domingo, 23 de fevereiro de 2014

Nariz empinado também é filho de Deus



Esnobismo é o sentimento de quem tem um bem restrito a poucos, que o vê sendo invadido por uma classe recém-chegada que o desvirtua e que tenta recolocar o invasor em seu lugar inferior. É patrimônio coletivo da espécie humana. Nobres esnobavam burgueses; judeus, góis; dinheiro antigo, novos ricos; pessoal true, posers; acadêmicos, divulgadores; populares, nerds; e nerds – que recentemente virou motivo de orgulho – esnobam os nerd wannabes.

Há segmentos culturais inteiros dedicados à exclusão: o hipsterismo, por exemplo. Se todo mundo conhecer a banda, a banda não é mais tão legal assim; conhecer e gostar do que é de poucos é parte essencial do que os define. Isso pode não ser lá muito admirável, mas é humano; o homem é um ser hierárquico, quer se sobressair e ser admirado. E para isso é preciso manter os outros em seu lugar.

Não são só os ricos que o fazem. Há o esnobismo da falta de dinheiro (ou da aparência da falta de dinheiro), que esnoba os agentes da gentrificação. O barzinho é descolado até chegarem os playboys. Essa versão indireta, esse esnobismo de segunda ordem, gosta de se pintar como superior, mas é igual a sua versão mais vulgar praticada por socialites e mauricinhos. Talvez seja pior. Uma coisa é o vício ali por inteiro, aberto, direto ao ponto; até inocente. Outra é o vício retorcido, disfarçado, indireto, que tenta dissimular sua real natureza. Quanto mais refinada a mente (e por que negar que meio intelectuais meio de esquerda sejam mais inteligentes que dondocas? Nosso igualitarismo chega a isso?), maior a perversidade de que ela é capaz.

Nossos sentimentos e até nosso corpo incorporam certo esnobismo, certa rejeição pelo que é mais popular. O salgado gorduroso num boteco de favela junto ao córrego não é digno de nossa boca, embora os favelados o adorem; idem para o copo d’água suspeito nas ruas de Nova Deli. Ainda que o cérebro igualitário prevaleça, o intestino não será tão democrático.

A esnobada pode ser ofensiva, quando o alvo é um invasor isolado que não sabe se adequar às normas implícitas da comunidade exclusiva; ou pode ser defensiva, quando toda uma nova classe invade a comunidade, mudando sua configuração. No primeiro caso, o motivo do gracejo é realmente evidenciar a inferioridade do sujeito em algum aspecto: “Pfff, veste camiseta da banda mas só conhece os hits”. No segundo, a esnobada pode nem derivar do desejo de excluir o invasor, e reflete apenas a tristeza perante o desvirtuamento da comunidade ou do item de consumo, agora vulgarizados. Ou vai dizer que você ama o fato de os cinemas e TV a cabo só passarem filme dublado? Pra não falar do que virou o teatro... É o preço da inclusão social e econômica. Podemos gostar dela mas lamentar alguns de seus efeitos, não? Aliás, já repararam que nenhum requeijão presta mais?

Quando a professora Rosa Marina Meyer viu um proletário esculachado no aeroporto, seus instintos esnobes apitaram e fez uma piadinha nas redes sociais. Aquela monstra asquerosa. Seu esnobismo foi do tipo mais inocente, mais puro. O passeio aeroviário, outrora marcado pela finesse e sofisticação, está a metamorfosear-se em ambiente popularesco, com filas quilométricas, barulho, cheiros mil, carne, gordura, pele e pelos à vista; daqui a pouco vão estender varal e trazer marmita. São coisas que a mim não ofendem, mas que a sensibilidade de uma senhora de classe média alta não tolera bem; e quem poderá condená-la se ela ainda por cima leva tudo com bom humor?

No final das contas o esculachado era mais rico que ela, o que indica que o problema era antes com seus modos que com sua renda. Um pobre arrumadinho não causaria o desgosto desse rico esculhambado. Mal sabia ela, contudo, que esse pecadilho, esse ato comum e partilhado por toda a humanidade de variadas formas, é o novo pecado contra o Espírito Santo; nem Deus pode perdoá-lo. Ao saber do comentário, o twitter da Dilma Bolada, essa linda, convocou o linchamento imediato e a gente conscientizada das redes sociais não deixou por menos. A comoção foi tanta, tantas declarações públicas de amor aos pobres, tantas vestes rasgadas, tanto repúdio àquela vagabunda sub-humana, que ela foi demitida. Amém! Que isso nos sirva de lição. Sabe o tipo de reserva e policiamento mental constantes que um político pratica em época de eleição, quando uma palavra mal pensada pode desagradar as parcelas mais medíocres e moralistas do eleitorado? Então, isso agora virou o mínimo exigido de todo mundo o tempo todo.

O comentário da pérfida professora não seria lido pela vítima – aliás, poucos fora de seu círculo o teriam visto, não fosse o linchamento virtual –, a vítima nem era pobre, e mesmo se fosse não teria sofrido nenhuma inconveniência. Da mesma forma, a desigualdade de renda do Brasil, a inclusão dos negros e o progresso da classe C continuam rigorosamente inalterados. O crime da professora foi um crime, nem digo de pensamento, mas de sentimento. Ela sentiu errado. Já a boa ação da Dilma Bolada e as boas intenções (sempre!) dos internautas resultaram num dano real: o fim de uma carreira. Seria o bem mais destrutivo que o mal?

(Não dá, obviamente, para eximir a administração da PUC. Há três cenários possíveis: se ela já queria demitir a professora e usou esse circo irrelevante como pretexto, foi desonesto, mas não fugiu do que as organizações sempre fazem. Se foi um ato servil de medo da opinião pública, é vergonhoso, mas ainda humano. Agora, se ela realmente considera que o esnobismo da professora é incompatível com o padrão ético da universidade, então... que Deus se apiede dessa católica instituição. Não sei o que é pior: que a proliferação dos códigos de ética e da consciência social seja apenas um golpe de marketing ou que as organizações os estejam levando a sério.)

O esnobismo está proscrito, não combina com o alto nível moral de nossos tempos. Mas o vício oposto a ele vai muito bem obrigado. Sim, há um sentimento oposto ao esnobismo: o refastelo na degradação. O orgulho da escória que dissolve a ordem estabelecida. Hordas bárbaras que destroem os símbolos do refinamento e da civilização (muito da qual depende do ímpeto esnobe - o conceito de "bárbaro" não surgiu à toa). Cagar nos cálices de ouro. Arruinar o programa alheio.

Isso, confesso, também me dá um certo prazer, o sentimento da desforra, o triunfalismo do “vamo invadir sua praia”, de finalmente entrar no clube que te rejeitava só para destruí-lo. Esse prazer é, moralmente, pior do que o do esnobismo. Este, afinal, visa preservar; aquele quer apenas destruir, mas para os democratas do espírito ele tem algo de admirável. Viva a farofa, o funk, o rolezinho e o crack! Se só poucos podem ter tudo, que todos não tenham nada, e a primeira parte é opcional.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Tudo menos o jovem preso ao poste



As paixões políticas se alimentam de pequenos eventos que parecem enormes e produzem a indignação popular momentânea. Como a capacidade de atenção é curta, em algumas semanas já foram devidamente mastigados, deglutidos e expelidos; ninguém mais se importa. Mês que vem ninguém mais ligará para o ladrão que foi agredido, despido e preso a um poste. Mas nos dias que correm, não se fala em outra coisa; ele serve muito bem como suporte para cada um um afixar sua causa política, acirrar os ânimos contra os malvados das redes sociais, demonstrar sua superioridade moral e ainda - no caso da raça dos formadores de opinião - influenciar o debate político, puxar a sardinha para seu lado.

Digo desde já, para que não venham me acusar e rotular: o justiçamento popular é uma prática condenável, incivilizada e que contribui para a deterioração da convivência humana; não deve ser aplaudido e não é a solução para problema social algum. É modo brutal de justiça, sem proporção entre delito e pena e com taxas altas de punição a inocentes.

Vejo - ó céus - que Rachel Sheherazade tem uma visão mais positiva que a minha desse tipo de reação popular. Se não chega bem a endossá-la como substituta legítima do processo legal, ao menos não condena o que fizeram os justiceiros nesse caso. E - ó céus novamente - ao invés de escrever um tratado filosófico a respeito, ela demonstrou sua indignação com um discurso inflamado, justamente aquilo que fez dela uma estrela entre os conservadores.

Acho lamentável que esse tipo de discurso esteja ganhando força entre pessoas mais educadas (ele sempre foi o modo básico e espontâneo de ver o mundo de toda a população; o estado natural do homem é o conservadorismo). Mas assim como o crime de um jovem pobre é compreensível (mas não justificável) dadas as condições materiais e psicológicas nas quais ele vive; assim como a reação dos justiceiros é compreensível (mas não justificável) dada a indignação que se sente ao se ver um criminoso escapar impune; também a opinião conservadora de Sheherazade é compreensível dado um sistema de Justiça estatal ineficaz como o nosso e uma cultura letrada que hostiliza quem quer viver honestamente e progredir na vida ao mesmo tempo em que desculpa os delitos de quem quer que seja visto como um "excluído". E que vai além: culpa os primeiros pelos crimes dos segundos.

A infinita compaixão e sensibilidade social dos observadores de esquerda cessa abruptamente na hora de lidar com quem discorda deles. Assim como o ladrão foi justiçado por observadores indignados, Rachel Sheherazade está sendo justiçada pelos defensores da moral e dos bons costumes aplicados ao discurso. Querem-na condenada; multada ou presa, tanto faz; o importante é que sinta na pele. Não, não são movidos por mero espírito de manada e raiva mal-direcionada; a justificativa é eminentemente técnica e racional: ela fez apologia ao crime. É por isso que essas mesmas pessoas também defendem a punição exemplar a todo mundo que defende o cultivo, a distribuição e o consumo de maconha. #soquenão (vocês é que me fazem indicar a ironia assim, vulgarmente: a capacidade de detectá-la é inversamente proporcional ao desejo de ficar indignado, que anda em alta).

Se Sheherazade, ou uma versão universitária sua, tivesse feito esse discurso numa assembleia estudantil, é bem capaz que eles mesmos, movidos pelo santo e virtuoso ódio ao justiçamento, a justiçassem bem ali. Já vi coisa similar. O desejo de fazer a justiça - ou mesmo punir o diferente; suspeito que se confundam muitas vezes - na base da indignação é natural ao homem, o que não quer dizer que seja bom. Não é fruto de ideologias ou de classes sociais, e nem pode ser apagado mediante conscientização. Se ela for punida, demitida ou o que seja, a ética do justiçamento terá ganho; ainda que seja um justiçamento amparado pela lei.

O caso do jovem no poste serve também para qualquer um reafirmar sua superioridade moral, bradando contra os grandes males do mundo. Hoje em dia, quem quer ser visto como bom não tem escolha melhor do que condenar e denunciar o racismo ou o ódio de classes, mesmo na falta de evidências de que eles tenham algo a ver com o caso. 

Negros e pobres passeiam diariamente pela mesma rua sem ser alvo do ódio de justiceiros populares. Os próprios justiceiros são, na maioria das vezes, eles também pobres e de cores variadas (não é correto chamar a população brasileira pobre de negra, posto que é mestiça e que grande parte desses mestiços são caboclos e não mulatos), assim como a maioria das vítimas dos crimes cometidos por mestiços e pobres. Quem souber e quiser procurar, encontrará diversas filmagens (viva o smartphone!) de justiçamentos no Brasil - inclusive contra estupradores, o que mostra que a cultura brasileira não é tão favorável ao estupro assim. Os fatos são o que menos importa. Diga-me o teu time e eu te direi quem é aquele jovem: um demônio que teve o que merecia, ou a vítima inocente da elite racista. Se por acaso você acertar, sinto muito: até a apuração objetiva aparecer o assunto já terá morrido. 

O jovem no poste não importa tanto quanto as causas que dele podem se servir. Hoje temos duas causas se digladiando, com objetivos muito diversos. A causa que move a esquerda é bater nos direitistas. Já o ideal que move a direita é bater nos esquerdistas. Não são classes sociais ou raças antagônicas. São todos membros de uma mesma grande classe social: a classe média/alta (curiosamente, na minha experiência a esquerda é em média mais rica que a direita) com algum estudo e tempo livre para se dedicar a ideias. Formaram campos rivais e adoram se odiar. Até ontem só existia o de esquerda, que monopolizava o discurso; agora a direita vem tirando-lhe fatias do mercado, e por isso a luta. A esquerda se firmou negando e/ou sendo condescendente com todos os costumes tradicionais e instintos normais do povo; a direita vem para reafirmá-los. Em ambos os casos, a arma preferida é a indignação moral pública, o que nem de longe se confunde com a moralidade real.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Pesadelos de uma Noite Quente

Amo o calor das últimas semanas; janeiro mais quente em setenta anos. É um pouco mais difícil de dormir, mas mesmo isso não me incomoda. A escuridão do quarto/forno é um bom momento para pensar sem distrações. Sinto que o calor faz de São Paulo um lugar mais brasileiro.

Claro que qualquer coisa que o Brasil seja, será brasileira. Mas há uma ideia, uma imagem, de Brasil, que de alguma maneira existe nas mentes, e que vai se perdendo. Mas enquanto este calor imperar em São Paulo, nem tudo está perdido.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Brevíssima Introdução a Ayn Rand


















Uma fusão de Aristóteles e Nietzsche para os dias de hoje: uma visão heróica do homem, que vive apenas por si e sem culpa; somada ao primado da razão como conhecedora da realidade e guia das ações e ao respeito pelos direitos individuais. Isso resume a filosofia de Ayn Rand.

É raro gostarem dela fora do meio liberal. E de fato, não faltam motivos para a rejeição. A começar pelo descaso com que trata filósofos anteriores, lendo suas filosofias sem nenhum rigor acadêmico e julgando-os sem dó. Suas passagens mais virulentas são reservadas para "um monumento ao repositório mais feio do ódio pela vida, pela homem e pela razão: a alma de Immanuel Kant." ("Causality Versus Duty" em Philosophy: Who Needs It) Ela aceitava apenas dois precedentes filosóficos: Aristóteles, o maior filósofo de todos os tempos, e Tomás de Aquino, também muito bom (segundo ela, a parte teológica de S. Tomás fora provavelmente uma concessão dele aos tempos). Fora disso, quase só erro e maldade. Locke teve seu mérito na filosofia política, mas sua epistemologia era detestável. Nietzsche tinha um ou outro pensamento de valor, mas sua concepção básica do homem, anti-racionalista e negadora do livre arbítrio, também era muito má. (No caso de Nietzsche, é visível sua influência sobre ela, o que torna a rejeição ostensiva ainda mais problemática).

Há também a notória hostilidade à religião. A fé é a negação da razão: aceitação de uma autoridade como superior e substituta da própria mente e de suas ferramentas de conhecimento da realidade. Ainda assim, ela não era ateia militante: argumentos contra a existência de Deus ou contra religiões específicas não ocorrem quase nunca em sua obra; o que há com frequência um pouco maior é argumentos morais contra a moral religiosa do Cristianismo - única religião digna de nota para ela. E mesmo com tudo isso - talvez isso interesse a nossos leitores - havia algum respeito pela tradição intelectual católica, por ela lamentada na longa refutação que fez da encíclica Populorum Progressio do papa Paulo VI: "Há um elemento de tristeza nesse espetáculo. O Catolicismo já tinha sido a religião mais filosófica do mundo. Sua longa e ilustre história filosófica foi iluminada por um gigante: Tomás de Aquino. Ele trouxe uma visão aristotélica da razão (uma epistemologia aristotélica) de volta para a cultura europeia, abrindo o caminho para a Renascença. (...) Agora, testemunhamos o fim da linhagem de Aquino - e a Igreja se volta para seu antagonista primordial, que se encaixa melhor nela: o odiador da vida e da mente, S. Agostinho." ("Requiem for Man", em The Voice of Reason).

Há também, por parte de muitos, a percepção de que ela seria apenas uma defensora do capitalismo. E ela de fato o foi, mas essa não é a parte mais importante de sua obra e nem de sua filosofia. O capitalismo é, segundo a própria, a consequência política de sua filosofia metafísica e moral, que é o que realmente importa. Por isso mesmo ela não botava muita fé em alianças com liberais de outras correntes filosóficas e, especialmente, com os libertários de sua época. O vazio filosófico do libertarianismo, que consiste na afirmação de um princípio moral de não-agressão vindo de lugar nenhum, e que para além disso é compatível com o total relativismo ético (desde que não se viole o PNA, vale tudo), era-lhe repugnante. Para ela, a real aliança existe no campo dos valores e da filosofia, que compreende epistemologia, metafísica, ética, estética e política.

Poucos leitores conhecem sua obra de epistemologia (que é a filosofia do conhecimento: como o homem conhece o mundo e qual o grau de certeza desse conhecimento?), "Introduction to Objectivist Epistemology", em que ela visa a responder o que era para ela o problema mais importante da história da filosofia: a questão dos universais - qual o estatuto dos conceitos abstratos e como eles são produzidos. Sua solução é uma modernização do "realismo moderado" (que diz que conceitos captam dados objetivos da realidade, não são mera convenção, mas não existem fora da mente) com uma importante adição: o conceito existe num contexto informacional: distingue um certo tipo de coisa de todos os outros tipos conhecidos. Mudando o conhecimento, conceitos diferentes se fazem necessários. O conceito ou a definição não expressam uma essência completa da coisa, como se acreditou na filosofia clássica e medieval; expressa o grau de informação suficiente para distingui-la dos demais seres. Subjacente a tudo isso está a defesa aguerrida de que a mente humana é capaz de conhecer a realidade objetiva e que a razão é a única ferramenta que o homem tem a seu dispor para esse fim.

É a mensagem central da filosofia da Ayn Rand: o poder e o primado da razão. Disso se segue a ética e a psicologia que a subjaz, que são o assunto preferencial de sua obra. Afirmar o primado da razão significa afirmar o primado da mente individual e, portanto, o egoísmo. E aqui nos deparamos com o grande mal-entendido daqueles que não a leram: considerar que a moral do egoísmo, e a consequente rejeição do altruísmo, significaria ver como boa a pessoa que pensa apenas em si mesma e como má aquela que ajuda os outros.

Altruísmo não é benevolência. O homem bom é benevolente para com aqueles que ele ama e de maneira geral com todos os homens; mas isso não decorre de um dever primordial de ajudar e muito menos de se sacrificar pelo próximo. O valor do indivíduo - o bem de sua existência - não depende dele abrir mão de seus valores para servir a quem quer que seja. Sua mente não está à venda, seja por dinheiro ou pelos desejos e exigências alheios. Atos que geralmente chamaríamos de altruístas, como morrer para salvar um grande amor, podem ser racionais, e nesse sentido plenamente egoístas: refletem a avaliação racional do agente que aceita a própria morte porque sua vida não faria sentido sem o outro. Isso é o exato oposto de uma pessoa que efetivamente abre mão de sua vida, escolha por escolha, por crer que não tem o direito - ou que estaria sendo má - se agisse para buscar seus próprios objetivos.

Para quem olha de fora, esse papo de egoísmo parece ser a defesa do capricho individual como fundamento da ética; mais ou menos como faz o utilitarismo ou outras teorias subjetivistas, ou mesmo o egoísmo ético apregoado por certos liberais. Se o indivíduo gosta de se drogar até morrer, então isso é o bem para ele. Pois a ética da Ayn Rand é passível justamente da crítica oposta: o moralismo exagerado. Mesmo os gostos pessoais requerem critérios objetivos para se justificar; a vitória do capricho sobre a razão é um pecado grave em qualquer área. Isso tornava-a excessivamente negativa para com tudo que fugia a seu gosto pessoal. Não fazia distinção entre o racional e o razoável, aquilo que faz sentido, está bem fundamentado, mas admite dissensão e alternativas igualmente válidas; no círculo randiano, seu gosto era erigido em norma absoluta da razão. Por outro lado, foi essa mesma ênfase na primazia absoluta da razão que produziu ensaios magníficos como sua exposição dos benefícios da filatelia (colecionar selos postais) e a demolição retórica e moral do festival de Woodstock (ensaio "Apollo and Dyonisus" em Return of the Primitive). Não é preciso concordar com eles para aprender e mesmo se deleitar.

O homem racional é aquele que tem sua razão como seu critério absoluto de suas crenças e como guia para sua própria conduta; que não busca viver de segunda mão, às custas dos outros, nem no plano do intelecto (aceitando alguma autoridade como superior a sua própria mente) e nem no da vida prática (procurando, ao invés de produzir, viver do produto alheio), e nem no do sentimento (dependendo da aprovação ou da atenção alheia para suprir a autoestima que lhe falta). Ele é o verdadeiro egoísta: aquele que reconhece as demandas que a realidade impõe para a vida humana e coloca-se à altura do desafio, coisa que lhe traz uma satisfação muito maior do que aqueles que, por medo, entregam suas mentes e suas vidas ao cuidado alheio.

Rand defende, acima de tudo, uma visão heroica do ser humano, preocupado em viver a vida da melhor forma possível - da forma mais feliz possível - neste mundo, e capaz de alcançar os fins ambiciosos que vê como dignos de se concretizar. Corpo e alma constituem um todo único; nada no homem é puramente mecânico ou animal, e nada é a-sensual ou puramente abstrato.

Vale a pena apontar também como ela encara o amor romântico e a atração sexual, ambos muito importantes na sua obra filosófica e na ficção. Talvez pecando um pouco por intelectualismo, ela via na atração sexual um reflexo dos valores e do "senso de vida" do indivíduo. O senso de vida (sense of life) é maneira básica do indivíduo pensar e lidar com o mundo; constitui-se dos juízos metafísicos e morais que não chegaram à formulação explícita, filosófica, mas que mesmo assim impactam na conduta, até mais do que teses intelectuais. Otimismo, pessimismo; convicção na eficácia da própria vontade ou insegurança crônica; ver o mundo como um universo de possibilidades ou de ameaças; todas essas disposições existem nos homens, e não são só filósofos os influenciados por posições filosóficas. A conduta humana projeta valores, e são esses que estão em jogo na atração. Talvez por ser mulher, não deu muita importância à beleza como atrator; o homem racional e seguro de si, independente e superior aos demais, atrai as mulheres mais racionais e também superiores. A beleza física só entra por meio da mentirinha fácil que a ficção adora contar: a de que ela é companheira natural da virtude.

O sexo é o ato de celebração desses valores encarnados que se encontram. Homens e mulheres, embora genericamente iguais, têm uma relação de subordinação sexual: o homem busca ser exaltado por uma mulher, enquanto esta busca alguém a idolatrar (outra curiosidade: é por essa subordinação sexual que Ayn Rand era contra a ideia de uma presidenta mulher - "About a Woman President" em The Voice of Reason). Os conceitos da teologia reaparecem, não para fazer referência a uma realidade além deste mundo, mas ressignificados às experiências básicas que devem lhes ter dado origem.

A ordem social que se depreende dessa ética de exaltação do homem é o capitalismo: a liberdade para cada um se desenvolver da melhor maneira possível e o entendimento de que os desejos racionais humanos são harmônicos entre si. A esfera das interações sub-humanas, aquelas que se dão pela força bruta ou pelo engodo, deve ser reduzida o máximo possível. Ninguém tem, de largada, direito ao que outros produziram; embora as massas se beneficiem imensamente das criações e empreendimentos dos gênios da ciência e da indústria. Aceitar um sistema no qual a erradicação da pobreza não seja o foco principal é também promover uma sociedade com menos pobreza.

Por fim, ela também escreveu muito sobre estética (livro The Romantic Manifesto), a começar pela justificativa da arte. A cognição humana é conceitual: vai além da percepção sensorial, integrando várias delas por meio da abstração, o que resulta em conceitos que se aplicam a diversos casos particulares. O homem precisa ver concretizações dos conceitos que utiliza. A arte efetua essa concretização, visando não avaliar o mérito de diferentes conceitos e juízos (para isso basta o ensaio filosófico), mas sim apresentá-los de forma viva à experiência. Na arte, o artista dá forma concreta a um senso de vida. Isso permite a Ayn Rand integrar o juízo moral ao campo da estética (os três livros de ficção mais imorais da história da humanidade: D. Quixote, Madame Bovary e Anna Karenina) sem, contudo, poluir o juízo estético com critérios morais. Mesmo abominando sua visão de mundo, ela reconhecia em Tolstói um dos maiores escritores da história; foi capaz de dar vida como ninguém a certos juízos metafísicos e morais que eram, contudo, tenebrosos. Dada sua visão heroica do homem, é natural que sua predileção seja pelo Romantismo, pelos artistas que retratam o homem como ele poderia e deveria ser, e não necessariamente como ele é (a música, embora não retrate nada, também traduz valores ao plano sensorial).

Rand tinha uma personalidade muito forte, que se impunha facilmente sobre mentes mais fracas. Sua capacidade persuasiva aliada à intransigência para com discordâncias fez com que uma verdadeira seita se formasse ao redor dela; um fato lamentável mas que não detrai do valor de sua obra. Um a um, todos os pupilos mais inteligentes foram se afastando (ou sendo banidos e proscritos do grupo), de modo que só restaram os mais medíocres, inseguros, dependentes e servis; justamente o tipo humano que ela via como o produto de milênios de uma ética equivocada e má. Hoje em dia, esse grupo original se encontra decadente - vive dos direitos autorais -, mas a obra dela continua com o mesmo vigor original e a suscitar leituras e desenvolvimentos de diversos pensadores. Mais do que formar novos adeptos ortodoxos do objetivismo (nome que ela mesma deu à sua filosofia), ela está aí para nos fazer pensar e, mais do que isso, recuperar no plano dos ideais uma ética e uma visão do homem que transcenda o derrotismo niilista e não requeira a crença num além-mundo.

Deixei seus romances de fora propositalmente. Merecem um tratamento à parte.
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