jogo aqui precisamente: o que faz de um homem um homem e de uma mulher uma mulher, e a relação necessária (natural) entre ambos. Vocês, que estudam Aristóteles, saberão desenvolver melhor as estruturas do problema. Enquanto mera pessoa e estudante de literatura, digo que não é econômica, nem política, nem socialmente que compete à essência feminina suportar-se no masculino. É ontologicamente?

sábado, 3 de março de 2012

Promiscuidade é Equivalente a Prostituição?

Embora externamente suas ações sejam as mesmas - seduzem e se relacionam com muitos homens - o valor moral dos atos da prostituta e da promíscua são muito diferentes, de forma que equiparar uma à outra é injusto. Isso não quer dizer que uma delas aja bem; nenhuma das duas vive aquilo que a mulher é capaz, e ambas se distanciam da felicidade que procuram, mas o grau desse distanciamento é diverso.

A promíscua é a mulher que procura o sexo casual e frequente porque ela o quer. Claro, ela está equivocada sobre aquilo que lhe trará a real felicidade, mas mesmo assim essa busca equivocada se dá por meio de uma afirmação de seu ser e do bem do sexo, que de fato é um bem. Ela afirma a bondade de seu corpo e reconhece o valor do propósito unitivo que a move, embora não o use lá muito bem.

Já a prostituta procura o sexo casual e frequente embora ela não o queira. (Mesmo as prostitutas que gostem da profissão, que imagino não serem a maioria, terão que, em muitas circunstâncias, se relacionar com homens que em nada lhes atraem, e se submeter a degradações que, não fosse pelo dinheiro, não se submeteriam.) Ao contrário da promíscua, ela se distancia de seu próprio corpo, tratando-o como objeto, como puro meio, mutilando em parte sua identidade. Ela trai a si mesma, à própria dignidade, num nível que a promíscua não trai. Ela nega seu ser, enquanto a outra o afirma.

Isso não quer dizer que a prostituta seja mais imoral. Afinal, toda uma série de circunstâncias difíceis em geral mitigam em muito a decisão de vender o próprio corpo. Mas implica que a prostituta faz mais mal para si do que a promíscua. Esta não é apenas uma prostituta que "dá de graça"; seus atos, embora desordenados, obedecem à lógica interna do corpo e da união humanas, enquanto que o da outra violam-na no ponto mais profundo: o da auto-doação voluntária e sincera.

quinta-feira, 1 de março de 2012

O Cristianismo não é Conservador

Dessa vez meu interlocutor é Fábio Blanco, que em artigo recente no MSM (O conservadorismo religioso não se opõe à razão), alimentando a querela sobre esse triste movimento que é o conservadorismo, deu um diagnóstico avassalador sobre meu posicionamento: minhas opiniões advêm da total ignorância teológica e moral.
"Alguns liberais podem até entender alguma coisa de economia, mas quando adentram pelo campo do debate moral e religioso vacilam, menos por serem eles mesmos amorais e mais por não entenderem nada de teologia, que é o fundamento da moral conservadora."
Começo apontando que Blanco errou o alvo da minha crítica ao centrar o debate na religião e na relação entre fé e razão. Pois não vejo, e nem meus textos apontam, nada de errado na religião (e olhe que "religião" é outro termo que engloba coisas muito diferentes); a bronca é com o conservadorismo. É possível ser conservador sem ser religioso - presumo que seja o caso de Lara Resende e Mellão Neto. Embora não saiba se eles são ou não religiosos, seu conservadorismo é secular; não faz referência à fé, a Cristo, à Bíblia, etc. É possível ter um conservadorismo religioso (baseado na fé), como é o caso de Nivaldo Cordeiro e Fabio Blanco. E é ainda possível ser religioso e não ser conservador - e esse é o meu caso e de outros na história, como por exemplo - lanço uma provocação intencional - S. Tomás de Aquino.

Até onde posso ver, Blanco e eu temos concepções similares no que diz respeito à fé e sua relação com a razão. A fé não é algo irracional, embora também não possa ser demonstrada. Argumentos inconclusivos, experiência pessoal e certa atitude para com o mundo, tudo isso guiado pela graça de Deus (falo, obviamente, como quem tem fé), contribuem para aceitar algo que, considerado de forma puramente fria e analítica, ou acadêmica, careceria de evidências suficientes. E uma vez aceita, inicia-se um processo que, se incluir o desenvolvimento intelectual, levará a pessoa a encontrar motivos mais profundos e sólidos para certas coisas (não para tudo) que antes aceitara na base de uma espécie de confiança. Nisso estamos de pleno acordo.

Mas Blanco comete um equívoco bíblico que o permite salvar o conservadorismo cristão da pecha de "irracional". Em minha resposta a Nivaldo Cordeiro, eu indagara se a "Lei de Deus" na qual os conservadores religiosos se baseiam era a Lei Antiga (os Dez Mandamentos, e podemos somar a eles a regra de ouro: "faça aos outros o que queres que façam a você") ou a Lei Nova dada por Cristo. Blanco vê nessa minha distinção uma ignorância não apenas teológica mas até mesmo catequética:
"Neste ponto, seu equívoco se encontra na incompreensão da natureza das duas alianças bíblicas. Qualquer catecúmeno logo aprende que quando Cristo apresentou o amor a Deus e aos homens como o primeiro e segundo mandamentos, o fez afirmando que a antiga lei se resumia nisso."
Ocorre que o erro está é com ele. Há uma leitura equivocada (muito comum, por sinal) do Evangelho que confunde duas coisas: a Lei Nova dada por Cristo e a síntese que Cristo faz da Lei Antiga (que, quando apreendida pela razão, chama-se lei natural). A síntese que Cristo faz da Lei Antiga é "Amar a Deus sobre todas as coisas e o próximo como a si mesmo" (Mt 22, 36-40); ao fazer isso, Cristo apresenta o sentido último da Lei Antiga. Embora seja similar à Nova Lei que formulará depois, na Última Ceia, elas não são iguais. Pois a Nova Lei diz: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amo" (Jo 15,12) . Essa Nova Lei difere da síntese da Lei Antiga ao dar uma nova medida do amor que os homens devem ter uns pelos outros: a medida do amor de Deus. Esse amor divino a que o homem é chamado chama-se "caridade". É um amor que em muito excede a capacidade humana, e para o qual precisamos da graça de Deus, que nos permite 1) ver nos homens a imagem de Deus, e esse é o fundamento da caridade, e 2) de fato sentir e agir com base nessa percepção iluminada pela graça. A Nova Lei, portanto, vai além da Lei Antiga, e não é acessível à razão de quem não tem fé.

E qual era meu argumento? Que a Nova Lei de Cristo não pode ser a base da política: primeiro porque ela é inacessível à razão enquanto tal, e a política é âmbito de todos, crentes e descrentes; segundo porque ela é algo estritamente pessoal (pois decorre da relação do indivíduo com Deus), não podendo ser de forma alguma compelida; e, terceiro, porque a condição extrínseca que nos predispõe à Nova Lei é justamente a boa vivência da Lei Antiga, e portanto é ela que nos deve ocupar na política. Tentar transformá-la em programa, o que significaria substituir as demandas da lei natural pelas da caridade, é desastroso. A postura política cristã (como eu a vejo), portanto, não precisa e nem deve ir além da lei natural.

Reconheço que esse ponto é um pouco vão, dado que as Leis nas quais o conservadorismo religioso em discussão se baseia são claramente os preceitos da Lei Antiga. E a esses conservadores, só posso dizer: não usem a Bíblia como ponto de partida, pois ao fazê-lo alienam todo mundo que não aceita a Bíblia: transformam questões a princípio solúveis pelo debate e pela convivência em partidarismos que só podem se resolver pela força. Posicionar-se politicamente com base na razão e na lei natural em nada contradiz ser um homem de fé e deixar-se guiar pela fé em suas ideias, palavras e atos. O que a lei natural, isto é, o uso da razão como guia da vida humana, contradiz é tomar as tradições e convenções que nos foram legadas como o critério da verdade e do bem. Ela insta todo homem a colocar-se a si mesmo, indivíduo dotado de razão, como juiz daquilo que chegou até ele; consciente, é claro, de sua própria limitação, assim como da limitação de seus antepassados, e disposto a tratar com eles em pé de respeitosa igualdade.

A consideração que fiz acima sobre a caridade toca no ponto principal que quero tratar neste artigo, e que é a questão mais interessante: seria o Cristianismo uma religião naturalmente conservadora? *Pausa para suspense* Não, não é. É claro que é possível ser cristão e conservador, como tantos são (não tenho o menor receio em também dizer que é possível ser cristão e esquerdista - coisa que não sou). Mas não são coisas que combinam tão bem assim.

Para início de conversa, o Cristianismo começou como uma novidade no mundo. Até hoje, aliás, ele é a novidade no mundo. Para quem nasceu em meio cultural cristão é difícil enxergar o tamanho dessa novidade, e mesmo de sentir seu apelo: Deus nos ama para muito além do que somos capazes de imaginar, e oferece a chance de nos unirmos a Ele, partilhando de sua natureza; algo muito além do que nossas capacidades naturais podem almejar ou mesmo imaginar. Ele se fez homem para viver conosco, nos ensinar, partilhar nossas angústias e efetuar essa união. Esse espírito da descoberta da novidade e do maravilhamento que ela traz pode ser facilmente sufocado pelo peso de tradições e convenções que, ainda que muitas sejam até boas em si mesmas (nem sempre são), tomam o primeiro plano.

Intelectualmente, o que há de melhor no Cristianismo sempre foi a capacidade de integrar e usar criativamente fontes díspares para se chegar a novas concepções. S. Justino Mártir e Clemente de Alexandria citados por Fábio Blanco se encaixam aí; sem falar em seu sucessor S. Agostinho. Poderia citar também S. Gregório de Nissa, pensador cristão que, entre outras coisas, foi o primeiro a condenar a instituição da escravidão enquanto tal; essa condenação - tão anacrônica no século IV d. C. - é uma mostra do espírito e do poder inovadores do Cristianismo.

Não posso deixar de mencionar S. Tomás a esse respeito, e a enorme (e virulenta) oposição que suas posições, muitas delas revolucionárias, sofreram do clero e dos professores conservadores. Foi entre cristãos que surgiu a ciência natural verdadeira, primeiro com a elaboração do método experimental e depois com a libertação gradual dos erros aristotélicos que nos aprisionavam; e isso só ocorreu porque tiveram a coragem de dizer que antiguidade não é prova. Os gigantes sobre os quais sentamos eram tão falíveis quanto nós, e erraram muito. O espírito cristão é o espírito da descoberta e da audácia, dos altos ideais e da sede pelo bem, e não o do conformismo conservador e cansado.

Assim, embora os cristãos, em sua maioria, tenham sido conservadores (como são provavelmente a maioria das pessoas), empenhados em manter a tradição pela tradição, o brilho cristão floresceu mais vivo exatamente nos inovadores e criativos; cujo espírito, ironicamente, foi contrariado ao terem suas obras transformadas em novos cânones e tradições inquestionáveis. É o caso de todos os Doutores da Igreja (vide esta tentativa de se refutar Darwin com base na metafísica de S. Tomás) e de tantos outros dentro e fora do âmbito religioso, dado que essa mesma dinâmica opera em quase tudo.

Por fim, politicamente, o Cristianismo é a religião que dessacralizou os reis e imperadores; que os colocou ao nível dos reles mortais. Que relativizou a autoridade soberana ao ensinar que uma lei pode ser injusta a ponto de não dever ser obedecida. Que chegou até mesmo a defender o tiranicídio. Que deu origem ao conceito de direitos individuais inalienáveis e ao entendimento da economia de mercado. Nesse âmbito também o conservadorismo da maior parte dos membros da Igreja se fez sentir ao longo da História, mas foi exatamente o elemento não-conservador, inovador, racional, vivo, que falou mais alto; tão mais alto que o conservadorismo ocidental (do tipo saudável; não estou falando em momento algum de tradicionalismo e esquisitices similares) é notadamente menos reacionário que seus correlatos em outras culturas.

Foi o Cristianismo que deu origem à civilização ocidental, e o que é essa civilização se não o reinado da razão e, portanto, a relativização da tradição enquanto valor? Quem valoriza a tradição acima do indivíduo e da razão individual (e ela só pode ser individual) deve ir pra Arábia, pra China, pra Rússia; o Ocidente não é seu lugar. Com tudo isso, é mesmo uma pena ver gente inteligente dizendo que o traço fundamental e mais importante de nossa civilização é a obediência à tradição! Sim, o conservadorismo de hoje em dia defende em parte as conquistas anti-conservadoras feitas pela sociedade cristã alguns séculos antes; contudo, defende-as exatamente pelo motivo que dificultou seu nascimento. Foi também o espírito conservador e reacionário que, pouco a pouco, criou a cisão lamentável que existe entre o clero (que em diversos períodos se prestou a bastião do conservadorismo mais tacanho) e o resto da sociedade; cisão que não é de hoje e que talvez seja o que mais prejudica a Igreja.

Hoje em dia o conservadorismo serve de caminho e porta de entrada para o Cristianismo? Acidentalmente sim, dado que nossa tradição é cristã e que o conservadorismo valoriza a tradição. Como o Cristianismo caiu em descrédito na opinião dominante, o conservadorismo acaba sendo seu aliado natural. Mas uma vez convertido, cumpre se livrar dos erros desse pensamento que, se levar a melhor e tomar conta da Igreja, será bem-sucedido apenas em dar-lhe um aspecto ranzinza e fechá-la num gueto.

***

Uma nota final: quanto ao comentário sobre o movimento conservador da população brasileira: concordo que ele possa ter efeitos bons, como por exemplo barrar a legalização do aborto. Mas não posso deixar de apontar o óbvio: ele é insustentável a longo prazo. Comparem a aceitação social de sexo antes do casamento há cinquenta anos (ou trinta anos!) e agora; o sentimento popular muda muito rápido. Se o motivo de se defender algo é "sempre foi assim", seus dias estão contados. Não é com base no moralismo carola que a sociedade há de se endireitar; a não ser, é claro, que nosso ideal de sociedade seja a Arábia Saudita.
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