quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Vida Longa ao Rei do Camarote



Perdoem a escolha do tema antigo; isso é tão novembro/2013! Espero que valha a pena. Estiquemos um pouco a memória e voltemos para aquelas duas semanas do mês passado em que o esporte favorito das pessoas lindas foi odiar e ridicularizar o Rei do Camarote. Participei com gosto da segunda modalidade, e não vejo nada de muito errado nisso. Só acho que os motivos que suscitaram essas reações não foram devidamente esmiuçados, e por isso estou aqui para repisar o cadáver. Já aviso que a exposição não será lisonjeira; nem para ele, nem para nós.

E há dúvida sobre os motivos da hostilização? O sujeito é ostentador, rico, fútil; plenamente egoísta. É o que andaram dizendo. Outros, mais conservadores, viram nele a boa e velha “auri sacra fames”, o sórdido amor pelo dinheiro. Seja como for, mereceu.

Pois eu digo que ele não ama o dinheiro. Amor ao dinheiro é um vício ascético. É o que acomete o trabalhador compulsivo, o trader para quem o aumento do saldo bancário é um fim em si mesmo; o poupador muquirana que evita religiosamente qualquer pequeno gasto a mais. Esses têm o dinheiro como um fim, e não como um meio para comprar a felicidade. É um vício bem infeliz e solitário. O Rei do Camarote é infeliz, mas, ao contrário dos amantes do ouro, esbanjador. Se ele tem e quer dinheiro, é para usá-lo; para comprar muito luxo.

Só que os bens de luxo também não são, para ele, finalidades em si. Tem gente (poucos) que querem bens de luxo pela qualidade, pela beleza e por outros prazeres diretos que eles proporcionam. Dirigir uma Ferrari, por exemplo, deve agregar valor, não ao camarote, mas à experiência do sujeito. Sentir o ronco do motor, a velocidade, o poder enorme aliado à elegância das formas; para alguns, isso bastaria.

Não para o Rei do Camarote. Ouçamo-lo: “Ferrari é um sonho de consumo de qualquer pessoa em qualquer parte do mundo.” (CAMAROTE, Rei do. 2013.) Ele quer a Ferrari apenas porque todo mundo quer uma Ferrari. É tudo pelo social; tudo pelos outros. “Uma questão de status”. Ele não é nada egoísta; não coloca a si mesmo acima de tudo. Ele coloca a si mesmo abaixo de todos os outros, seu valor à mercê da opinião alheia. Se vamos acusá-lo de algo, é de excesso de altruísmo, preocupação constante com os outros, em se sacrificar pelos valores dos outros, deixando seus próprios valores de lado. Gosta de vodka, bebe champagne.

Até aí, contudo, nada fora do comum; quem nunca? A ausência de amor próprio pode ser um grande pecado, mas não é o que nos levou a condená-lo. O grande pecado do Rei do Camarote não é procurar a glória dos homens; é falhar nessa busca.

Pobre Alexander. Ele se circunda de todos os sinais exteriores do poder e ainda assim projeta impotência; continua sendo um coitado, um loser, um panguão. Não me levem a mal; aposto que há vários homens e mulheres querendo se aproximar dele; por oportunismo. É impossível acreditar, contudo, que algum homem realmente o inveje e que alguma mulher realmente o deseje. O sucesso feminino de que ele se gaba, e que lhe custa muito dinheiro, é realidade corriqueira de muito pé rapado.

O insuportável no Rei do Camarote é essa desconexão entre pretensão e realidade. Alguém aparentando ser o que não é, um tema clássico do humor (todo mundo sacou, aliás, que o sujeito é gay; isso leva a desconexão a um outro nível). Puxar o tapete das pretensões alheias; colocar cada um em seu devido lugar: sempre para baixo. O riso é a arma mais destrutiva de todas. É a única eficaz na arte da degradação moral e social. Nenhum valor que se queira absoluto pode tolerar o humor; por isso monarquias antigas e políticos modernos querem-no proibido, assim como todas as religiões (catolicismo, islã, feminismo, etc.). O humor é o ácido universal da condição humana e, para quem ainda nutria alguma nobre esperança, não tem absolutamente nada de moral, ético ou sustentável. O Rei do Camarote está nu, e nós aproveitamos para jogar um ácido. Quem mandou sair assim?

Não sei porque achamos graça em demolir pretensões. Tenho uma suspeita, que acho que deve servir para pelo menos alguns casos. Aparentar o que não se é é um jeito de tentar ser o que não se é. Tentar melhorar a própria condição. E no fundinho do coração de muita gente (não do meu, não do meu!) reside uma linda voz que lhes impele a rebaixar todo desejo de melhora alheio; que, por contraste, revela o quanto não temos melhorado em nossa. Humilhá-lo, ainda que em pensamento, alivia um pouco a angústia de nossa própria nudez.

O ambicioso, muito mais do que o pobre ou mesmo do que o rico, é sempre mau; é visto e representado ou como risivelmente falso ou como psicopata. O pecado não é estar em cima, se você nasceu em cima; é tentar chegar lá. Sendo assim, nem vem ao caso se o Rei do Camarote merece as zoeiras todas que recebeu (e não foram só zoeiras; teve muito ódio em estado puro também), pois, merecendo ou não, isso não tem nada a ver com o que nos levou a zoá-lo. A justiça é o melhor pretexto para as piores crueldades.

O que nos redime é a memória curta. Passado um mês, é só mais uma pessoa normal, vagando perdido neste mundo. E aposto que mesmo seu pior algoz das redes sociais, se porventura lembra-se que ele existe, já não sente mais nada de ruim, espera que ele encontre seu rumo e seja feliz.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

A Morte dos Heróis





















It turns out que meus amigos do face são profundos conhecedores e admiradores do “Madiba”. Parece que só eu faltei a essa aula; só eu não li os livros. Todos manifestaram sua dor, alguns arrebatados pela emoção, desestabilizados com a morte do herói, do raio de luz que guiava suas vidas e que os dava esperança de um mundo melhor. Teceram loas ao fim do racismo, à democracia, à paz, ao espírito acolhedor dos sul-africanos. Bem, nem todos. Alguns outros amigos, minoritários, acusaram a farsa, pintando um outro Mandela: terrorista sanguinário e/ou monstro corrupto. Veja este e este links (calma, é da Piauí e da Enciclopédia Britânica; não do ARENA-Jovem).

Há um quê de espírito de porco na tentativa de destruir os ídolos alheios, por mais justa que seja a destruição. Aliás, especialmente se for justa. Mas, sendo justa, como não aceitar suas conclusões? Mandela não foi herói; foi apenas demasiado humano numa escala maior do que a dos outros mortais. Mandela o comunista radical, stalinista, o aliado de ditadores sanguinários e magnatas do diamante; Mandela o terrorista; Mandela o corrupto; é tudo verdade. Sustento, no entanto, que Mandela o herói também existiu. A discussão é o embate entre dois símbolos – um bom e outro mau – que não correspondem ao ser humano real. A posição minoritária não acrescenta nada, e acaba aparentando oposição aos valores representados pelo símbolo bom.

Mandela tinha seus esqueletos no armário. Não foi um puro, um santo. Mas representou para muita gente – via seleção midiática – coisas boas. Sua vida representa a vitória sobre o preconceito racial e, para coroá-la, a atitude da reconciliação ao invés da vingança. Eu penso que, se simboliza coisas boas, e há alguma razão para aplicar o símbolo ao sujeito real, deixem o herói estar. Que me importa se, no fundo, Mandela foi um canalha, ou se seu governo falhou em garantir a paz e prosperidade? Só não acreditem literalmente no herói, no santo. Em verdade, ninguém é santo; nem mesmo os santos.

Os dois lados da polêmica Mandela me lembram das brigas acerca da nossa história. Dos paulistanos que vandalizaram a estátua do Brecheret no Ibirapuera, e que querem derrubar a estátua do Borba Gato em Santo Amaro. Os bandeirantes não foram heróis; foram monstros, gananciosos, caçadores de índios. Concordo, desde que se adicione: e foram heróis. A coragem desses homens do mato, a sede pelo ouro, ou pedras ou escravos ou o que fosse, a determinação de entrar na mata fechada, de ser indiferente à morte como só um predador faminto é capaz; esse pecado desbravou nosso território e formou nosso país. Viva!

Os homens do nosso século são incapazes de querer algo com a mesma veemência e falta de culpa com que os homens da Renascença queriam. Olhamos para trás e nos horrorizamos com a violência. Os vícios dos outros são sempre mais chocantes. Algo similar ocorre quando olhamos os ícones políticos de meados do século 20; todos – Che, Churchill, Mandela –, envolvidos em muito mais violência do estamos prontos a tolerar hoje em dia.

Não quero adotar o papel ridículo daquele que condena o tempo em que vive para exaltar um passado virtuoso, que, sabemos, não existiu. Digo que estamos corretos em condenar a violência política daqueles tempos, mas temos também o dever de compreendê-la em seu contexto; o mesmo vale para a escravidão. E vou além: nossos revoltados anti-bandeirantes também têm um herói legítimo para substituir os bandeirantes: Zumbi dos Palmares. Para o bem da inocência deles, espero que jamais leiam uma biografia de Zumbi. Ou melhor, espero que leiam. Inocência é coisa perigosa; adora atirar a primeira pedra.

O panteão dos homens é como o dos deuses gregos – grandes feitos e grandes defeitos; e não menos digno de culto. Celebremos Mandela, os nossos bandeirantes, Zumbi. A Inglaterra, país tão conciliador, tem lições a nos dar: celebram Henrique VIII e Thomas More – nenhum dos quais era flor que se cheirasse.

Crescer individualmente requer, entre outras coisas, perder a devoção incondicional aos pais, aos professores, etc.; vê-los como os homens que são. Uma cultura madura, da mesma forma, não acredita na verdade literal dos heróis; e por isso mesmo pode prestar-lhe homenagens mais verdadeiras. A admiração de uma figura heroica, que fez algum grande bem, não requer a salvação de sua alma. Mandela lutou pelo bem, marcou a percepção de seu tempo de forma positiva. Sendo assim, viva Mandela, ainda que eu – e não só eu – não saiba nada do homem! 

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Sobre os perigos da leitura cuidadosa

Está depositada na devida secretaria. 148 páginas. Resta às engrenagens acadêmicas triturá-las e transformá-las em pasta. O tempo que essas páginas custaram, e o mal que produziram, jamais serão recuperados. Indo depositá-la, tinha o desejo de que, logo que a tivesse entregue, uma ânsia mais forte do que eu me fizesse correr ao banheiro e vomitar copiosamente, tirando das entranhas o bolo espiritual que me pesava. A realidade foi bem mais serena, e voltei mais leve mesmo sem fazer jorrar minha bile nos canos da FFLCH. Finalmente me libertei do espírito maligno de Santo Tomás de Aquino (sim, apaguemos o título! Foi a primeira e mais sábia lição da faculdade). Não é dele, contudo, que quero falar. Ele foi apenas o meio, o diabinho subalterno a serviço de uma máquina funesta que certamente foi pensada no inferno, mas que criou consciência própria e desbancou a Lúcifer e todos os outros.

Pós-graduação em Humanas numa instituição séria deste país é negócio de réprobos. Exotericamente, vende-se trabalho acadêmico, um domínio do texto de algum palpiteiro célebre do passado. O que se prepara, contudo, no plano esotérico, é a possessão voluntária da alma estudantil pelo espírito do morto.

Muito se critica a universidade brasileira por não formar filósofos, mas historiadores de filosofia, eruditos de filosofia. Sabem o que Platão ou Espinosa diriam do PT, mas são incapazes de formular algum argumento que vá além dos chavões. O que ninguém diz, ou ninguém quer ver, é que a ausência de filosofia não é uma escolha, ou mesmo, como achei em momentos mais ingênuos (quando estava por fora, achando que todos “tinham pontos”), efeito de uma falta de coragem, um medo de se expor. Isso implicaria que a possibilidade de fazer filosofia é rejeitada, quando na verdade ela nem existe.

Ao ler qualquer texto, a reação da pessoa normal minimamente formada (que já transcendeu o “se está escrito, é verdade”) é se perguntar se aquilo é verdade. A afirmação bate com sua intuição e sua experiência sobre o assunto? O autor dá algum argumento? Os argumentos são bons? Se for falso, quais as implicações? E se for verdadeiro? Isso é uma mente normal em funcionamento. Mas a vida acadêmica em Humanas não é compatível com uma mente normal. E isso não é de todo o mal...

No começo de uma vida acadêmica, a grande luta é deixar de lado essa faculdade de julgar; abrir mão da pergunta básica por trás de toda empreitada cognitiva: “Isso é verdade?”. A postura é sábia. Para entender um pensador, deixa-se de lado as próprias convicções (e mais, os gostos e preconceitos) e lê-se o que ele disse de espírito aberto, procurando reconstruí-lo e entender a lógica interna daquele pensamento. Junto com o entendimento ganho, vem também o demônio de brinde.

Primeiro ele te dá o gostinho bom que vem ao se habitar o mundo conceitual que se estuda. Um mundinho pequeno, fácil de se localizar. Saber operar dentro das regras dadas pelo sistema, discutir, investigar os menores recantos à procura de novas migalhas de informação; como é bom encontrar aquele detalhe textual que embasará toda uma nova interpretação!

Às vezes a pergunta ressurge: mas será que ele acertou quanto a essa opinião? Será que Tomás fez bem ao propor a pena de morte a hereges, ou ao dizer que os bem-aventurados do Céu se alegrarão ainda mais ao contemplar a desgraça dos condenados? Só que já não é tão fácil respondê-la, dado que cada termo dele exige uma definição também nos termos dele, e que as posições em jogo – agora já se sabe – se davam num contexto conceitual diferente do nosso, etc. Matéria e forma, potência e ato, intelecto passivo e ativo; quanto mais se lê, mais difícil transplantá-los para este nosso mundo de facebook e jogos universitários.

Imagine uma foto digital. Temos ali uma representação relativamente fiel, embora imperfeita, de um aspecto da realidade. Agora aumente o zoom milhares de vezes, de modo que cada pixel ocupe sua tela inteira. Vida acadêmica é maximizar pixels. Uma vez nesse nível, aprende-se a ir de um a outro; dá até para prever como será o próximo; decorar a ordem dos pixels, entender o sistema por dentro. Só que nesse nível a questão da representação desaparece, pois aqueles quadrados monocromáticos obviamente não se referem a nada. “Hã? Esse negócio de potência e ato, intelecto agente, synderesis, era para ter a ver com o mundo real??”  O único modo de se entender qualquer um desses conceitos, em Tomás, é segundo os termos que ele próprio usa. Onde termina a terminologia e começa a realidade que ela nomeia? Quanto mais se lê, mais a resposta tende ao “nunca”.

Logo, a única resposta possível é ver se a tal opinião concorda ou não – ou melhor, remodelar todo o sistema conceitual para que a tal opinião concorde – com o resto do sistema. E daí você já está tão dentro do labirinto que esqueceu o caminho de volta e nem quer mais voltar; esqueceu que há algo fora dele e o resquício de memória, já bem abafado pelo inconsciente, só suscita dor e medo.

Um dia você acorda e o diabinho já terminou o serviço: a possibilidade da questão sumiu. O que era mapa virou quadro virou mundo. O mundo em que a synderesis abarca os princípios da lei natural não tem nada a ver com o mundo em que a Dilma se reelege, não porque estejam distantes no tempo, mas porque habitam universos paralelos. (“Mundo como ideia”? Não, nada a ver, e não me façam falar de uma raça ainda mais perdida...). Não é que os acadêmicos brasileiros tenham medo de discutir certas questões. É que é impossível conceber certas questões, a verdade é algo que não surge. Não é uma defesa do relativismo ou do subjetivismo, mas a total indiferença – ou melhor, incompreensão e esquecimento – quanto à própria noção de verdade.

Já repararam que os grandes filósofos nunca foram bons leitores da filosofia alheia? Aristóteles “não entendeu nada” de Platão. Onde já se viu, achar que refuta a noção de participação com aqueles argumentinhos rasteiros! Tomás por sua vez não compreendeu Aristóteles, tentando encaixá-lo num outro universo de pressuposições. Leibniz tinha parca noção dos escolásticos que tanto respeitava, e adulterou-os sem limite. É tudo verdade. Descartes, Espinosa, Kant, Hume, Wittgenstein; se citaram a outros, foi para mostrar que nem existia filosofia séria antes deles.

Não foi por acaso. É justamente porque não foram leitores profundos que escreveram coisas profundas. Agora durmam com essa! 

sábado, 30 de novembro de 2013

A alma do fantoche de palha


Devo alertar a juventude de que quando lhe falam todas essas coisas como de descobertas de nosso tempo, estão zombando dela: essas novidades são tão velhas quanto deploráveis quimeras.

François-René de Chateaubriand, Ensaios sobre as revoluções, 1797.

A atual ascensão daquilo que se poderia chamar de uma espécie aparentemente contraditória de “nova mentalidade conservadora” brasileira traz um fato curioso e, ao mesmo tempo, flagrante: se de fato existiu doutrinação ideológica, então os “novos conservadores” são frutos de anos de inculturação promovida pela mentalidade progressista de esquerda. Oferecendo-nos, assim, uma ideia razoavelmente clara do esgotamento do projeto revolucionário que visava a realização do novo homem e do bem utópico.

Deste modo, os “novos conservadores” são os próprios “filhos da revolução” cultural. Pois são os herdeiros diretos da precária e distorcida política pedagógica na qual o país foi construído e submetido ao longo de décadas. Neste sentido, não há nessa nova geração de conservadores nada do refinamento intelectual e moral típicos da verídica tradição conservadora que eles alegam defender e herdar. Nenhum sinal da prudente aptidão que deve servir de exigência mínima a conduzir uma reacionária resistência.

Fazer esta exigência poderá até soar como pedantismo. Entretanto, a exigência intelectual e moral para ir a público defender uma genuína tradição conservadora não condiz com a formação dessa nova geração de conservadores que, em geral, tem começado atuar no debate público. É relativamente fácil, a partir do advento da internet, tomar consciência da existência de uma tradição intelectual e moral conservadora a fim de constatar que, no Brasil -- de fato --, carecemos dessa formação.

Só que a experiência do tempo do novo afã conservador não coincide com a experiência do tempo de formação intelectual e de preparação moral necessárias para fundamentar uma consistente mentalidade conservadora de uma nação, seja no nível estético, literário, acadêmico, político e cultural. Ora, se o Brasil sofreu um apagão cultural de intelectuais conservadores em particular e da alta cultura em geral ao longo das últimas gerações, então não será do dia para noite que se testemunhará o renascimento dessa tradição. A vida intelectual é assustadoramente custosa e exageradamente penosa.

As novas e eficientes possibilidades de comunicação proporcionadas pelas tecnologias de internet não acompanham a demanda da preparação do intelecto. É até muito bacana e empolgante ir a um “hangout”, ao vivo, desabafar sobre os intrincados problemas de filosofia política e da “guerra” contra a civilização ocidental. Eu diria até corajoso e muito nobre botar a cara à tapa e falar com orgulho sobre o significado de ser um conservador em um país carente de produção intelectual conservadora.

Porém não se deve confundir o ímpeto da tomada de consciência com o próprio conteúdo de uma consciência conservadora. E os flagrantes vícios de linguagem e o maneirismo da postura moral depõem contra essa nova geração de conservadores que, pelo menos em referências a esses aspectos, cumpre adequadamente bem o papel de “conservadores”: manter intacto -- e até prestar certo tributo à memória -- o programa político-pedagógico do progressismo de esquerda em que foram formados. Não se pode esquecer e duvidar jamais deste dado cultural: a “paidéia” dos novos conservadores é, hegelianamente, progressista.

Em outras palavras, conservam precisamente aquela pitoresca imagem que a esquerda, ao longo de todos esses anos de doutrinação, esboçou da genuína tradição conservadora. Como se o fantoche de palha tivesse sido insuflado com a alma fabricada a partir de todos tipos de colagem produzidos com o precário e desforme imaginário progressista acerca do que vem a ser a verídica tradição da mentalidade conservadora e agora está aí perambulando pelas redes sócias.

A verídica tradição conservadora repousa e vive à luz de três noções fundamentais: reação, prudência e ironia. Grosso modo, uma noção política e uma moral que, na experiência mental de um conservador, não poderiam jamais viver separadas. E a ironia que deve ser adotada como o refinado espírito metodológico: um conservador precisa saber, antes de tudo, a ser o primeiro a rir de si mesmo, ou seja, “saber esconder sua brincadeira na seriedade e sua seriedade na brincadeira”, como diria Kierkegaard.

Reagir por reagir implicaria cair na mesma estratégia dos adversários progressistas, pois é uma ação de “homens ocos”, para usar uma expressão de Russell Kirk. E o mau humor do espírito progressista foi decisivo para a emergência de gente vazia. A reação conservadora necessita superar o frenesi inútil da mentalidade revolucionária e, por isso, tem de se afastar do ímpeto utópico construído no imaginário alquímico das ideologias produzidas como símbolos do excesso de gente que se leva demais a sério e nunca coloca a si mesmo em xeque.

Uma reação cega não poderia apontar para outra coisa senão para uma espécie de hybris, isto é, a desmesura. Portanto, a um conservador reacionário deve-se exigir a ética da prudência, caso contrário, sua reação torna-se necessariamente revolucionária e fundamentada apenas no violento e desgovernado impulso da mudança pela mudança. O que seria uma vertiginosa demonstração de nunca terem feito uma radical auto-avaliação e auto-reflexão das crenças e do imaginário que acabaram de ser descobertos. 

Sendo assim, se a desmesura define-se pela incapacidade de lidar com a adequação entre teoria e prática – entendidas neste contexto como “a tomada de consciência e o estudo da tradição intelectual conservadora” e “a condição de possibilidade para agir como um conservador” –, então a prudência deverá ser exigida exatamente como a experiência de mediação na consciência de um conservador entre reflexão e ação conduzida sempre pela espirituosa capacidade de rir de si mesmo. Em outras palavras, prudência e ironia se impõem como as únicas possibilidades de realização do “bem factível” de homens reais e razoáveis vivendo e reagindo em um mundo real. 

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Erros de perspectiva


Estou aproveitando a ocasião do último post do Rafael para escrever algumas coisas que aprendi matutando sobre poesia nos últimos anos. Não se trata de implicância com Bruno Gripp — que não conheço pessoalmente ou mesmo “virtualmente” —, nem de uma defesa da poesia de Bruno Tolentino, com a qual tive pouquíssimo contato, geralmente por meio de poemas esparsos que podem ser encontrados na internet. Se me remeto à celeuma que se estabeleceu entre Falcón e Gripp é para refletir sobre uma postura muito corrente entre alguns leitores mais cultos de poesia.

Bruno Gripp, para demonstrar a inépcia técnica de seu xará, o Tolentino, tomou os versos de um dos poemas de Imitação do amanhecer, escandiu-os e terminou por concluir que o poeta não sabia manejar os alexandrinos. O Rafael, por meio de uns versos de Castro Alves, procurou alertá-lo sobre a utilização da versificação espanhola (para quem quiser se instruir mais sobre o assunto, sugiro a leitura da introdução de Péricles Eugênio da Silva Ramos à poesia completa de Álvares de Azevedo, publicada pela Saraiva no começo da década de 1960). Mesmo percebendo que muitos dos problemas identificados até então “caíam por terra”, Gripp continou insistindo na inadequação de três versos ao esquema métrico que parecia ser o do poema em questão.

A lição que o Rafael nos deu com seu texto — e aqui não estou dizendo no sentido de que ele teria “dado uma lição” no Gripp, mas sim que ele apresentou uma visão muito útil de como a poesia precisa ser lida — é que um poema, assim como qualquer texto literário, é alguma coisa mais do que a soma de suas partes. Quando Gripp analisa metricamente cada verso de maneira isolada, ele, logo de saída, está perdendo de vista algo que deveria ser considerado desde o princípio: a unidade rítmica do poema. Não estou afirmando que tal unidade seja evidente no poema de Tolentino, que é de fato de difícil apreensão formal, e sim que o importante é saber se os versos estão estruturalmente integrados e não se cada um dos deles foi metrificado exatamente do modo como os manuais prescrevem. Muitas vezes, um bom poeta se distingue por reconhecer a necessidade de distorcer algum verso para que este melhor se subordine à fluência do conjunto. Farei aqui uma analogia com a escultura.

O escritor ouropretano Bernardo Guimarães descreve, no capítulo IV de O seminarista, uma visita de sua personagem principal à Igreja Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, no adro da qual se encontram os Doze Profetas do Aleijadinho. O narrador apresenta as célebres estátuas da seguinte maneira:

Não é preciso ser profissional para reconhecer nelas a incorreção do desenho, a pouca harmonia e falta de proporção de certas formas. Cabeças mal contornadas, proporções mal guardadas, corpos por demais espessos e curtos e outros muitos defeitos capitais e de detalhes estão revelando que esses profetas são filhos de um cinzel tosco e ignorante... Todavia as atitudes em geral são características, imponentes e majestosas, as roupagens dispostas com arte, e por vezes o cinzel do rude escultor soube imprimir às fisionomias uma expressão digna dos profetas.

Ele chega a atribuir a feiura do conjunto às deformidades do artista: “É sabido que estas estátuas são obra de um escultor maneta ou aleijado da mão direita, o qual, para trabalhar, era mister que lhe atassem ao punho os instrumentos./ Por isso sem dúvida a execução artística está muito longe da perfeição”. No que pese o preconceito que até então vigorava em relação à arte barroca, a dificuldade de se talhar a pedra-sabão (que se esfarela facilmente, sendo difícil imprimir-lhe contornos mais delicados) e a evidente fealdade de algumas estátuas, Bernardo Guimarães deixou passar um detalhe importante: a aparente desproporção das formas tem por objetivo corrigir a distorção que a perspectiva causa às figuras. As estátuas dos profetas foram feitas para serem vistas de cima para baixo, e não frontalmente. As cabeçorras e os braços estendidos, enormes e longuíssimos — ao passo que as pernas são atarracadas —, têm por função compensar o fato de que as formas mais distantes, percebidas mais ao alto, aparentarão ser menores do que aquelas que estão mais próximas. Portanto, parece que Antônio Francisco Lisboa desconhecia completamente as leis da proporção, quando na verdade era Bernardo Guimarães que desconhecia as da perspectiva. Às vezes, pouco conhecimento é mais perigoso do que conhecimento nenhum.

Com a poesia se dá o mesmo: é preciso considerar a harmonia do conjunto e não se restringir a uma análise de cada verso em separado. Com isso não estou querendo dizer que não há espaço para a consideração dos versos individualizados, mas tal consideração deve estar subordinada à visão do todo, e não o contrário. A escansão é apenas uma das etapas do procedimento interpretativo. Da mesma maneira, é complicado considerar isoladamente as imagens que o poema traz; é preciso também verificar se elas conseguem se integrar coerentemente num todo semântico maior, que é o do poema. O problema de dar ênfase à escansão dos versos em detrimento da harmonia entre eles (colocando a fórmula acima da forma) é que isso deseduca os sentidos, prejudicando o desenvolvimento da experiência estética, que ocorre pela síntese dos elementos e dos aspectos da obra na imaginação do leitor. A verdadeira crítica literária é aquela que consegue demonstrar os termos pelos quais tal síntese é operada, pois a interpretação (que incorpora também a dimensão formal da obra) é sempre o objetivo maior.

Será então que o poema de Tolentino é harmônico, malgrado sua heterogeneidade métrica (ou mesmo por conta desta)? Para responder a isso eu precisaria dedicar um tempo ao estudo do poema, o que, por ora, não pretendo fazer, pois acredito que mais importante do que saber se Tolentino é o maior poeta da língua portuguesa depois de Camões é mostrar para os leitores as armadilhas de uma leitura muito fechada nas questões técnicas primárias.

Uma linha de investigação que eu adotaria no caso do poema que deu origem a esta discussão é pensar se a ampla utilização do enjambement, que encurta ou abrevia a pausa no final dos versos, não força uma reconfiguração da posição das cesuras para o bem do equilíbrio rítmico de todo o conjunto. Estará Tolentino fazendo algo semelhante ao que fez Aleijadinho com seus profetas, distorcendo os metros para que eles soem mais harmônicos ao ouvido interno dos leitores? É o caso de procurar perceber se há alguma ordem por trás da variação métrica, se ela segue algum princípio discernível. Enfim, as objeções técnicas de Gripp à versificação de Tolentino não provam nada. Deveríamos nos questionar se a variedade dos metros, e até mesmo de estilos de versificação, é fortuita (resultando, neste caso, da inaptidão do poeta em manter uma metrificação homogênea) ou se ela tem uma razão de ser, formalmente falando. Ela (a variedade) não é, necessariamente, uma deficiência.

Em suma, foi mais ou menos isto que aconteceu: a princípio, Gripp imaginou que quase metade dos versos do poema analisados estavam metrificados de forma equivocada; com a descoberta de que muitos desses versos eram dodecassílabos à espanhola (sem gracinhas, por favor), restaram três com a métrica em discussão. Posteriormente, duas hipóteses foram aventadas que explicavam a aparente inadequação de um desses versos; ainda restam dois. É de se imaginar, pelo andar da carruagem, que logo teremos também uma explicação aceitável para ambos. Por outro lado, Falcón tem insistido, desde o começo, na suposta harmonia do todo. O ouvido interno do Rafael, até agora, mostrou-se mais eficiente do que o esquadro do Gripp. E digo isto não para insinuar uma inaptidão ou a falta de sensibilidade estética deste, mas para criticar certa tendência de alguns leitores de poesia que acabam incorrendo numa redução dos poemas a seus aspectos meramente técnicos, ignorando a dimensão propriamente formal da obra, cuja consideração vai além da análise dos procedimentos empregados na construção do objeto poético.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Ad Hominem Entrevista: Olavo de Carvalho

HÁ QUASE vinte anos, a indigência intelectual brasileira, sempre tão orgulhosa de suas nobres realizações, ganhava nome e sobrenome: O Imbecil Coletivo – Atualidades Inculturais Brasileiras. O sucesso clamoroso do livro, que em pouquíssimos meses esgotou várias edições, era, a um só tempo, acontecimento preocupante e auspicioso: se de um lado ficava evidente que a inteligência nacional – ou sua falta – seria suficiente para preencher dezenas de volumes, em contrapartida o interesse pelo diagnóstico e possível tratamento sugeria que talvez não estivéssemos condenados a desaparecer do mundo civilizado de forma definitiva.

Muita coisa piorou de lá pra cá. A ascensão do PT ao poder, a hegemonia do pensamento de esquerda – predominantemente em sua versão gramsciana – e a quase absoluta sonegação de todo pensamento filosófico e político que não seja, de modo mais ou menos explícito, afeito às comodidades e cumplicidades daquilo que um dia já ousaram chamar de “jornalismo”, parecem denunciar o fracasso do empreendimento intelectual e pedagógico de Olavo de Carvalho. Se tudo piorou e a “longa marcha da vaca para o brejo” é mesmo o inescapável roteiro do pensamento guarani-kaiowá, que é que se ganhou com tudo isso?

Pois a ironia é precisamente esta: quase vinte anos depois, Olavo de Carvalho publica O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota e inicia novo ciclo com novo sucesso. Milhares de exemplares vendidos e a mesma certeza: se a intelligentsia brasileira continua a dar o exemplo do que não se deve fazer, o filósofo reafirma seu propósito de mostrar que nem todo mundo está dormindo enquanto a vaca marcha, lentamente, para o infausto destino. E – Deus nos leia! – talvez o prognóstico seja outro, e menos acabrunhante, depois que os imbecis passaram a ser chamados, sem respeitos humanos, pelos respectivos e apropriados nomes.

Ad Hominem entrevista Olavo de Carvalho: para os imbecis de sempre, para os idiotas de costume, e para todos os outros que não se contentam em ser nem uma coisa nem outra.

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O sucesso instantâneo do seu novo livro nos leva a crer que o “olavismo” já não cabe nos limites de um gueto virtual – como querem alguns –, mas se alastra com velocidade entre as mais diversas camadas da sociedade brasileira. Se isto é muito bom, ao mesmo tempo há quem aponte um efeito colateral da dita “orkutização do olavismo”, a saber, o surgimento de um exército de entusiastas das suas ideias os quais aparentam não ter preparo intelectual para compreender o que justifica seu próprio entusiasmo. O senhor concorda com essa análise? Como avalia essa recepção “quase cega” das suas ideias por parte de seus leitores?

Tenho uns trinta e seis mil “seguidores” no Facebook (que só são seguidores num sentido ótico da palavra), uns cem mil leitores espalhados pelo Brasil e talvez uns duzentos mil ouvintes e espectadores no Youtube. Mas, de todos esses, só uns dois mil – menos de um por cento – são meus alunos no Seminário de Filosofia, e estes, a pedido meu, evitam participar de discussões na internet, só o fazendo quando é no quadro de alguma atividade profissional ou intelectual mais sistemática, como é o caso do Felipe Moura Brasil, o do Ronald Robson, o do Gustavo Nogy e o de mais alguns poucos. Por isso, o que acaba aparecendo superficialmente como “discussão” das minhas idéias é justamente o que vem do público mais geral, que não tem comigo nenhuma relação de aprendizado e que me chama de “professor” apenas por gentileza. Não tem sentido esperar que esse público tenha uma compreensão das minhas idéias no nível que a têm os meus alunos. Deles vêm, com freqüência, perguntas mal formuladas e opiniões toscas, que refletem um esforço de aprendizado sincero mas ainda muito incipiente. Alguns observadores maliciosos ou burros, no entanto, nada sabendo nem querendo saber dos meus cursos ou dos meus alunos, fazem questão de tomar justamente esse público geral como amostra típica dos resultados do meu ensinamento. É uma deformação caricatural monstruosa. Todo escritor ou filósofo tem um público geral que o aprecia sem compreendê-lo muito, mas tem também o direito de ser julgado pelos seus escritos e pelo seu ensinamento direto e não pela resposta incontrolável que obtém de um público difuso. Já pensou o que seria de Sócrates se não fosse julgado pelo que Platão e Aristóteles aprenderam dele, mas pelo que se lê a seu respeito no trabalho escolar de um estudante brasileiro do segundo grau? Que seria de Karl Marx se toda a imagem que temos dele não fosse baseada no que ele legou a um Georg Lukács ou um Karl Korsch, mas tão-somente no que o Punheteu sabe a respeito? Todo escritor, todo filósofo é “orkutizado”, mas somente um – este entrevistado – é aferido preferencialmente pela sua imagem orkutiana, que não o reflete de maneira alguma. Alguns fazem essa caricatura de análise por malícia, outros por ignorância genuína, mas nos dois casos o que está verdadeiramente orkutizado é o cérebro dessas criaturas. A confusão entre os dois níveis de recepção é um erro tão grosseiro, que o fato mesmo de que tantos o cometam é um índice sociológico da crise nacional de QI. Pior ainda é que aqueles que criticam a adesão simplória de certa parte do público às minhas idéias têm uma visão ainda mais simplória dessas idéias, baseada inteiramente em frases que ouviram nos meus programa de rádio sem nunca ter lido os meus livros nem freqüentado os meus cursos. Esses detratores do meu trabalho criticam nas outras pessoas o erro que eles próprios estão cometendo, em maior escala, nesse mesmo instante. Por que a simpatia “quase cega” deveria ser mais desprezível do que a hostilidade igualmente cega? Aplaudir sem compreender muito é por certo mais decente do que condenar sem compreender nada.

Apesar das frequentes advertências que o senhor, baseado no esquema aristotélico dos quatro discursos, fez e continua fazendo quanto à necessidade de dominar os registros poéticos e retóricos antes de passar ao estudo da filosofia, boa parte de seus admiradores e até alunos parece interessar-se sobretudo nos estudos teóricos (tendentes à lógica, segundo a classificação aristotélica). Isso produz fenômenos curiosos, como algumas interpretações bastante rudimentares de conceitos densos da teologia. Como o senhor explica isso? O que o senhor julga que pode ser feito para despertar as pessoas para a importância filosófica do estudo das letras?

O problema é muito mais sério do que eu mesmo imaginava no início. A presente geração foi toda alfabetizada pelo método socioconstrutivista, que a incapacitou não só para o domínio das regras da gramática, mas para a percepção das nuances, dos tons, da harmonia. É como uma surdez tonal adquirida. Para corrigir isso, a simples leitura de boas obras de literatura não basta. O pessoal, com isso, adquire cultura e às vezes progride um pouco na percepção das formas verbais, mas continua incapaz de “entrar” pessoalmente na tradição literária, de participar dela ativamente. Não sei como resolver esse problema, mas entendo que é ele que leva tantas pessoas a se sentirem mais à vontade em terrenos mais impessoais, onde a simples apreensão do sentido explícito dos conceitos parece bastar. É claro que nisso se enganam. Sem um bom “ouvido” literário não se pode ler com proveito nem o Tractatus de Wittgenstein, para não falar de livros de teologia.

Por falar em literatura, o senhor certa vez disse que Bruno Tolentino foi o melhor poeta em língua portuguesa desde Camões – e seus críticos adoram repetir essa frase em tom de chacota. O que faz de Tolentino um poeta tão grande, em sua opinião? Em que sentido ele seria comparável a Camões?

Acho que quem não percebe isso à primeira vista tem um cérebro lesado. A temática do Bruno abarca o universo quase inteiro da experiência humana e intelectual do século XX, da qual seus concorrentes brasileiros mal chegam a apreender uns pedacinhos, e ele a expressa com um domínio técnico alucinante. Nenhum outro poeta brasileiro fez isso. Nem Drummond, nem Manuel Bandeira. Em carne e osso, o Bruno foi notoriamente um semilouco, um mitômano, mas quantos poetas não o foram? Nunca ouviram falar de Guillaume Apollinaire, de Christopher Marlowe, de Fernando Pessoa?

A tese exposta em sua obra Aristóteles em Nova Perspectiva – Introdução à Teoria dos Quatro Discursos – o discurso humano é uma potência que se atualiza de quatro formas diferentes, não necessariamente contraditórias entre si, mas complementares e com diferentes níveis de credibilidade – foi, desde seu lançamento, ou ignorada ou completamente incompreendida pelos estudiosos. Menção honrosa deve ser feita aos portugueses (professor Mendo Castro Henriques entre eles). O senhor sabe de algum professor brasileiro que tenha lido a obra, ou chegou a se corresponder com alguém, acerca desse estudo?

Quando esse livro saiu, fazia trinta anos exatos que nada se publicava de autor brasileiro sobre Aristóteles. Isso dá uma idéia do terreno miserável onde plantei aquela semente. Para não admitir que tinha ficado para trás, o pessoal da USP desencavou uma tese do Oswaldo Porchat Pereira, já velha de três décadas, e a publicou às pressas, mas era apenas um bom trabalho escolar, sem nada de original. Só obtive audiência inteligente no círculo de estudiosos de lógica, discípulos de Newton da Costa, especialmente Alexandre Costa Leite. No exterior, o meu livro foi muito bem recebido. O primeiro a lê-lo e aplaudi-lo foi o biólogo Antoine Danchin. Depois veio o círculo inteiro dos discípulos de Eric Voegelin – Frederick Wagner, Tudor Munteanu, Jody Bruhn, David Walsh. Roger Kimball recomendou o livro à Encounter Books, que prometeu publicá-lo se eu lhe acrescentar mais textos sobre o mesmo assunto para formar um volume mais grosso. Em Portugal, Mendo Castro Henriques, João Seabra Botelho, Carlos Aurélio e todo o pessoal da revista Leonardo. Na Romênia, Andrei Pleshu, Horia Patapievici, Gabriel Liiceanu e muitos outros.

O senhor tem dito que alguns de seus alunos já estão mais bem preparados para atuar na vida intelectual do que muitos professores universitários. E também alerta com frequência sobre a importância de passar anos estudando antes de se manifestar publicamente. Levando isso em conta, para quando podemos esperar a aparição pública de seus melhores alunos? Eles tenderão a ingressar nos meios já existentes (como universidades e jornais) ou criar postos de autoridade paralelos ao cenário cultural atual? O que o senhor julga ser mais adequado?

Estou recolhendo e analisando centenas de projetos de trabalhos de conclusão de curso que, mais dia menos dia, serão publicados em forma de livros. Quando digo que meus alunos têm mais preparo do que o típico professor universitário brasileiro de hoje, falo com base nessa documentação e não em impressões gerais. Nem menciono o meu filho Luiz Gonzaga, que, sem nunca ter freqüentado universidade alguma, não tem concorrentes à sua altura no meio universitário nos campos da sua escolha, as religiões comparadas e a filosofia medieval. Alguns dos meus alunos já têm livros publicados e dão uma amostra do que estou dizendo. Virgilio Dalla Rosa e Rodrigo Gurgel são exemplos. Eles superam de longe qualquer concorrente nos seus campos respectivos. Quando a produção dos demais começar a aparecer, ela injetará vida nova na atividade intelectual deste país. Talvez eu crie uma revista de cultura e promova cursos dados pelos meus alunos, mas, fora disso, não tenho planos. Cada um conduzirá sua vida como bem entenda.

Atualmente, que filósofos vivos o senhor considera dignos de atenção? E por quê?

Jean-Luc Marion, John Deely, Harry Redner, Glenn Hughes, Horia Patapievici, muitos outros. A inteligência não morreu no mundo. Só no Brasil.

Em um artigo de 2006 (A fossa de Babel, constante em O mínimo..., p. 287), o senhor escreve: “É verdade que nem todo mundo reclama do que escrevo. Há quem goste. Mas uma boa parte gosta naquela mesma clave lúdica em que o conhecimento adquirido é uma forma de diversão, sem alcance sobre a vida prática e as decisões reais. Quando dou conselhos a essa gente, quase sempre me sinto como um médico que, tendo receitado uma medicação de emergência, depois a encontra esquecida num canto da sala onde a família presta sua última homenagem ao cadáver do paciente. Não me sinto um gênio incompreendido, não tenho nem um pouco de dó de mim mesmo: tenho dó daqueles a quem estendi o socorro dos meus conhecimentos e que só os aproveitaram como deslumbre passageiro. Não entenderam que eu não queria os seus aplausos, mas a sua salvação.” Sete anos após ter escrito essas linhas, o que mudou?

Muita coisa. Hoje tenho milhares de alunos que estudam a sério e tiram até mais proveito das minhas aulas do que eu teria esperado. Tudo melhorou muito, mas muito mesmo.

A maior e mais importante parte da sua obra permanece em estado bruto: em gravações de vídeo e em transcrições, por exemplo. Várias obras esperadas por seus alunos, como O Olho do Sol e A Mente Revolucionária, ao que parece não terão mais uma forma unitária, restando dispersas em registros de diferente natureza (apostilas, transcrições de aulas, palestras, artigos etc.). O que de concreto em termos de publicação, no entanto, seus leitores podem esperar para breve, seja em inéditos, seja em reedições, como se fez recentemente com Aristóteles em Nova Perspectiva?

Estou preparando para publicação o curso Sociologia da Filosofia e o Rodrigo Gurgel está dando retoques em Raízes da Modernidade, que sairá com outro título porque descobri que o Pe. Lima Vaz publicou um livro com esse título faz muitos anos. Esses dois sairão no ano que vem, sem falta. E Visões de Descartes tem lançamento marcado para 22 de novembro. Mas a massa de papéis arquivados à espera de correção é uma monstruosidade. Mesmo que eu chegue à mais extrema velhice não creio que conseguirei preparar todo esse material para edição. Legarei o abacaxi às boas almas que o desejem.

O senhor já afirmou algumas vezes que a multiplicidade de focos de atenção e intervenção da sua obra lhe impossibilita de dar a ela uma forma bem ordenada e editorialmente de fácil apresentação. O senhor poderia falar um pouco mais sobre que relação há entre sua postura intelectual e os modos de registro da mesma?

Na filosofia é tradicional o contraste entre as mentes sistemáticas, que vão construindo uma obra ordenadamente, como Kant ou Husserl, e as mentes reativas, que precisam de algum estímulo momentâneo para registrar suas idéias por escrito, como Leibniz ou Pascal. Guardadas as devidas proporções, pertenço decididamente ao segundo tipo. Às vezes fico meditando um assunto por anos a fio, sem escrever uma palavra. Mas basta que alguém diga uma bobagem a respeito, e instantaneamente começo a preencher páginas e páginas. A questão do Império sempre andava na minha cabeça, mas foi só a conferência desastrada do José Américo Mota Pessanha que me fez escrever O Jardim das Aflições. O problema, hoje, é que os estímulos são em número excessivo, ultrapassam a minha capacidade de reagir por escrito. Então registro minhas idéias oralmente, nas aulas.

No Brasil, nenhum filósofo conseguiu até hoje criar discípulos na acepção eminente da palavra: intelectuais de alto nível que prossigam com pesquisas que, de algum modo, são respostas à orientação que receberam dos seus mestres. Isso, que é coisa comum em outros países (inclusive em alguns da América Latina), no Brasil inexiste e é até visto com certo desprezo. O senhor, contudo, em alguma medida já criou condições para que nas próximas décadas se desenvolva um discipulado a partir de sua obra. Ao avaliar o seu pensamento e sua atuação pública, o que o senhor imagina serem as contribuições e problemas mais importantes com que no futuro seus alunos acabarão se preocupando mais?

O problema essencial é restaurar o senso da filosofia como uma disciplina integral da inteligência, superando, de um lado, a mutilação burocrático-profissional e, de outro, o empastelamento ideológico-partidário. Creio que alguns dos meus alunos já estão bem afiados para entrar nessa luta. Em segundo lugar, é preciso despertar da “longa noite” em que a cultura brasileira mergulhou nas últimas décadas. Temos de voltar a ser os contemporâneos de Manuel Bandeira, de Gilberto Freyre, de Otto Maria Carpeaux, de Mário Ferreira dos Santos, de Álvaro Lins e de tantos outros. Temos de fazer a ponte entre as gerações e produzir obras que não desmereçam o legado desses nossos ancestrais. Com isso o campo de batalha já se estende para muito além da área da filosofia em sentido estrito. Em terceiro lugar, é preciso escrever a história cultural e psicológica das últimas décadas, que os profissionais universitários abandonaram ou falsificaram quase que por completo. Em quarto, é preciso abrir um rombo no mercado editorial e inundá-lo com livros fundamentais do século XX que permanecem desgraçadamente ignorados no nosso meio. Neste ponto, muita coisa já se fez nos últimos anos, partindo de sugestões que dei nos meus livros e artigos, mas ainda há muito por fazer. Em quinto, é preciso atualizar o público brasileiro com a nova situação político-militar do mundo, que a nossa mídia ensina a ignorar. Esse é o programa.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pra não dizer que eu realmente não falei das flores


Hoje tive uma conversa pra lá de constrangedora na sala dos professores com alguns de meus colegas mais “engajados”. Basicamente há dois tipos de conversas entre meus colegas de trabalho: falar mal de aluno e reclamar da educação.
A conversa teve início depois de eu soltar um disparate: “a última coisa do ensino de filosofia é sua função social; e, vou mais longe, a educação também não deveria ter isso como preocupação”. Mal terminei a frase e todos os olhares dispersos despencaram sobre a minha heresia e Paulo Freire deu duas cambalhotas no túmulo. 
“Ora, como assim”, disse uma colega professora de sociologia em tom irado, “não há função social na educação? Você está louco!”. Não, não estava louco e é exatamente isso o que eu disse: o processo de decadência da educação no Brasil começou, precisamente, quando toda sua finalidade foi reduzida à noção de “educação como função social”.
Foi difícil explicar, confesso. Talvez a vaidade e a recusa em abandonar velhas ideias caquéticas e estúpidas tornam o ser humano mais opaco do que já é naturalmente. Mas eu me esforcei:
Tanto a filosofia em particular quanto a educação em geral não deveriam — já que essencialmente não têm mesmo — ter como finalidade a banal preocupação de estar “voltada para o social”. Por que banal? Ora, porque não há necessidade de ter como meta a “função social”, uma vez que o ser humano é, essencialmente, um ser social.
A educação deve “cultivar” a alma humana para a vida em sociedade e, portanto, eve estar fechada para “as coisas do mundo”. Se já não é mais o espaço de reflexão e se abre totalmente para “a vida”, então torna-se suscetível a todos os males e a todos os problemas do mundo: drogas, violências e discursos ideológicos são os primeiros bárbaros a romperem os limites que separam civilização da barbárie. Drogas e violência entram por parte do aluno, discurso ideológico tarafe do professor.
Se até um espirro tem função social, quem dirá a formação escolar! Então, não há sentido em submeter toda formação de alguém ao social. Outro colega, mais aliviado, manda: “Ah, então você concorda que a Educação tem função social! Ufa…”.
Na verdade, o que se mascara por trás dessa ideia de “função social da educação” é uma das mais corrosivas e perniciosas concepções de ensino: sua politização ideológica manifestada na noção de escola aberta para vida (formar cidadãos conscientes com senso crítico etc etc)! A crença — ou ingenuidade? — da maioria dos meus colegas deriva da noção de que nós professor devemos fazer, em última instância, a molecada se “engajar politicamente”. "Social", neste contexto ideológico, significa não outra coisa senão o “engajamento contra o neoliberalismo e o moralismo do Ocidente”.
“Devemos plantar a sementinha revolucionária”, como disse, no ápice da cafonice, uma colega – pasmem! – professora de Química. “Os meninos de hoje”, continua, “são alienados, e precisamos urgentemente fazer alguma coisa!” Como se a pronúncia de tal frase garantisse imediatamente a isenção de um discurso igualmente alienado e profundamente estúpido. Pelo contrário: é justamente quem diz “eles são os alienados” o primeiro suspeito de ser um completo alienado.
E outra. Se hoje os jovens são tão alienados, então são alienados e intoxicados precisamente pelo excesso de politização aos quais foram submetidos durante décadas. Jovens que, ao invés de terem aulas de verdade, foram submetidos a uma verdadeira lavagem cerebral (o tratamento de Alexander DeLarge, em Laranja Mecânica, é fichinha perto do tratamento que muitos dos nossos alunos têm sido submetidos).
Jovem não tem ter “senso crítico”, jovem precisa estudar. Simples! Durante décadas massacramos nossos alunos com a conversa fiada de que “vocês precisam mudar o mundo”, “salvar o planeta”, “precisamos fazer alguma coisa contra o sistema”, “lutar contra o neoliberalismo”, “entender o sofrimento das baleias” etc.
Tivéssemos concentrado todos nossos esforços em mostrar a beleza da inutilidade da educação e ensinado a formularem as perguntas mais genuínas e significativas (aquelas que surgem de maneira heurística no espírito humano, ou seja, livres de “funções” e “utilidades” — sobretudo políticas), não estaríamos discutindo a função social da massa de analfabetos formados todos os anos pelo ensino de nobre função social. Esse "socialismo engajado" da educação não teve outra função a não ser a de socializar a ignorância.
Alguns anos atrás fui demitido de uma escola de Ensino Fundamental, no início da minha carreira, logo depois de me apresentarem uma pesquisa interna feita com os alunos no final do ano a fim de avaliar o desempenho dos professores. Na época eu lecionava uma disciplina chamada “Atualidades”. A dona da escola alegou que os alunos (de 5º série!) tinham “senso crítico” suficiente para saber o que era “bom” pra eles. Segundo o “ipope”, eles não gostavam da minha aula por que eu exigia muita leitura e a aula, por ser de “atualidades”, tinha de ser mais “debate”.
É tão ridículo assim pensar que não cabe ao professor de Matemática ensinar "ativismo político", mas ensinar — não é pedir demais isso — Matemática? Que não é demais ao professor de Química ensinar simplesmente Química? Ao de Biologia, Biologia? Ao de História, História! E ao de Filosofia, Filosofia? Confesso que fiquei feliz com a minha demissão das aulas de "Atualidades"; na minha opinião, tal disciplina não tinha qualquer finalidade (talvez, no máximo, uma espécie de tentativa de substituir a conversa franca que os pais deveriam ter com os filhos na mesa do jantar!). 
"O verdadeiro fundador" do declínio da educação foi o primeiro professor descolado que, tendo cercado seus alunos em uma sala de aula, "lembrou-se de dizer isto é minha pequena assembleia política particular" e encontrou pessoas suficientemente "cheias de senso críticos e analfabetas" para acreditá-lo. Não tenho mais dúvidas de que o responsável pelo fim da educação foi o professor que, cheio de si e crente piedoso de sua concepção política de mundo, exaustivamente doutrinou todos aqueles que estavam interessados não em mudar o mundo, mas simplesmente em compreendê-lo.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Teste da Folha pra descobrir sua "ideologia". Não acho que direita e esquerda tenham, jamais, feito sentido como divisões do espectro ideológico (continua sendo uma boa distinção de outra coisa); mas hoje em dia ficou totalmente inviável. Vamos ao teste.

Das dez perguntas, só consigo responder (isto é, sentir que alguma alternativa realmente é melhor) quatro. Quando o tema é armas ou sindicato, estou à direita. Drogas e migração, esquerda. O resto vou na alternativa que menos me ofende, mas em geral nenhuma das duas é boa. Resultado final: centro-esquerda.

Isso mostra como o liberalismo ou libertarianismo (escolha o que preferir) não é de direita, embora uma parte dos libertários tenha vindo da "cultura da direita". Tampouco é de esquerda, embora outra parte tenha vindo da esquerda. É realmente uma outra maneira de ver os problemas sociais e políticos que não é parasitária de nenhuma das "ideologias" correntes, e aliás as supera.

Em sua versão mais magra, o libertarianismo é apenas uma proposta de diminuição radical ou eliminação do Estado; em geral informada pelo entendimento do processo de mercado e das severas limitações de informação e de incentivos que acompanham toda tentativa estatal de solucionar problemas sociais. E isso é compatível com filosofias e visões de mundo radicalmente diferentes, até opostas, entre si. Numa versão mais gorda, o libertarianismo inclui uma filosofia (sentido amplo) e um código de valores de apreço pela responsabilidade individual, pela aspiração humana à grandeza e pela construção da felicidade neste mundo. Isso se distingue do coletivismo altruísta associado à esquerda e do conservadorismo auto-sacrificial associado à direita.

Pense bem: qual a ligação intelectual entre ser contra a imigração e achar que acreditar em Deus faz a pessoa ser melhor? Alguma ligação possível sem dúvida existe O que há, e isso existe sem dúvida, é uma correlação demográfica, sociológica, dessas opiniões. Sabendo que uma pessoa é contra a homossexualidade, infiro - com uma boa dose de certeza - que ela defende a posse de armas.

São grupos que se desgostam; e é por isso que existem. Sua razão de existir é justamente vencer o adversário; ou melhor, vê-lo perder. Isso não é produto da mídia, da sociedade burguesa ou da mentalidade revolucionária; é dinâmica da natureza humana. Organizar-se em grupos, torná-los parte da identidade pessoal, e se opor aos grupos rivais.

O real ódio da direita brasileira não é o PT, mas os petistas. E vice-versa. Coxinhas e petralhas; direita e esquerda é isso e apenas isso; as questões intelectuais decorrem dessa briga. Os grupos de mídia sabem disso, e incentivam esse tipo de oposição porque ela acirra os ânimos e aumenta o ibope. Mas do ponto de vista político e da transformação social de que precisamos a "guerra cultural" é estéril.

Em certo sentido, essa guerra representa um ganho. Antes tínhamos uma hegemonia cultural; a complacência preguiçosa num monólogo unânime. A tal "ascensão conservadora" aos menos chacoalha as coisas; aponta para a possibilidade de mudanças; mas não é, ela própria, positiva. Ela reforça uma dinâmica cultural que vive de conflitos e de alimentar inimizades, sem falar em toda a histeria, falta de educação e de senso de ridículo que tem virado sua marca registrada. A esquerda tem o mérito de ser a opção dominante, default, e por isso apresenta-se de forma bem mais respeitável. Se voltamos no tempo, para quando a esquerda estava a crescer e galgar sua posição partindo de uma minoria, encontramos a mesma tosquice (real) da atual direita.

O libertarianismo, como qualquer grupo, também acaba entrando nesse jogo, seja tentando tornar-se parte da direita ou da esquerda para provocar o outro lado, ou criando uma cultura interna própria para quem sabe um dia virar um player relevante no cenário. Isso é inevitável, mas dá para evitar que essa busca por uma identidade distinta vire sua razão de ser. E a estratégia de todo mundo que discordar do que diz um liberal será a de jogá-lo no grupo cultural contrário, não tanto para mudar a forma como ele é visto, mas para mudar a forma como ele se vê.

Direita e esquerda são tão reais como Corinthians e Palmeiras, e cumprem o mesmo propósito; uma continuação da tribo adolescente. Para promover as mudanças que cremos serem importantes para a vida humana, são inócuas. A não ser, talvez, que se queira uma revolução armada.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

A Outra História de João e Paulo

[O conto a seguir foi inspirado e baseado em "João e Paulo", de Diego Quinteiro.]

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João nasceu. Na maternidade pública, do ventre de sua mãe para as mãos do displicente médico. Foi uma alegria para ela, talvez o primeiro alento desde que chegara do interior da Bahia; e trazia também alguma preocupação. O marido, inicialmente tão amoroso, tinha começado a beber e abandonara o lar antes do nascimento. Mesmo assim, o bebê era a coisa mais fofa das tias e dos tios, que também tinham migrado para São Paulo alguns anos antes. Foi levado pra casa, para seu berço de compensado no mesmo quarto da mãe.

No mesmo dia, em uma dessas coincidências que só Deus explica, nascia Paulinho. Do belo hospital, o melhor que o seguro cobria, saía Paulo Ferreira, que nasceu para brilhar. Será artista, intelectual, talvez estadista; os pais planejaram tudo. Chegou em casa, um quarto azul, um lindo berço de madeira, motivos do folclore brasileiro, as tias apertando as bochechas – que fofo! Isso nunca muda.

Crescia o Joãozinho em sua casa de reboco, tijolos aparentes, na encosta do morro. Jogava futebol na rua, empinava pipa. A mãe voltava para casa tarde. Era trabalhadora, honesta, empregada doméstica. O chão emocional estável do pequeno. Um dia, tendo que acompanhar a mãe na casa da patroa, o menino perguntou:

- Mãe, por que nossa casa não é bonita como essa?

- Porque a gente é pobre, meu filho. E os Ferreira são ricos. Gente estudada. Não é casa pra gente pobre. Estuda, meu filho, prum dia você comprar a sua! – disse a mãe. – E comprar de volta o sítio da sua vó pra mãe ficar velha em paz.

Joãozinho não achou justo. Nem injusto. Pensou apenas que a vida era assim; que a mãe merecia seu descanso, e que caberia a ele tornar aquilo realidade.

 – Só não esquece nunca – completou a mãe – que com você junto da mãe eu não preciso de casa nenhuma.

Paulo Ferreira, o Paulinho, era um bom aluno. Tinha quadra, piscina, capoeira aos sábados e aulinhas de e inglês e mandarim. Era educado, sabia separar o lixo, comia verduras no almoço – espinafre pra ficar fortinho. Tinha um Wii e chamava os amiguinhos pra jogar Mario (papai e mamãe não conseguiram determinar tudo; o peão e as bolas de gude ficaram esquecidos na estante) e comer pão de sete grãos com requeijão da fazenda. Como era gostoso! Bom tempo esse de ser criança! Às vezes João, o filho da empregada, vinha passar o dia. Não sabia como se comportar com esse menino estranho, mas ao menos tinha sua vitória garantida no videogame. Certa vez, seu pai, que chegava às seis, trouxe um boneco para ele brincar.

- Pô, pai, eu queria outro!

- Papai volta amanhã na loja de brinquedos e traz outro, tá bom? – suplicou o pai. Não eram milionários, mas ele não queria jogar no colo do filho tão novo essa história de dinheiro, trabalho e todas as preocupações que aquele sistema impunha. A infância não devia ser mercantilizada.

Paulinho achou justo: ninguém é melhor que o papai! É só eu querer, e ele faz acontecer. E de fato, ele fazia.

A mãe do João lavava, passava, limpava, passeava os cãezinhos. Fazia comida, pegava às sete e saia às oito, do centro da cidade, pra tomar o trem. Uma noite, chegou em casa e deu beijo no Joãozinho, que perguntou:

- Mãe, porque você cuida da casa dos outros, e não vem ninguém cuidar da nossa?

- Filho, meu anjo, com o dinheiro que eu ganho mal dá pra cuidar da nossa casa. Empregada não é coisa pra gente simples como a gente. Estuda, meu filho, prum dia você chegar lá! - respondeu a mãe.

Apesar do sofrimento, ela não se arrependia. A vida ali era melhor do que no chão rachado da caatinga de onde saíra, onde os sete irmãos passavam muita fome durante a estiagem, só com farinha pra comer; e calango. Lá não tinha nada; só mato e seca. O filho não teria chance nenhuma. Agora tinham luz, TV, roupa, comida, móveis, escola; e o sentido de oportunidade. Ainda assim, ansiava em voltar à paz da roça da qual seu coração nunca saíra. Ali, com menos dor, seria o paraíso.

João não achou justo. E nem injusto. Era como as coisas eram; e reconheceu o quanto sua mãe se sacrificava para, naquelas condições, dar-lhe o melhor que podia. Quantas indignidades ouvia calada, até curvada, aceitando tudo de todos e sem guardar rancor, só para o bem do menino. Algo muito forte a movia por dentro, e nada que viesse de fora iria pará-la. Ninguém é melhor que a mamãe! E, de fato, ninguém era.

Às cinco era hora do lanchinho, hora de subir do parquinho, hora do Paulinho parar de brincar. Bisnaguinha integral, leite achocolato belga, gelatto de jabuticaba e suquinho de buriti. Mordidas após mordida, vendo desenho na TV Cultura antes do Jornal. Depois, foi fazer lição de matemática, aritmética básica do ensino fundamental.

- Mamãe, vem me ajudar?

- Filhote, agora não posso. Pede outra hora tá? – e sentou no sofá pra ver seriado. O pai, ao computador, também não podia.

Paulinho achou injusto: ninguém tinha o direito de lhe deixar sozinho. E se os pais não iriam ensinar, então ele também não ia querer aprender.

João e Paulo, nascidos no mesmo dia, na mesma cidade, viviam em mundos completamente diferentes. Quando a Nalva, mãe de João, mudou de emprego, Paulo logo esqueceu o nome e o rosto daquele visitante ocasional.

João tinha só uma certeza na vida: a de que o mundo não girava ao seu redor e não ligava para ele. Aprendeu desde cedo que moleque de pé no chão não tem o que os outros meninos têm; mas queria ter, e sabia que não ia ser fácil.  Que o trabalho é duro, a vida é dura, as vacas magras, as águas turvas. Mas o mundo tinha também seus dias de sol, de futebol, de música, de sucesso, que faziam o resto valer a pena.

Sabia que estudar era a saída, mesmo quando na escola não tinha professor pra ensinar. Tentou ler em casa, era difícil se concentrar. Mesmo com todas as dificuldades, algo permanecia. Em meio a professores ausentes ou que haviam desistido perante a apatia daqueles jovens, um se destacava: o Gilberto, que dava geografia e filosofia. João não se interessava tanto assim pelas teorias do professor – um papo de mais-valia, de exclusão social, de necessidade de revolução –, mas o Gilberto era a única pessoa ali que genuinamente ligava para ele. Dentre todos os funcionários batendo ponto (ou nem isso), era o único que estava ali, demonstrando interesse pelo jovem pobre na frente na classe, ajudando-o em suas dificuldades, emprestando-lhe livros – alguns de ficção ele gostou bastante – e, mais do que isso, sendo um amigo mais velho para conversar sobre tudo fora do horário da aula: dificuldades da vida, problemas da sociedade, mulheres, filosofia, sonhos. Sempre pagava uma cerveja para tomar junto de seu amigo e pupilo de colegial – que a mãe e o MEC não ficassem sabendo! –, o único, dentre tantos jovens já desinteressados, que demonstrava o desejo de saber mais.

Ao mesmo tempo, começava a trabalhar. Tantas aulas inúteis, tanto tempo que poderia ser melhor utilizado. Miqueias, dono de um boteco perto de sua casa precisava de um faz-tudo: descarregar mercadorias, às vezes servir clientes, atender telefone. Um vizinho, que dava aulas de reforço para alunos da escola pública, contava com a ajuda de João para corrigir exercícios. Ele levava jeito para aritmética. Colava propagandas nos postes. Cortava mato. Em pouco tempo passou a ajudar o Miqueias com o orçamento do bar e da lojinha que ele tinha algumas ruas abaixo. O que não sabia, procurava aprender; ia pra lan house consultar a internet, ou pedia algum livro pro Gilberto. Tudo em total desacordo com as leis de trabalho “infantil” e com as normas da CLT sobre remuneração; felizmente, não havia fiscal para impedi-lo. João estava sempre pronto a ajudar quem precisasse e estivesse disposto a pagar.

Paulinho tinha só uma certeza na vida, a de que o mundo era injusto. Aprendeu desde cedo que para ter tudo o que sempre quis bastava querer; afinal, todo ser humano, pelo mero fato de existir, merece ter tudo aquilo de que precisa. Mas nem todos tinham. E isso porque os privilegiados se apropriavam do trabalho dos pobres para garantir suas mesas fartas e sua água límpida. Bem sabia que seus pais tinham parte nesse culpa, e adorava condenar suas hipocrisias.

Sabia que estudar era o caminho, e na sua escola – colégio da mais pura estirpe construtivista – ele aprendia a ter um olhar crítico sobre a sociedade. Para passar no vestibular, um bom cursinho, nada crítico, bastou. Universidade pública é concorrida, mas se não passasse, ele sabia, podia ir pra particular. Só não sabia bem o que estudar. Queria ser um indivíduo determinado, igual a tantos que vira em filmes; gente que sabe o que quer e vai atrás. Além do desgosto para com o mundo, não sabia o que fazer da vida. Como sempre ouvira falar que era criativo, e como detestava matemática, física e tudo que demandasse concentração mais intensa, flutuou naturalmente para as Ciências Sociais. Não era má escolha. Com o tempo conseguiria um pós-doutorado, seria reconhecido, viajaria pra França; seu pai ia se orgulhar; e todos o respeitariam.

O tempo foi passando, e João foi se tornando uma pessoa mais confiante, alguém que se sentia eficaz no mundo. Ainda na adolescência, contudo, sentiu na pele a hostilidade de um mundo que elegia a força bruta como critério máximo. Tendo juntado algum dinheiro, João comprou para si um par de óculos escuros; nada demais, nada de marca, mas ficaram bons nele. Era a primeira compra que ele fazia com seu próprio dinheiro e cuja finalidade era apenas ele próprio; não uma necessidade, mas um desejo supérfluo. Voltava para casa orgulhoso, sentindo ingenuamente que o mundo era, afinal de contas, um bom lugar para se viver. Mas sua atitude já andava incomodando alguns de seus colegas, e os óculos foram a gota que faltava para transbordar o copo da inveja. Os mesmos olhos sem vida que o cercavam na escola o cercaram ali no caminho; João já sabia qual era a deles. Apanhou muito naquele dia, bateu e chutou também. Conseguiu fugir dali com a cara inchada, um sorriso sangrento na boca e os óculos bem seguros na mão.

Só que o triunfo durou pouco. Já perto de casa, reparou no policial de pé na calçada, observando como quem não quer nada, a espreita de alguma oportunidade. Vestiu os óculos para esconder as marcas da briga. Saber quando não chamar a atenção era uma estratégia de sobrevivência, mas nesse dia não funcionou.

- Opa, espera aí, moleque! Vem cá, vem cá. Que que houve com a sua cara?

- Tentaram me roubar. Eu fugi.

- E esse óculos bonitão aí? Você não me engana; de onde é que você tirou dinheiro pra comprar?”

João era esperto o bastante para saber que isso não terminaria bem. Fez o que sabia fazer: desafiou, olhando nos olhos do policial.

- Trabalhei e juntei. Vai querer roubar também? - Mas este obstáculo estava além de suas possibilidades. O desafio foi a justificativa que o policial precisava.

- Tá me chamando de ladrão, seu filho da puta? Fala isso de novo que eu te fodo; eu sei onde você mora, tá entendendo? Roubar o caralho! Roubar essa bosta de óculos falsificado! - E num tom mais calmo - Você vai é me dar esse óculos de presente. - Não era um pedido.

Não foi tirado à força, e sim com um movimento voluntário do próprio braço, que João cedeu os óculos.

- Pode ir, moleque. Tá liberado. Por hoje!

João chegou em casa tremendo de ódio. Ódio contra o rato que lhe havia vencido, e ódio contra si mesmo por ter se curvado perante o que há de mais vil na humanidade. Para quê ser honesto, se os urubus levam a melhor? Para quê construir e planejar se a força cega tem a palavra final?

Sua mãe o acolheu, passando delicadamente um pano molhado no rosto machucado, e reparou a mudança na atitude do filho. Colocou-lhe diante de si e falou com ele, sem um pingo da doçura que ele tinha aprendido a esperar dela:

- Eu te amo, meu filho. Você sabe disso. Mas eu te juro, eu juro, que se alguma vez na vida você roubar, você não pisa nessa casa nunca mais. Eu prefiro te ver morto, meu filho, do que bandido.

João não acreditava em Deus; nunca lhe parecera importante. Mas ali, no olhar da mãe, muito mais terrível que o de qualquer gangster ou policial, ele experimentava uma dose de uma força sagrada. Uma força que por séculos e séculos, por gerações incontáveis de um povo sem registro, mantivera alguma ordem em meio a uma miséria tão abjeta que podia transformar homens em lobos: o temor de Deus. Trair aquele olhar seria, de fato, pior do que a morte.

João entendia a injustiça do que lhe acontecera. Compreendia agora, também, que seu caminho não poderia ser aquele. É meu direito buscar e alcançar as coisas que quero para mim; e não serão ratos comedores de beirada que vão me desviar.

O tempo foi passando, e Paulo Ferreira se tornou um jovem estudioso e indignado. Na faculdade, teve uma namorada, mas houve pouca paixão naqueles cinco anos. Fazia seu curso à noite, tinha as tardes livres e tocava violão. Não lia tanto quanto dava a entender. Seus dias nem lhe traziam grande satisfação, e nem contribuíam para construir o futuro brilhante que ele cria ser direito seu. Os pais, querendo seu melhor, recomendaram: por que não procura um estágio, para ter seu próprio dinheiro e comprar suas próprias coisas?

Paulo achou injusto: que sociedade é essa que condiciona o acesso a bens e serviços ao sucesso mercadológico? É direito de todos ter as coisas que os outros têm!

Ao invés de estágio remunerado, inscreveu-se numa ONG. Dava aulas de conscientização social em favelas. Seu pai o apoiou; mas – engraçado – embora soubesse que a escolha do filho era mais nobre que um estágio comum – algo que não se pautava pelo lógica egoísta do mercado – não sentiu o orgulho que achou que sentiria. Ainda assim, no discurso público, a escolha do filho era ideal; não cansava de elogiá-lo em meio a amigos intelectuais. Sem falar que, se a coisa fosse pra frente, se o marketing fosse bem feito, galgar posição em alguma Secretaria seria um passo simples. Segurança, liberdade e serviço social; quem poderia querer algo melhor?

A ONG ia bem; conseguiu patrocínio de um grande banco. Jovens ali se reuniam para aprender sobre seus direitos, sobre como a sociedade injusta tirara o que deveria ser deles. Paulo os incitava a questionar aquele sistema. O tráfico e o crime eram respostas naturais à violência institucionalizada do capital e de seu aparato repressor, a polícia. Não, dizia Paulo, não entrem pelo caminho da violência; ele repete o padrão, não é transformador da sociedade. “Mas pode transformar a minha vida”, rebateu Jefferson, um jovem conturbado que tinha encontrado ali um lugar para conversar e se sentir acolhido. “Por que eu preciso colocar a comunidade antes de mim?” Paulo não soube responder.

A ONG não era longe de onde João morava, e o Gilberto convenceu-o a ir um dia, ouvir uma palestra, junto com um grupo da escola. Mais tarde, contou ao professor seu desconforto: “É legal, tudo muito bonito. Mas eles ficam falando de mudar a sociedade e nunca vão fazer nada. Eu não entendo nada de lei e de governo, só sei que nunca me ajudaram. Estou pensando na minha vida e ajudando os outros com o meu trabalho. Por que eles não fazem o mesmo? Cadê aula de alguma coisa que serve pra alguma coisa de verdade?” O professor ainda insistia na importância de pensar nos problemas maiores, nas causas que faziam a sociedade ser daquele jeito, mas também não tinha como negar que João estava trilhando seu caminho e, se continuasse assim, melhor para ele. Bem sabia que os quase quinze anos dando aula não tinham gerado lá muita transformação. Sentia-se bem ao ver que o pupilo e amigo subia na vida. Sentia que, para ao menos um, seu trabalho não fora em vão.

E João subia a todo vapor. No dia seguinte, foi falar com Miqueias. João tinha ideias para expandir o bar, abrir um novo em outra vizinhança; conhecia bem o negócio e havia provado seu valor. Suas iniciativas anteriores, como colocar música na frente do bar, tinham dado retorno; já conhecia melhor as contas do estabelecimento que o próprio dono, e com toda a confiança que recebera, tinha provado também sua honestidade. Seria tolo não lhe dar essa chance. A única coisa que João demandava era que, de agora em diante, fossem sócios. Miqueias topou. E esse nem foi o maior golpe de sorte da semana.

Com a bolsa da pós, Paulo comprou um iPhone e uma capinha protetora do Che Guevara. Sua dissertação, apesar de atrasada, era elogiada pelo orientador. Um amigo que entrara num grande jornal já lhe garantira um artigo para a coluna de opinião. Estava pavimentando uma lenta estrada rumo a uma carreira intelectual de sucesso, a uma vida plena, fruto de sua genialidade fácil. Algum dia num futuro indeterminado, a livre docência e uma coluna semanal fixa! Voltou para casa cansado de tanto devanear, leu um pouco e foi dormir, contente, tendo depositado sua tese de doutorado. Dali algumas semanas, por causa de uma matéria sobre a ONG que saíra no jornal, se encontraria com o Secretário de Desenvolvimento Social para debater a exclusão na periferia.

Tudo seguia bem, até que uma sexta-feira amanheceu cinza…

Paulo acordou. Tomou seu Sucrilhos sozinho, sentado na rede da sala, olhando o Facebook no laptop.

João acordou. Mordeu um pedaço de pão duro, nem ligou a TV. Colocou sua apresentação na mochila, e foi para sua moto comprada a prestações suadas. Usada, mas bela, que ele gostava de coisas bonitas. (Nesses dias ele já tinha, por força de necessidade, chegado a um entendimento com gente da favela que tinha como garantir que ele não seria alvo da inveja alheia.) Deu a partida e partiu na longa jornada rumo ao centro, com fogo ardendo em seu coração. O fogo que o impelia a ir sempre além.

Na semana anterior, um pequeno milagre ocorrera na comunidade: a visita de um grupo de investidores procurando negócios locais “com impacto social” (o que era isso?). Era gente com grana querendo colocá-la ali. João foi hábil em conversar com os visitantes e marcar a reunião – um boteco com música e dança não era, a princípio, o tipo de negócio que eles tinham em mente. Tinha que ser no escritório deles, longe dali; condição de que não abriam mão. Talvez fosse um teste; e, como em tantos outros, João passaria.

Parou a moto num cruzamento. No mesmo pelo qual passava Jefferson; enfurecido, magoado, queimando por dentro com um fogo bem diferente, justificado pelas ideias que aprendera nas últimas semanas. Aproximou-se da moto com uma arma em mãos:

- Desce da moto, playboy! Vamos, passa o celular! Vai, mano, rápido!

- Calma, pode levar! Não me machuca! – disse João, assustado. Era sua velha inimiga, a força bruta e burra, cobrando mais uma taxa.

Jefferson subiu na moto, portando seu celular. Ele vivia para esses momentos em que ficava por cima. Duravam pouco, e ele logo caía mais fundo. Mal sabia que seria seu último momento de glória. A adrenalina anestesiou todo seu corpo. Viu que um policial se aproximava; quis metralhar aquele porco por todos os tapas e humilhações sofridas desde pequeno; mas o policial foi mais rápido e lhe deu dois tiros. Um pegou na barriga e outro no ombro. Jefferson caiu no chão, predado, abatido, ensanguentado.

O policial se aproximou com arma apontada, chutando o revólver da mão de Jefferson:

- Acabou, maluco! Acabou! – gritou o policial, enquanto tirava o celular roubado de seu bolso.

João observou a cena sem reação, estupefato. Fixou o olhar sobre o pobre coitado se contorcendo em agonia mortal. Intuiu que, se tivesse dado passos um pouquinho diferentes em sua vida, poderia ter sido ele estirado no chão. O que o desviara daquele caminho possível? Não sabia. Sentiu alguma pena: quem sabe o tipo de merda diária que o meliante deve ter tido que aturar a vida inteira, todo santo dia, para que seu espírito se rendesse à sede de destruir? Teve poucas chances na vida, e as que teve jogou fora. Era culpado, mas era também vítima de um sistema que, por algum motivo que João não compreendia, destruía oportunidades e lutava contra quem tentasse melhorar honestamente.

Uma alquimia insondável de sorte e escolha havia trazido João aonde se encontrava agora. Não cabia falar em mérito ou demérito, apenas em causa e consequência. Ele tinha sua moto e seu celular, e Jefferson não tinha nada e babava sangue no chão, e isso não era apenas fruto do acaso, e tinha sido construído ao longo de muitas decisões.

Nisso, transeuntes começavam a se aproximar do corpo. Em seus últimos momentos, Jefferson  desejou que todos os que se ajuntavam à sua volta fossem tragados para o mesmo ralo que agora o levava. O comentário popular não era mais caridoso.

- Esse aí vai roubar moto no inferno agora!

- Ladrão!

- Bem feito!

- Vagabundo.

As falas despertaram João de suas elucubrações. Sentiu pena também daqueles cidadãos. Deviam ter alguma privação muito profunda que procurava alguma desculpa para se extravasar. Prometeu a si mesmo que essa doença também não o subjugaria.

Olhou para o policial que acabara de despachar o ladrão. Tinha sofrido tanto nas mãos da polícia, humilhado por causa de sua cor e de sua condição. Naquele momento, porém, sentia gratidão pelo homem que o salvara. Pela primeira vez na vida, enxergou o que aquela farda antes tão odiada deveria representar. Era uma tragédia que a força se fizesse valer; mas, dessa vez, prevaleceu a força submetida à ordem, e não ao caos.

Aquela tragédia não impediria seu caminho. Não tinha tempo a perder. O policial foi compreensivo – que ele comparecesse na delegacia mais tarde – e João acelerou sua moto rumo ao compromisso que mudaria sua vida. Alguns raios de sol já atravessavam as nuvens. Apesar de tudo, havia alguma justiça no mundo.

Longe dali, vendo o caso no Facebook, Paulo achou tudo injusto. Jefferson não era culpado. Era a vítima. Vítima de uma sociedade construída sobre a exploração dos pobres pelos ricos, e vítima da violência gratuita de uma polícia opressora. Quem era aquele tal “empresário” que guiava a moto? Como ousava sair por aí ostentando um bem que outros não podiam ter? Jefferson estava apenas pegando o que era seu por direito da única forma que lhe foi ensinada. Incrível como, mesmo entre os explorados, a cultura capitalista – a máxima do levar vantagem em tudo – conseguia dar origem a novos exploradores imbuídos da mentalidade do sistema. Num mundo ideal, homens como João não existiriam.

Já tinha o tema para seu artigo de jornal. E começava, finalmente, a desvendar seu propósito na vida: cortar pela raiz a pretensão individualista, socialmente engendrada, de ascender para além dos demais, humilhando assim quem não podia chegar tão alto. A reunião com o secretário seria esta tarde, e ele pensava em como traduzir esse ideal em políticas reais que minimizassem a violência que a existência dos maiores representa para os menores. Que ele pudesse ser o autor de uma sociedade mais conforme sua visão de mundo lhe enchia de esperança, e ali estava um mecanismo bastante eficaz para esse fim. Aos poucos, as coisas iam acontecendo em sua vida, e Paulo começava a receber a consideração que – sempre soube – era sua por direito. Talvez o mundo não fosse, afinal, tão injusto assim...
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