quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Por que não sou (mais) conservador

por Horácio Neiva

Por muito tempo hesitei em escrever este texto. E a verdade é que ainda estou hesitante. Quero crer que o motivo da hesitação é minha tendência natural a evitar confrontos diretos, sejam reais ou virtuais, e restringir todo e qualquer tipo de discussão àqueles círculos onde elas menos causam danos (e, em verdade, menos surtem efeitos) — os círculos de amigos. Essa tendência, junto a uma certa autoimagem que nutro de mim mesmo segundo a qual o mundo não precisa perder tempo com minhas opiniões, foram contrapesos fortes o suficientes para impedir que meus pensamentos tomassem a forma de textos, o que por certo preservou a humanidade dos delírios de uma cabecinha juvenil. Thank to them.

Mas algo mudou. Continuo evitando confrontos, e continuo não tendo uma autoimagem muito pomposa de mim mesmo. Então, Horácio, de que se trata essa mudança? Digo-lhes agora: eu não sou um conservador. Ou pelo menos, não sou mais. O que vai a seguir é a história (resumida, não se preocupem) de minha segunda conversão.

Antes de continuar, no entanto, devo tranquilizar meus amigos, acostumados que são à minhas opiniões supostamente conservadoras nas nossas conversas em privado. Não mudei minhas opiniões, ou pelo menos não as mudei em geral. Apenas não me identifico mais com nenhum grupo — conservador ou progressista — porque, afinal, ninguém deveria fazê-lo.

Não sou um conservador. Mas não se preocupem: não sou um progressista, nem um comunista, nem um anarquista. Não me joguem pedras, por favor. A grande descoberta que fiz, o motivo real de minha segunda conversão, foi essa: ninguém deve ser conservador, progressista ou o que quer que seja. Uma agenda ou um credo político não são, até onde sei, critérios de veracidade para nossas crenças e opiniões.

Não sou contrário ao aborto por ser um conservador. Não sou contrário aos excessos de intervenção estatal por ser um liberal. E o fato de não achar que quem vota no PT é um monstro moral não me torna um esquerdista inveterado. Simples, não?

Nem tanto. Dificilmente alguém negaria que devemos testar nossas opiniões no tribunal da razão (e, para os que creem, da fé); dificilmente alguém sustentaria que defende tal ou qual opinião porque ela é adequada às crenças de um determinado grupo. Ninguém diz que é contra o casamento gay porque "essa é a opinião conservadora a respeito do casamento gay". Isso é óbvio. Não estaria eu dando a obviedades ares de descoberta científica? Sim e não.

Sim porque, de fato, é uma obviedade que devemos ter opiniões que julgamos verdadeiras, não opiniões que julgamos conservadoras. E não porque essa obviedade parece ter sido esquecida no que podemos chamar (sem muita precisão, é verdade) de conservadorismo brasileiro.

E isso me leva a um segundo ponto. Como já ficou claro, é do conservadorismo que quero tratar. Deixemos progressistas, comunistas e tudo mais para outra oportunidade. Pois bem: eu não sei mais o que é conservadorismo. Nunca soube, na verdade. Portanto, não posso ser algo que não sei o que é. Como cheguei a essa conclusão? É o que vai a seguir.

Como todo bom conservador de vinte anos de idade, eu não nasci conservador. Passei a maior parte da minha juventude alheio aos grandes problemas da civilização ocidental. Passar no vestibular era para mim uma preocupação mais importante do que conter o avanço comunista global. Também não tinha grandes tormentos espirituais. Não estava em busca de uma resposta para o sentido da vida e, salvo um curto período de ateísmo bocó, sempre fui católico.

Parênteses: é interessante como alguns jovens conservadores gostam de romantizar a própria biografia. Um certo espírito de rebeldia juvenil que todos temos em algum momento de nossas vidas torna-se um "negro passado esquerdista"; o desconforto com missas demoradas torna-se um "negro passado ateísta"; um livro de Nietzche e alguns CDs de Heavy Metal tornam-se um "negro passado niilista". Antes que me acusem de estar falando de terceiros, confesso desde logo que por muito tempo fui um desses "jovens conservadores" que romantizam a própria biografia. Mas isso não é importante. Fecha parênteses.

Para abreviar as coisas, passei no vestibular (valeu a pena abster-me de combater o comunismo), ingressei na faculdade e, finalmente, tinha tempo para dedicar-me ao que era realmente importante — filmes e internet. A coisa poderia ter seguido assim por uns bons cinco anos, afinal, não é muito difícil formar-se em Direito. Mas houve uma pedra no caminho. E a pedra foi um professor de Filosofia. Esse professor de alguma forma me despertou o interesse pela Filosofia, e antes que os conservadores dirijam-lhe o pior xingamento da lista de xingamentos do conservadorismo brasileiro ("Professor universitário!"), apresso-me em dizer que ele era (e é) um excelente professor.

Eu poderia agora dizer que meu professor desencadeou em mim o desejo latente pela Verdade, que tocou o interior da minha alma ou que se operou uma mudança no meu espírito, mas estaria romanceando meu passado. Não houve esse tipo lirismo. Comecei a ler livros de filosofia, interessei-me pelo assunto e prossegui estudando.

Lia livros de forma desordenada e, na verdade, não estava ciente de nenhuma debacle cultural. Um amigo me introduziu a algumas leituras conservadoras, gostei do que li, e daí para o conservadorismo inveterado foi um pulo. Por que estou dizendo isso? Porque eu, como aliás muita gente, não chegou ao conservadorismo por uma percepção profunda do mal estar moderno, dos males do progressismo, pela decadência cultural que nos assola a vida e o espírito. Cheguei ao conservadorismo de forma natural, prosaica até. Li alguns textos, depois alguns livros, aquilo me parecia bem escrito e bem argumentado, então concordei.

Tornei-me um conservador. Ou pelo menos, era o que eu dizia. Passei a criticar os males modernos que nunca vi, passei a propalar a decadência da civilização que nunca percebi, e a defender um retorno à tradição que eu jamais conheci. Adotei uma opinião conservadora, depois outra, e mais outra. Ao final, adotei o conservadorismo puro e simples. Se o conservadorismo estava certo a respeito de x, se estava certo a respeito de y, deveria estar certo a respeito de tudo. Eu não queria ter opiniões corretas. Queria ter opiniões conservadoras.

No início, ainda havia um pouco de sanidade. Nunca havia parado para considerar os argumentos contra ou a favor do aborto. Ao tornar-me um conservador, resolvi pensar a respeito (para os que não sabem, é uma obrigação conservadora). Acredito que tornei-me contrário ao aborto por considerar essa a posição correta, mas, olhando para trás, já não sei se o fiz por considerar essa a posição conservadora. Em matéria econômica, passei a defender o estado mínimo, é claro. Mas confesso agora que tudo que li na época foram textos de "autores liberais". Não fui convencido, porque não precisei ser convencido. Só conhecia um dos lados da questão e não era difícil posicionar-me. E assim prossegui, percorrendo o glorioso caminho conservador: lendo apenas autores conservadores, considerando apenas as opiniões conservadoras, e criticando qualquer autor não conservador (o fato de eu não tê-los lido era irrelevante).

Em poucos meses eu não era só um conservador. Era um cruzado, detido apenas por aquela tendência que apontei anteriormente. Meu verbo favorito era "pontificar". Não bastava eu mesmo ter-me tornado um conservador. Aqueles que não eram (porque simplesmente não estavam preocupados com isso), estavam no erro, na mentira, eram almas pervertidas que deveriam ser convertidas. Não bastava o Bispo de Roma ser infalível. Eu mesmo deveria ser infalível. Afinal, não era disso que se tratava o conservadorismo?

Essa foi minha primeira conversão. O que me tornei após ela? Acreditava que havia me tornado mais inteligente, mais instruído, talvez até um spoudaios, como eu mesmo gostava de dizer. Nada mais longe da verdade. Se me tornei algo, foi um dogmático fundamentalista. Ou, para ser mais direto, um chato de galocha.

Havia, obviamente, algo de errado com o conservadorismo, ou pelo menos com o meu conservadorismo: ele tornara-se uma visão de mundo. Uma vez tendo adotado-a, raciocinava apenas dentro das categorias conservadoras, se é que raciocinava. Quando me pediam uma opinião sobre um assunto que ainda não havia considerado, ia para casa e pesquisava nas minhas fontes conservadoras. Não discutia o mérito do problema — não era preciso.

Meu conservadorismo era marcado por alguns traços distintivos: ele era anticientífico e antiacadêmico. Anticientífico não porque rejeitasse uma espécie de "ideologia cientificista" (se é que há algo do tipo) ou o que se tem chamado de "naturalismo", mas porque rejeitava os resultados obtidos pela ciência (resultados concretos, vale lembrar) quando eles fossem de encontro a alguma posição conservadora; antiacadêmico porque tudo que viesse de alguma universidade, nacional ou estrangeira, simplesmente estava errado. Todos os acadêmicos profissionais do mundo estavam iludidos, na mentira, sem a exata noção do atual estado de coisas. Não passava pela minha cabeça que muitos deles já haviam lido tudo que eu tinha lido. Se o tivessem feito, pensava eu, teriam tornado-se conservadores (e provavelmente abandonado a academia).

Mas o traço principal, o traço mais importante do meu conservadorismo, é que passei a propagar, sem muita reflexão, o "elogio da tradição". O teste da verdade era agora o teste do tempo. Mas será que isso era realmente verdade? Não importava. Essa era uma questão proibida para um conservador. A tradição, tal qual a trindade, tornara-se um dogma de fé. O problema? Eu não sabia realmente a que tradição estava me referindo. É claro que, como era um conservador, dizia ser a "tradição judaico-cristã ocidental", que jurara proteger com todas as minhas forças, e com toda a minha alma. Instituições como a escravidão e a tortura, igualmente aprovadas no rigoroso teste do tempo, não entravam na conta. A razão? Algum autor conservador provavelmente as excluiu.

O leitor deve estar agora pensando que estou sendo muito rígido comigo mesmo, provavelmente exagerando alguns traços da biografia, e atacando um espantalho que chamei de conservadorismo. Quanto às duas primeiras preocupações, devo tranquilizar o leitor. Não estou sendo rígido, nem exagerado (ok, talvez um pouco). Isso não importa. O que importa realmente é a última preocupação: esta caricatura de conservadorismo não é o verdadeiro conservadorismo. Estou dizendo que era um conservador, mas na verdade era um idiota. Um genuíno conservador é coisa bastante diferente.

Concedo, sem constrangimento, todas essas colocações. Mas quero também levantar uma questão: o que, afinal, é o conservadorismo? Este não é o espaço para discorrer sobre esse tema. Meu ponto com essa pergunta é outro: os nossos jovens conservadores não sabem o que é conservadorismo. Pior: não fazem questão de saber.

"O fato de você não saber o que é não significa que os outros conservadores não o saibam", pode retorquir o leitor. Bem, isso é verdade. Talvez eu esteja generalizando demais, tomando o meu próprio caso como se representasse todos os casos. Posso estar enganado, o que admito (afinal, não sou um conservador). Escrevi essas linhas excessivamente autobiográficas para mostrar o meu caso. Será que o leitor pode achar outros casos parecidos? Talvez um amigo, um conhecido — talvez você mesmo, quem sabe?

O que ouço em conversas e, principalmente, vejo nas redes sociais, parece indicar que casos como o meu não são raros, nem mesmo exceções. Quem já discutiu com um conservador de vinte anos sabe do que estou falando. Mas não serei injusto: há conservadores diferentes, mais inteligentes do que eu sou (e fui). O leitor pode procurá-los (mas aviso que o esforço será grande). Eles é que são a exceção. Ou, pelo menos, tornaram-se a exceção. A regra é o mesmo tipo de conservador que eu já fui, e se esses conservadores dão alguma ideia do que é, realmente, o conservadorismo, devo dizer que ele não passa de birra juvenil.

Como deixei de ser um conservador, está na hora de perguntar? Quais as circunstâncias da minha segunda conversão? Sinto desapontá-los mais uma vez: deixei de ser um conservador da mesma maneira que me tornei um — de forma prosaica e natural. Se houve algo de diferente, um clímax se quiserem, foi um estalo, que não recordo quando ocorreu: e se eu estiver completamente errado? Se tudo que estive defendendo não passar de erros grosseiros, mentiras, ilusões? Essa dúvida foi suficiente para afastar-me do conservadorismo — conservadores não têm dúvidas.

Desde que me tornei um ex-conservador, confesso que senti-me aliviado. Pude finalmente ler livros sem precisar saber de antemão se os autores eram ou não "de direita". Pude considerar os argumentos a favor de diversas opiniões, sem precisar aceitá-los ou rejeitá-los pelo seu pedigree. Formar uma opinião tornou-se mais difícil, é verdade; mas a vida tornou-se mais leve.

Espero que meus amigos conservadores (os bons conservadores) não se sintam ofendidos com esse texto. Não estou criticando o conservadorismo enquanto tal. Estou criticando um certo tipo particular de conservador, aquele conservador que eu mesmo fui e que vejo muitas pessoas ainda sendo. Gostaria de que os bons conservadores provassem que estou errado, que eu era uma exceção, afinal. Temo, no entanto, que isso não irá ocorrer. Caso ocorra — bem, isso ainda valerá como um relato autobiográfico.

No final das contas, talvez nossas posições políticas sejam como a felicidade: só podemos dizer de alguém que foi realmente um conservador no momento de sua morte. Até lá, sempre é possível discordar, rever nossas opiniões, reconsiderar nossas crenças, pensar fora da cartilha. Se, no fim, acontecer de termos opiniões conservadoras, será uma coincidência — e nada mais.

Por que deveríamos ser conservadores (ou progressistas, ou o que quer que seja)? Por que não ser, simplesmente, amantes da verdade?

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Desagravo ao IPCO

No meu artigo passado ("Briga no Circo"), usei um fato recente, uma manifestação do Instituto Plínio Correia de Oliveira e a reação de jovens de esquerda, como ilustração de algo que me parece onipresente nos embates ideológicos de nossa cultura: o desejo de provocar no lado adversário (e todo movimento tem seus adversários, ciosamente cultivados) uma reação violenta, que justifica automaticamente a causa do lado agredido. As manifestações públicas praticamente todas visam a criar animosidade, e tornar verdadeira a ditadura adversária (teocrática ou gayzista) que o os partidários da causa juram que existem. Claro que ninguém quer, conscientemente e de forma plena, apanhar. A coisa é contraditória mesmo: quer-se, ao mesmo tempo, sair ileso de uma grande aventura, e sofrer uma agressão tão gritante que consagre a santidade de sua causa aos olhos de todo o universo. Bem sei que os simpatizantes da causa conservadora têm feito bom uso das agressões e xingamentos sofridos pelo IPCO; nada melhor do que isso para tentar convencer a opinião pública dos horrores da "ditadura gayzista".

Claro que nenhum movimento é só isso. É perfeitamente coerente que o IPCO quisesse, também, distribuir panfletos (aliás, sabendo que seus panfletos e a própria forma com que se expressa - "Cruzada pela Família", "Buzine pelo Casamento Tradicional" - visam exatamente a criar uma reação em todos os que têm radar anticonservador) e que, ao mesmo tempo, estivessem fardados e portando tambores e gaitas de foles.

Vejo, contudo, que cometi uma injustiça flagrante no artigo. Pois se por um lado é fato que o IPCO queria, e vive para, enfrentar inimigos, criando-os quando necessário - correndo assim o risco de reduzir o Cristianismo a uma facção de uma briga política e cultural -, também é um fato que, em suas manifestações, ele nunca deixa de se pautar por duas normas de conduta: a legalidade e a civilidade. É possível agir perfeitamente dentro da lei e não ser nada civil ou civilizado. É bem capaz que o jovem sem camisa que ficou berrando, xingando e rebolando na frente dos membros do IPCO não tenha quebrado lei nenhuma; mas agiu como um animal. Os demais manifestantes do lado dele não fizeram muito diferente.

Posso não simpatizar em nada com as posições ou, na verdade, com a maneira com que ele expressa suas posições, mas reconheço que sua forma de atuação, ainda que provocativa, é civilizada, e a de seus adversários não foi. Por isso mesmo acho que não só eu mas qualquer pessoa sente uma certa compaixão pelos manifestantes do IPCO ao fim do vídeo, que foram tratados de forma baixa pelos jovens animalescos e fora de controle que se uniram para enfrentá-los. Isso sem falar da agressão, essa sim certamente ilegal, de um desses jovens que jogou uma pedra e feriu o membro do IPCO. Espero que esse criminoso seja levado à Justiça. Ele e seus comparsas deram mostras de ser justamente aquilo contra o que o IPCO professa lutar: uma malta degenerada, verdadeira escória moral e intelectual de nossa sociedade, evidência viva daquele lugar-comum conservador: a decadência da civilização.

Meu objetivo, na verdade, não era falar do IPCO, mas usá-los como uma ilustração de um fenômeno cultural. Por isso mesmo que, depois de citá-los nos parágrafos iniciais, passei a outros exemplos e não mais voltei a eles. A ilustração era deliberadamente provocativa da minha parte, pois bem sei que quem nos lê tende a admirar mais o IPCO do que seus oponentes; grande parte da revolta contra o texto se deveu a essa parcialidade sectária dos leitores. Ao mesmo tempo, reconheço que acabei carregando demais na mão contra eles e, o que é pior, fui injusto ao não chamar atenção para essa desigualdade gritante nas formas de atuação: o IPCO agiu dentro da legalidade, e além disso foi civilizado e pacífico. Seus adversários, não.

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Ver o Circo pegar Fogo

Francisco Razzo

Quando o circo está prestes a pegar fogo, a última pessoa recomendada pra ajudar na tarefa de conter as primeiras chamas é o frentista do posto de gasolina. Botar fogo na Briga do Circo, enquanto se assiste de camarote, é tão niilista quanto a sádica brincadeira em que os garotos amarram o gato e o cachorro pelo rabo só pra ver o pau comer. Em certas situações, como dizia meu falecido avô, se você não vai ajudar, então não atrapalhe. Acredito que a principal tarefa de qualquer ensaio que se pretenda “filosófico”, parafraseando as orientações de William James a respeito do sentido da atividade filosófica, seja a de persistir no “resíduo de problemas não resolvidos”.
Como nós sabemos o que uma pessoa de fato deseja? Ora, visto que ninguém tem acesso direto e imediato ao desejo do outro, então o acesso ao desejo alheio é, necessariamente, mediado por formas de comunicação e comunhão simbólica. Quando pessoas comungam do mesmo desejo é porque partilham da mesma experiência da ausência de algo em comum expresso numa considerável variedade de símbolos. Querer é, em última instância, sempre querer algo. E o que une as pessoas em comunidade, de certa forma, é a capacidade, mediada pela comunicação, de reconhecer no outro a mesma carência, o empenho comum na busca de realizar o sentido da própria existência.
O que o IPCO (Instituto Plinio Corrêa de Oliveira) quer e o que os Ativistas da Causa Gay de Curitiba querem? Certamente, alguma coisa contrária ao desejo um do outro; e, precisamente por esta condição de interesses contraditórios, jamais formarão uma comunidade, no sentido aristotélico do termo, isto é, não no sentido puramente descritivo, mas no de valoração, isto é, o intercâmbio mediado pelo senso de irrestrito de justiça (haplos dikaion) (Cf. ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco VIII). Portanto, se o IPCO conseguir alcançar o seu objeto de desejo, isso significa que o grupo de Ativistas da Causa Gay de Curitiba não conseguiu alcançar o seu, e se o grupo de Ativistas da Causa Gay de Curitiba conseguir, consequentemente, significa que o IPCO não conseguiu. Nessa relação não há nada de luta de classes, mas o mais puro conflito pessoal de valores consubstancializados na forma e ação de um determinado grupo, seja ele piegas aos olhos alheios ou não.
A partir desta perspectiva, pode-se compreender melhor em que medida cada um dos membros desses grupos representam, de uma forma ou outra, o embate dos valores políticos que transitam no tecido da atual sociedade pluralista, na qual, como avaliou Alasdair MacIntyre, a “grande diversidade de julgamentos sobre tipos particulares de assuntos” subjaz em “um conjunto de concepções conflitantes de justiça, concepções supreendentemente em desacordo umas com as outras, de vários modos”, sendo que um dos fatores “mais surpreendentes nas ordens políticas modernas é que elas não possuem foros institucionalizados nos quais as discordâncias fundamentais possam ser sistematicamente exploradas e mapeadas, e muito menos fazem qualquer tentativa de resolvê-las”; pelo contrário, pois “o próprio fato da discordância frequentemente não é reconhecido, sendo escamoteado por uma retórica do consenso”, o que só “serve”, em última análise, “para impedir que o debate se estenda aos princípios fundamentais que informam as crenças de fundo”. (MACINTYRE, 2008, Justiça de Quem? Qual Racionalidade, p. 12-13).
O IPCO é um grupo de cristãos; contudo, evidentemente, não fala em nome de todos os cristãos. Cada um dos seus membros representa, por ser cristão, alguns valores gerais ou “crenças de fundo” comuns a todos os que que professam o credo cristão, certamente, deveriam partilhar. Por outro lado, os Ativistas da Causa Gay de Curitiba é um grupo procedente do cenário da Militância pelos Direitos dos Homossexuais, entretanto também não falam em nome de todos aqueles que militam pela causa Gay, apesar de partilhar de alguns valores gerais ou “crenças de fundo”, os quais todo membro da Militância Gay deve ou deveria professar. Dessas “crenças de fundo” emergem “os princípios fundamentais” que dão base para as efetivas concepções conflitantes de “família”, “pessoa”, “sociedade”, “justiça” etc. Esse é o núcleo do problema, e o resto - se eles cantam, marcham, fazem a dança da chuva, pintam a cara, sambam, são feios, bregas etc - é apenas uma acidental questão de gosto.
A questão nuclear reside no fato de que toda atividade política se caracteriza essencialmente pelas pessoas que se autocompreendem partícipes de um universo de valores e almejam que esse universo se realize na experiência de uma vida significativa. Quanto mais conscientes a respeito da natureza desses valores, menos fundamentalistas e dogmáticas os agentes políticos serão. O que não significa que, do grau de consciência de reconhecimento desses valores, serão mais ou menos violentos ou que dissimularão serem as vítimas a fim de conseguir o que desejam. Uma coisa é o fim, outra coisa, completamente diferente, é o meio. Fundamentalismo e dogmatismo, neste caso, revelam o grau de estupidez diante da compreensão dessas “crenças de fundo”, enquanto que a violência (ou o vitimismo) revela o grau em que a estupidez se encarna na história por meio da atividade política. Ser ou não violento é só uma complexa opção estratégica (assim como também pode ser estratégico idealizar que, por ser a vítima, e em razão disso, é legítimo partir pra pedradas, insultos etc), isto é, o modo pelo qual a estupidez toma forma e entra mundo. Não obstante, um movimento político pode ser consciente ou inconscientemente violento por meio da imposição de um perverso processo de aniquilamento do estatuto de humanidade no outro. Um processo perverso de “purificação e destruição”, como demonstra Jacques Sémelin em seu livro (Purificar e Destruir – Usos políticos dos massacres e dos genocídios) que trata, precisamente, da lógica desse processo:
Os agentes que sabem utilizar essa ferramenta do imaginário têm, em todo caso, uma arma poderosa que lhes permite pensar em conquista do poder. O primeiro ponto dessa retórica imaginária consiste em transformar a angústia coletiva, que mais ou menos se propagou na população, em um sentimento de medo intenso, com relação a um inimigo, do qual eles vão expor toda periculosidade. De fato, a angústia e o medo não tem a mesma natureza. A característica da angústia é a de ser difusa ou mesmo inapreensível, enquanto o as causas do medo são mais denomináveis e, assim, identificáveis. O que se tenta é, de certa forma, ‘coagular’ essa angústia sobre um ‘inimigo’, ao qual se dá uma ‘figura’ concreta e do qual se denuncia a malignidade, no interior mesmo da sociedade. Os discursos mais extremados apresentam essas figuras do inimigo como necessariamente assustadoras ou mesmo diabólicas. [...] Essa tentativa de canalização da angústia sobre um inimigo bem identificável já é uma maneira de responder ao traumatismo da população: explica-se de onde vem a ameaça. A partir dessa ‘transmutação’ da angústia embrionária em medo concentrado por intermédio de uma ‘figura’ hostil desenvolve-se o ódio contra esse ‘outro’ pernicioso. O ódio não é, neste caso, o ingrediente de base, que definiria previamente as relações ‘naturais’ entre os grupos. É, antes, uma paixão construída, produzida, ao mesmo tempo, por uma ação voluntária dos seus partidários extremosos e por circunstâncias favorecendo sua propagação. No final, a saída lógica e temível dessa dinâmica – da angústia e do medo – recai, inevitavelmente, no surgimento, em uma determinada sociedade, do desejo de destruir o que lhe foi designado como causa do medo. É evidente que se trata ainda de um ‘desejo’: permanecemos no registro do imaginário. Mas é um imaginário de morte. (SÉMELIN, 2005, Purificar e Destruir. Os imaginários da destruição social. p. 39. Grifos e itálicos são meus)
A questão é: se os membros do IPCO saíram às ruas manifestando um desejo, certamente não foi o desejo de ser agredidos; não obstante eles efetivamente foram agredidos, ofendidos, ridicularizados, impedidos de manifestarem suas convicções, isto é, violentados. Podem, segundo a hipotética análise provisória, até ter usado isso como “estratégia” para alcançar seus interesses – eu pessoalmente duvido, já que não tenho bola de cristal capaz de acessar a mente alheia e os dados empíricos, aos quais tive acesso, não mostraram nada parecido que justifique essa interpretação –, mas o objeto efetivo do que almejavam não era exatamente esse. O evento não foi em busca de um meio (a suposta estratégia da vitimização), mas exclusivamente almejava um fim (contra a aborto, contra a PL 122). Concordemos ou não com os fins e, sobretudo, com os meios.
Segundo os próprios organizadores do evento, a manifestação tinha como principal objetivo defender, segundo suas “crenças de fundo”, a “família”, eu compartilhe ou não dessa concepção de “família”, eu concorde ou não com o “método”: “A Cruzada pela Família, promovida pelo Instituto Plinio Corrêa de Oliveira, está percorrendo o Brasil fazendo uma campanha ordeira e pacífica contra as leis de aborto e contra a agenda do movimento homossexual, como o kit homossexual nas escolas, a lei de homofobia, etc.”. Ou seja, a campanha organizada pelo IPCO, por mais que se acha brega, não é contra um inimigo concreto, uma figura real encarnando a malignidade, mas contra uma possibilidade de lei, isto é, contra uma ideia e uma agenda.
Enquanto que o grupo dos Ativistas da Causa Gay de Curitiba agrediu os membros da passeata, exatamente, com a justificativa de que o IPCO é uma ameaça à sociedade, de que os seus membros efetivamente encarnam a figura hostil. Nesse caso, todos aqueles ativistas formaram um grupo precisamente por se sentirem ameaçados, em outras palavras, vítimas e, além disso, porta-vozes defensores de toda sociedade em perigo. Ao ponto de uma das ativistas pedirem para os motoristas não buzinarem em solidariedade à “Cruzada pela Família”, mas atropelarem. Como as imagensdeixam bem claro, as constantes provocações não esperavam outra reação dos “fascistas da IPCO” senão o contra-ataque violento, o qual, felizmente, não aconteceu. 
Há um outro vídeo circulando no Youtube que mostra, inclusive, uma edição comparando a “cruzada” do pequeno grupo do IPCO com a Marcha de algum pelotão Nazista. A descrição do vídeo demonstra quem se autocompreende como vítima ameaçada que, precisamente por isso, justifica as suas agressões e provocações “com unhas e dentes”:
Na segunda semana de janeiro a cidade foi surpreendida por uma marcha contra a família, que proclamava hinos de ódio (desde quando Ave Maria é hino de ódio?) e preconceito (contra quem? A lei do Aborto?). Nós, curitibanos e curitibanas conscientes e a favor da família, expulsamos estes radicais de extrema direita, que não são bem-vindos em nossa cidade (mas eles não são curitibanos também?). Que façam seu hino de ódio (Pai Nosso) em outro lugar. Curitiba é uma cidade para o amor. E aqui nós defendemos o amor e a alegria com unhas e dentes.
Em um dos comentários é possível notar a dinâmica da imaginação política, isto é, pressupor, num ato puramente imagético, que aquele grupo é, efetivamente, uma ameaça de proporções históricas, tal como é vinculado ao temerário e assombroso imaginário da “Ditadura Militar”, dos “Nazistas” etc.
Aos senhores que conhecem a TFP desde os tempos da ditadura vociferavam contra eles, casais heterossexuais, gays, enfim, e se eles voltarem serão rechaçados de novo pela mesma população (população ou alguns ativistas?) que não tolerará um Brasil fascista. A TFP é uma vergonha, nem a Igreja Católica tolera esses dinossauros proto-nazis, qualquer manifestação que pregue a intolerância e o preconceito ferindo o princípio da dignidade humana e da cidadania será combatida.
Por fim, fica evidente que a ação política deriva dessa exclusiva capacidade humana da autoconsciência pessoal de participação na realidade dos valores e no fundamental reconhecimento de que o outro, ao seu modo, também participa e se realiza como um valor e não como uma ameaça. Os conflitos políticos emergem, justamente, da perda desse reconhecimento ante o permanente “registro do imaginário de morte”. A liberdade da ação política, quando não impõe a si mesma esse limite ou princípio básico de reconhecimento ético, demoniza-se com a realização de suas fantasias, como mostrou Jacques Sémelin em seu livro supracitado.
Para concluir, cito uma passagem de Cioran, sobre essa essência demoníaca da liberdade:
O assassino faz uso ilimitado de sua liberdade, e não pode resistir à ideia de seu poder. Está ao alcance de cada um de nós tirar a vida de outro. Se todos os que matamos em pensamento desaparecessem verdadeiramente, a terra já não teria habitantes. Carregamos em nós um carrasco reticente, um criminoso irrealizado. E aqueles que não têm a audácia de confessar suas inclinações homicidas assassinam em sonho, povoam seus pesadelos de cadáveres. Pois nunca houve um ser que não tivesse desejado – ao menos inconscientemente – a morte de um outro ser. Cada um arrasta atrás de si um cemitério de amigos e inimigos; e pouco importa que esse cemitério seja relegado aos abismos do coração ou à superfície dos desejos. A liberdade concebida em suas inclinações últimas coloca a questão de nossa vida ou a dos outros; ela carrega a dupla possibilidade de nos salvar ou de nos perder. (CIORAN, Précis de Decomposition, p. 76-77).

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Briga no Circo


Os membros do IPCO que foram hostilizados em Curitiba conseguiram o que queriam. Ou quase.



O desejo deles, que é o desejo de qualquer passeata hoje em dia, era ser fisicamente agredidos. Ao ser agredido, o manifestante, que antes era só um mal-educado, vira um mártir, e já pode sonhar com a glória suprema: o direito de apontar um dedo acusatório. Isso vale para os ocupantes da reitoria da USP, para os que marcham pela maconha, e para a TFP também. Ser agredido é, em nossos tempos de alta exposição midiática, vitória automática. Quem é agredido é vítima, e a vítima tem sempre razão e deve ser admirada como exemplo de virtude. Nosso ideal político é o coitado, o explorado, o oprimido; pois ele implica que o adversário é o explorador e opressor. Há lutas de classe para todos os gostos. 

Fez passeata e não apareceu ninguém pra te jogar uma pedrinha na cabeça? Nem um soco? Puxa, não gritaram nem um palavrão para você? Que pena que não deu certo!

Na falta da agressão física, o IPCO pode tentar auferir os dividendos da agressão verbal, cujos rendimentos são, contudo, menores. Poucos compadecer-se-ão dos jovens sisudos que foram chamados de "fascistas" ou que tiveram que ouvir palavrões. Quem organiza marchinha militar está querendo guerra. Ou não? Será que eles queriam apenas expressar suas convicções e seus valores, dar um lindo testemunho de virtude e cativar as mentes e corações dos transeuntes?

Por que é que será que a posição básica dos cristãos de carteirinha é a de enfrentamento? Será que é isso que tocará as almas e transformará o mundo? Será que o panfleto é mais poderoso que o abraço?

Por outro lado, é difícil simpatizar com os contramanifestantes. Eles também entraram no jogo: chegaram lá para provocar e, quem sabe, apanhar. Cada gay que apanha dá muitos pontos para a campanha anti-homofobia. Infelizmente, dessa vez não rolou. Os soldadinhos do IPCO só queriam cantar, gritar e tocar gaita de foles. Pô, e as clássicas brigas de rua entre fascistas e comunistas? Enquanto houver Facebook, não acho que elas têm muita chance. Quando o vencedor é o lado com o maior número de cabeças quebradas, ninguém quererá jogar a primeira pedra.

Para piorar as coisas, os contramanifestantes ainda receberam apoio da Lola Aronovich: "E aí uma coisa linda aconteceu. A presença do grupo de ódio fez com que pessoas comuns se mobilizassem, usando a internet." Pessoas comuns andam por aí sem camisa, estão cheias de tatuagem, cabelos pintados e/ou descabelados, óculos chamativos, piercings, calças skinny e têm (fora um evidente comunista de boteco) entre 20 e 25 anos? E se o que os TFPistas faziam era ódio, como caracterizar o ato de berrar um xingamento a dois centímetros do rosto de uma outra pessoa enquanto se oferece a bundinha? Lindo! 70 partidários da causa gay conseguiram berrar e ameaçar um grupo de 20 opositores que rezavam e tocavam uma gaita de foles; que "coragem"!. Vitória do amor e da razão!

Quem é contra o casamento gay, o que espera ganhar ao fazer um teatrinho militar nas ruas? "Puxa, veja só, que exemplos de coragem! Se gente desse calibre é contra o casamento gay, eu também tenho que ser!". E quem é a favor, espera causar boa impressão fazendo um escarcéu histérico e indecente? O resultado final disso é que um lado saiu odiando o outro um pouco mais. E só.

A meu ver, a única lição a ser tirada do episódio é que há algo de errado com mostras públicas e grupais de ideologia. Elas funcionam para fazer seus participantes se sentirem bem - especialmente essas micro-marchas de grupinhos bem definidos, que sonham em vão com o tipo de repercussão de outras passeatas que tiveram caráter global - e aumentar um pouco o ódio contra a causa. Ao mesmo tempo, lamento as duas sociedades projetadas pelo dois lados da contenda: a primeira, embora mantenha uma ordem de valores e de devoção, é rígida, impositiva e homogênea. A segunda é arbitrária, caprichosa, irracional, niilista e feia por opção. O que aconteceu com a boa e velha civilização ocidental? Ela ainda está por aí; só não a vemos porque ela é exatamente os 99% que não comparecem a manifestações. Todos os que, só por não fazer barulho, não são ouvidos.

Penso na cobertura que a mídia de São Paulo dá aos embates entre punks e skinheads na Av. Paulista. Como é que dois grupos de palhaços fantasiados que resolvem sair na porrada recebem atenção? Troque por CUT e Movimento Cansei que dá no mesmo. Quem se importa se o os punks defendem o Patati e os skinheads o Patatá? Dar importância a isso é já ceder no essencial: ceder a autonomia individual e conceder de mão beijada que a sociedade é feita de coletivos com seus "interesses". Até quando o desejo adolescente de autoafirmação via grupos será considerado uma voz socialmente relevante?

Nesse sentido, penso em um outro tipo de manifestação pública de massas: a procissão católica. Vejam o tamanho da oposição: ela não é contra ninguém, é só uma mostra de alegria e devoção com um convite estendido a todos para participar ou mesmo só vir olhar. Nesse sentido, não tão diferente do Carnaval e, por que não, da Parada Gay, na medida em que esta não é uma militância (e ela sempre tem, parcialmente, o sentido de militância). Celebrar publicamente; tá aí algo legítimo e belo. Embora o que se celebre na procissão seja  muito maior do que o que se celebra no Carnaval. E provavelmente oposto ao que se celebra no lado bom da Parada Gay? Putz, isso ainda vai gerar passeatas!

domingo, 20 de janeiro de 2013

A Civilização do Futebol de Rua

Meu avô materno era padeiro e treinador de futebol. Foi amigo do Bellini, zagueiro e capitão do escrete brasileiro nas Copas de 58 e 62. Apesar de sempre ter admirado sua carreira semiprofissional de futebol, eu mesmo, desafortunadamente, nunca levei jeito para o esporte dos bretões. Minha vontade mesmo era ser padeiro. Como perdi no tal jogo da vida – depois de também ter perdido as esperanças no proletário esporte bretão – sem ressentimentos aposentei as chuteiras e me tornei professor de filosofia.
Como todo moleque, gostava de bater bola com os amigos no campinho improvisado na rua, num terreno qualquer, de traves feitas de chinelo de dedo. Eu e mais outros dois amigos éramos péssimos. Meu apelido variava entre “leite-azedo” e “cabide” (magro e branquelo); de um dos amigos, “bolacha-traquinas” (redondo e sorridente).
Hoje tenho certeza de que a expressão café-com-leite tinha muitíssimo a ver comigo. Era quase uma vocação: ser café-com-leite. Na vila onde morava havia uns quinze garotos. O jogo, pra ser competitivo e divertido, tinha de ter pelo menos seis jogadores para cada lado: um no gol e cinco na linha. A questão é: como se monta uma seleção de rua?
O senso de justiça na molecagem é impressionante: a coisa é orgânica e funciona sem precisar da intervenção de pais, estado, governo, ongs, feministas, veganos etc: em cada dia de jogo, dois moleques montam seus respectivos times; noutro dia, outros dois... e assim por diante. Como meu sonho mesmo era ser padeiro, só jogava quando era minha a vez de montar o meu próprio time, ou na ausência de um dos titulares. Não obstante, nesse último caso, eu era sempre um dos últimos a ser escolhido. Me consolava lembrar: "Quero mesmo é ser padeiro".
O senso de justiça funcionava mais ou menos assim: sabíamos (senso comum) que dos quinze amigos, pelo menos dois eram gênios da bola (Marrom e Chulé); quatro jogavam bem (Xoxó, Neguim, Lácio e Buda, o dono da bola); um outro era sempre o goleiro (Pavio); outros quatro sabiam jogar (Mula, Toco, Paulo e Sabão); dois eram medíocres (Chaveiro e Robson) e, por fim, dois rigorosamente estúpidos (eu e o Bolacha). 
A conta é simples: todo mundo quer jogar, mas só há doze vagas. Como não existia “cota-perneta”, ninguém falava em exclusão social. Não havia passeatas em favor das minorias que sofrem o preconceito por serem verdadeiros “bonecos de Olinda” jogando bola. Então a coisa se ajustava de modo a fazer inveja a Rothbard, e era absolutamente inconcebível pensar em evocar a autoridade de algum pai para intervir na disputa por uma vaga. Era a injustiça mais justa de todas. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Notas sobre o “feminino”

por Ronald Robson

1.

Diante da morte, desde sempre, mulheres choram, enquanto homens cavam sepulturas.

Tal imagem, de autoria de Eugen Rosenstock-Huessy, impressiona pela sua verdade intrínseca. Vale, assim, mais que pencas de argumentos no sentido de que, contrária à ideologia de gênero, existe, sim, uma divisão do trabalho e uma diferença de caráter inerentes ao homem e à mulher – no sentido de que, por fatores de ordem objetiva, homem é homem e mulher, mulher, e que todas as demais construções culturais recorreriam a tal fundamento (e fundamento algum, se de fato o for, não pode ser cultural).

Todo o senso comum testemunha a oposição e complementariedade do masculino e do feminino. Mesmo a compreensão vulgar do homossexualismo, inclusive por parte dos próprios homossexuais, volta a tais termos (de que o indivíduo em questão seria mais feminino que masculino, a despeito da masculinidade do seu gênero biológico; vê-se que é um raciocínio, do ponto de vista da “identidade homossexual”, um tanto suicida). Há uma longa e mais ou menos convergente tradição em torno da “metafísica dos sexos”, bem como um simbolismo que lhe é próprio. Talvez o mais conhecido e banalizado seja a analogia que põe o lunar, a determinabilidade (ou “matéria” ou como queira chamar, a depender do plano ontológico que se tome para análise) e o feminino, de um lado; e o solar, a determinação (ou “forma” ou idem) e o masculino, de outro. Igualmente longa, além de inseparável da questão, é a história do arquétipo do andrógino, do ser de sexualidade “completa”, cuja última imagem exemplar Mircea Eliade encontra no romance Serafita, de Balzac. É uma tradição, e tradição é testemunho abalizado: vale até certo ponto, necessitando, a partir de determinadas circunstâncias, ter os seus fundamentos revistos – ou pelo menos explicitamente vistos.

Para um público não cristão, os comentários de Lorena Miranda e Day Teixeira aos textos de Aline Brodbeck podem ser pouco aceitáveis, tanto quanto o que escreveu esta, justamente por supor a naturalidade e objetividade do “masculino” e do “feminino”. As três estão de acordo quanto a tais naturalidade e objetividade. Discordam, é o que parece, quanto aos meios pelos quais tais fatos devem ser integrados à vida da mulher e seu comportamento público – ou talvez também quanto à própria substância do “feminino”. Também estou de acordo quanto àquela naturalidade. Só não sei se pelos mesmos motivos, pelo que achei conveniente expor brevemente a visão do filósofo austríaco Otto Weininger (1880-1903) – que não é, em si mesma, cristã – em Sexo e Caráter (1903), o estudo mais pinel e genial que conheço a respeito, do qual me é muitas vezes impossível, em que pese a repugnância inicial despertada por muitas de suas idéias, discordar quanto ao essencial. O doidivanas escreveu este estudo, que vai da biologia à filosofia da história, da caracterologia à lógica e metafísica, sem um salto argumentativo sequer, quando mal passava de moleque de vinte anos de idade, portanto três anos antes de se suicidar. É o caso mais cabal que conheço de genialidade precoce, tanto mais impressionante por se tratar de alguém que, desprovido de imodéstia, tinha total consciência da sua própria genialidade e se dedicou a investigar, assim, em que consiste o gênio (talvez por mais científicas, as páginas que escreveu a respeito superam, por exemplo, as de um Goethe ou de um Ortega y Gasset sobre o mesmo tema).

As citações feitas a seguir referem-se à edição Sexo y Carácter, trad. Felipe Jiménez de Asúa, Editorial Losada, Buenos Aires, 1942. Peço aos leitores, sobretudo às leitoras, que tenham um pouco de paciência com a possível estranheza das concepções do autor, bem como com a extensão da exposição.

2.

A biologia, nota Weininger na primeira parte do livro (que é a que menos interessa aqui), nos mostra que a natureza desdenha de nossas noções de masculino e feminino. Fenômenos como o dimorfismo sexual, a bissexualidade e o hermafroditismo estão disseminados na natureza em proporção tal que, com honestidade, redunda impossível dizer que o ser humano seja, em sua integralidade, masculino ou feminino no mesmo sentido em que os demais animais e plantas o são. Na natureza impera o “princípio dos graus intersexuais”; não há tipo feminino e tipo masculino isolados, pelo menos não na maioria dos seres. A embriologia, a endocrinologia e a anatomia humanas poderiam levar a crer, com razão, que o ser humano só existe enquanto uma mescla e equilíbrio de elementos sexuais caóticos que jamais se agrupam em um caráter sexual específico. Mas, aduz Weininger, tal impressão se esvai quando passamos dos elementos “psicofísicos” para os “introspectivos”, passagem na qual “impõe-se uma acentuada restrição à existência universal do princípio dos graus intersexuais” (p. 111).

No gênero humano, psicologicamente, haveria sempre uma disposição sexual especificamente masculina e outra especificamente feminina, inclusive em duplas homossexuais. Encontra-se no ser humano “uma espécie de polarização dos extremos com inumeráveis gradações entre eles” (p.113). Mas essa premissa da caracterologia dos sexos não é verificável por uma psicologia que se centra na “doutrina das sensações” (as sensoriais, dos cinco sentidos), mas por uma que levante o problema da sede do indivíduo senciente, o “eu”, que não corresponde inteiramente ao da psicanálise e para o qual o autor aventou uma nova disciplina, a “biografia teórica” (p. 174), que levaria em conta os modos diversos como homem e mulher experimentam o tempo (do que se falará adiante). Tão logo se inverta a perspectiva, passando a ver a experiência desde aquele que a vive integralmente, e não desde a própria experiência tomada à parte, nota-se que cada ato do indivíduo é, em si mesmo, testemunho da sua configuração total:

Do mesmo modo como a célula guarda em si as propriedades do indivíduo em seu conjunto, assim também cada manifestação psíquica de um sujeito não nos dá simplesmente “traços do seu caráter”, senão toda a sua essência, da qual, de acordo com o momento, ressalta esta ou aquela particularidade (p. 116).

Sem, portanto, supor, de uma parte, a polarização psicológica entre homem e mulher de maneira qualitativamente distinta da que a biologia verifica na natureza, e, de outra parte, a integridade da manifestação do caráter em cada particularidade do indivíduo, toda a discussão sobre o “masculino” e o “feminino” cai ou presa de determinismo biológico – e assim não se trata este animal como especificamente humano – ou de um indutivismo alucinado – em que cada dado apreensível do ser humano não encontra fundamento em nenhum modo próprio de existir enquanto humano. Contudo, se o “princípio das formas intersexuais” não se aplicasse até certo ponto a nós, seria impossível, por exemplo, que um homem compreendesse uma mulher, pois seria como se não guardasse em si também algo de feminino.

Ora, ao falar-se em gênero sexual, é natural que se parta do sexo em sentido estrito, o ato sexual, averiguando qual seria a diferença entre o homem e a mulher quanto às suas propensões específicas frente ao intercurso. Weininger leva em conta os dois momentos do impulso sexual distinguidos por Albert Moll: o “impulso à detumescência” (o descarrego, por assim dizer, da tensão sexual) e o “impulso à contração” (o prolongamento da tensão). E diz:

Enquanto o homem possui tanto o impulso à detumescência como o impulso à contração, a mulher carece completamente do primeiro, em sentido estrito. Isso se deve a que, no ato sexual, é o homem que cede uma parte de matéria, enquanto a mulher retém tanto as suas secreções como as do homem (p. 122).

A contrabalançar a possível arbitrariedade da afirmação, Weininger elenca um sem-número de constatações. Uma delas é a de que a constituição anatômica confirmaria isso: a proeminência da genitália no homem (diferente do que se dá na mulher) o mostraria como o portador de algo a ser vertido (uma “vasilha”, o autor o chama). Outra: o “desejo de atuar”, em toda a natureza, tem no macho a sua realização, e até os espermatozóides o ilustrariam – pois são os masculinos que vão em busca dos femininos. Haveria, assim, aquela conhecida atribuição de “atividade” ao homem e de “passividade” à mulher, do ponto de vista sexual; mas não só isso. Enquanto o homem buscaria no sexo um abrandamento da tensão sexual, a mulher buscaria o seu prolongamento. Enquanto o homem, assim, investe em direção à mulher para desfazer-se do impulso à detumescência, a mulher se daria à investida para amplificar o impulso à contração. 

A mulher é – agora falaremos pela primeira vez de uma diferença real – sexualmente mais excitável que o homem; sua irritabilidade (não sensibilidade) fisiológica é, no que diz respeito à esfera sexual, muito mais intensa. A mulher se consome na vida sexual (...). O homem, ao contrário, não é unicamente sexual (...) Somente a diferente extensão da esfera sexual no homem e na mulher constitui uma diferença específica de importância extraordinária entre os extremos sexuais (p. 124). (...) a mulher não é outra coisa que a sexualidade, pois é a sexualidade mesma (p. 128).

Weininger elenca várias evidências de que o tipo feminino é aquele essencialmente responsável pela sexualidade no ser humano. Uma das mais interessantes é a contraposição das posturas do menino e da menina diante da puberdade. Para o homem, o período de ingresso na maturidade sexual é um período de crise; o garoto “sente que algo estranho penetra o seu ser, algo que se acrescenta involuntariamente aos sentimentos e pensamentos até então vividos”. A mulher, ao contrário, entra facilmente na maturidade sexual; “todo o seu ser se encontra dotado de novos poderes e sua importância aumenta enormemente diante dos seus próprios olhos”; “desde os primeiros anos espera tudo” da puberdade, do finalmente “tornar-se mulher” (p. 126).

Haveria, portanto, segundo Weininger, uma divergência de foco de atenção entre o homem e a mulher, sobretudo em razão da extensão ocupada pela sexualidade em suas vidas. Weininger a encontra no que chama de hénide, que representa, cognitivamente, o primeiro estágio da “descrição evolutiva do fenômeno” percebido. É preciso, com respeito à psicologia (mas também à lógica), notar que o conhecimento se dá por aproximação do indivíduo às notas objetivas do dado apreendido, limando-o, aos poucos, dos conteúdos confusos e subjetivos que lhe turvavam em uma primeira apreensão (“primeira” no sentido biográfico; a “simples apreensão” da lógica clássica lhe dá sua estrutura e validade, mas pouco tem a ver com o seu conteúdo). É como ir se aproximando de um objeto que antes se via só de longe; é um processo de clarificação das notas específicas do ente apreendido (p. 135), processo cujo primeiro estágio de nebulosidade – sobreposição do psicológico ao lógico e ontológico – é a hénide. Weininger afirma existir uma diferença no homem e na mulher quanto ao processo de clarificação:

O homem tem os mesmos conteúdos psíquicos que a mulher, mas em forma articulada, e, enquanto esta pensa mais ou menos em hénide, aquele já pensa em representações claras e distintas que se ligam a sentimentos determinados, que lhe permitem separá-los de todo o resto. Nas mulheres, “pensar” e “sentir” são dois atos inseparáveis, coisa que não ocorre no homem. A mulher, contudo, tem muitos acontecimentos em forma de hénide quando o homem já é chegado a uma notável clarificação (p. 140).

Daí que a mulher tenderia a se apartar menos daquilo que experimenta diretamente da realidade, preservando e alongando a primeira apreensão (o que o senso comum refere ao ter a mulher como mais “intuitiva”), enquanto o homem tenderia a uma maior abstração. Isso logo levanta a pergunta sobre quais seriam, tendo isso em mente, as aptidões naturais ao homem ou à mulher; ou seja, o problema do talento e do gênio. Este último seria qualitativamente diferente do primeiro. O talento pode ser específico e até hereditário, mas a genialidade só pode ser universal e intempestiva. “Um homem será tanto mais genial quanto mais homens encerre dentro de si”; “o ideal do gênio da arte é viver em todos os homens, é perder-se em meio a todos, diluir-se na multidão” (p. 147). Isso depende diretamente da clareza e objetividade daquilo que ele percebe e produz; daí que:

A consciência genial é a que se encontra mais distante do estado de hénide, pois possui a maior claridade e transparência. A genialidade, portanto, aparece já como uma espécie de masculinidade superior e, em conseqüência, a mulher não poderá ser genial [mas somente talentosa]. (...) Pode-se definir o homem genial como aquele que sabe tudo sem tê-lo aprendido (p. 153).

Subsumido no problema da universalidade da experiência acumulada está o problema da memória e da fantasia, e a primeira coisa que Weininger nota a respeito é que “a hénide absoluta não pode ser recordada”, por conta da sua nebulosidade constitutiva; ela nunca é alcançada, é um limite, do qual no máximo podemos nos aproximar, mas para o qual a mulher tende mais (p. 156). E, uma vez que a capacidade imaginativa corresponde, em parte, a um jogo de possibilidades com base no que se experimentou e recordou, “é absolutamente falso que as mulheres tenham mais fantasia que os homens” (p. 161).

A absoluta falta de importância das mulheres na história da música é atribuível também a motivos mais profundos; contudo, já demonstra a ausência de fantasia na mulher. Para a criação musical se necessita infinitamente mais de fantasia do que para as restantes atividades artísticas e científicas, e essa fantasia excede em muito a que poderia ter a mulher a mais masculina. Nada existe na natureza que se possa comparar a um tom. A música é estranha ao mundo da experiência e na natureza não existem tons, acordes nem melodias. Tudo, até os últimos elementos, foi criação humana (p. 161).

Uma mulher pode ser uma poetisa ou uma pintora de extraordinário talento, diz Weininger, justamente por se tratar de artes menos abstratas (já a arte do desenho escaparia às suas melhores capacidades; na pintura, diz-lhe mais respeito a sensorialidade da cor do que o traço). E dessas conformações diferentes da memória e da fantasia se seguiria que a experiência que o homem e a mulher têm do tempo é inteiramente diversa. Se “a memória faz com que os acontecimentos não estejam sujeitos ao tempo e, nesse sentido, triunfa sobre o tempo”; se o processo mais intenso de clarificação dá ao indivíduo uma maior compreensão do desenrolar dos acontecimentos pretéritos da sua vida, desprendendo-o da imediatez dos fatos, então aquele que menos atrelado estiver à hénide terá maior capacidade de abranger o sentido da sua própria história – o homem, conclui Weininger (p. 176). Também o homem, tendo assim maior consciência da unidade da sua vida, experimenta mais intensamente o princípio de identidade em sua própria biografia; com o que ele seria mais naturalmente “lógico” que a mulher (trata-se de formalidade da experiência, não de inteligência) (p. 195). 

A consciência da unidade do homem, que freqüentemente não chega a compreender o seu passado, se manifesta na necessidade de compreender-se, e essa necessidade leva implícita a premissa de que ele sempre foi o mesmo, apesar da sua auto-compreensão atual. Quando pensam em sua vida passada, as mulheres jamais compreendem a si mesmas, mas tampouco sentem a necessidade de compreender-se (...). Um ser que como a mulher absoluta não se sentisse idêntico nos diferentes momentos sucessivos não possuiria sequer a evidência da identidade do objeto do seu pensamento nos diversos instantes (p. 195).

Para concluir este esboço de algumas idéias – e de só uns poucos capítulos – de Sexo e Caráter, recordo a mútua implicação apontada por Weininger entre memória e moral. Porque mais atento à coerência da sua biografia, ao homem seria mais imediato considerar todo e qualquer erro como uma falta moral; é como não honrar o que antes apreendera e guardara na memória: a mentira, para ele, é qualquer coisa que não se coadune com o sentido da sua conduta, é uma traição a si próprio e, portanto, objetiva; para a mulher, contudo, a memória não seria eminentemente moral, e assim nem todo esquecimento implicaria culpa e arrependimento – a mentira (a falta para consigo mesma) não pode, a rigor, existir objetivamente. Seria só uma disposição natural do caráter feminino (p. 199).

3.

De minha parte, recorrendo à minha experiência pessoal, sem muita pretensão de justificar o que escrevo – e ainda a me valer de espantalhos conceituais, imprecisos o quanto sejam –,  eu diria o seguinte sobre os “tipos” feminino e masculino. O que digo não é um reconhecimento de deveres, mas apenas de aptidões.

A mente feminina sugere a concretude de um tomismo de pedra misturado ao interesse vívido e saudável de uma fofoca de porta de casa, ao passo que a mente masculina, no primeiro descuido, já incorre em um idealismo especulativo misturado a uma espécie de ufanismo de torcedor corintiano; só o homem consegue ser metafisicamente dogmático, e isso é sua glória e sua desgraça. De maior interesse é que, sendo assim, seja o homem, naturalmente mais sonhador do que em geral supomos, que tende a se dedicar às atividades práticas mais brutais, como o ofício do sacerdócio e da guerra, enquanto a mulher, mais ponderada, se dedica a atividades práticas que, apesar de rotineiras e amiúde mais amenas, são mais complexas e requerem maior tenacidade, como o cuidado dos filhos.

Como se o homem fosse buscar no mundo a concretude que não encontra dentro de si.

Como se a mulher fosse buscar dentro de casa a abstração que não encontra no mundo, da qual já é senhora por natureza.

4.

Uma observação de teor histórico.

Se levarmos a sério a distinção prática que Ortega y Gasset faz entre épocas “jovens” e “velhas”, “masculinas” e “femininas”, encontraremos exemplos curiosos no período da história ocidental mais devotada aos sentimentos de humildade e martírio, a cavalheiresca e masculina Idade Média, idealizada tanto por detratores quanto por apologistas. O detrator feminista dirá que em tal período a mulher era submissa e alijada socialmente, com o que ficará confuso se lhe mostrarem a proeminência social de santas e cortesãs, que ousavam ir contra vento e maré, Coroa e Igreja. O apologista cristão dirá que nunca a mulher teve sua nobreza tão cantada em verso e prosa quanto no medievo e que nunca lhe foi mais fácil dedicar-se ao estudo e à “vida do espírito”, e a tratará como tendo uma qualidade tão excelsa, no porte como na educação, com o que ficará chocado se lhe mostrarem uma balada de Arnaut Daniel que fala de uma dama – nobre, ela – que tornou pública a sua decisão de só se entregar ao amante se este lhe beijasse o ânus (V. a balada “Que Raimon ou Truc Malec” na tradução impecável de Augusto de Campos, em Invenção – de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti).

É que a Idade Média, afinal, muito mais mundanamente alegre do que geralmente estamos dispostos a admitir, foi um período de razoável equilíbrio social entre o “profano” e o “sagrado”, e assim o culto mariano poderia ser vertido de versos litúrgicos latinos para a mais prosaica exaltação da mulher comum na poesia secular, e assim os monges poderiam aos poucos romper a sisudez de sua homofonia, aprendendo com os mestres laicos a polifonia. Ora, a época que viu o surgimento da filosofia de Santo Tomás também viu o surgimento da pândega de um Arnaut Daniel, que nada tinha a ver com a priapéia antiga; não é à toa que os mosteiros eram, antes de mais nada e materialmente, grandes depósitos de livros e cerveja. E, também nesse período, e possivelmente pelas mesmas causas, os papéis do homem e da mulher eram razoavelmente bem compreendidos, a ponto tal que, com um sabor de referência a um ideário já antigo em sua época, podemos ver no Auto da Sibila Cassandra, de Gil Vicente, a dama a brincar em torno dos benefícios e malefícios do matrimônio: ela pode, comportando-se como um moleque, fazer troça de tudo, menos da certeza do seu destino de relicário e fortaleza da pureza, à qual está obrigada por ser, talvez próximo do que postula Weininger, a própria sexualidade, o “eterno feminino” goethiano.

Mas o período das “luzes”, incontestavelmente padrinho de um tipo de sensibilidade inconformista superficial que, se não levou, pelo menos abriu caminho a uma série de confusões similares às da nossa época, começou a trocar o essencial pelo inessencial. É abusivo supor, eu reconheço, mas não chega a ser ilícito imaginar que só assim começaríamos a nos perguntar o quanto a maquiagem está de acordo com a modéstia requerida de uma mulher católica, preterindo questões mais substantivas, como relatou Day Teixeira em seu texto.

(Aliás, é conveniente lembrar que nenhum período foi tão perigoso para uma mulher “emancipada” e solteira quanto aquele de quando se começou a perder de vista o que seja a mulher e a confundir “feminilidade” com submissão normativa, a soldo de puritanismos tanto católicos como protestantes: no fim do século XVI, mulher “emancipada” e solteira, sobretudo se velha, era bruxa e tinha de ir para a fogueira, na quase totalidade dos casos através de tribunais civis, não eclesiásticos, e sob aplausos de luminares da ciência. V. o ensaio “A mania de bruxas nos séculos XVI e XVII”, de Hugh Trevor-Roper, historiador que pode ser chamado de qualquer coisa, menos anti-modernista).

5.

O desespero, calmo e resignado como o seja, originado da perda do senso concreto do que seja “a” mulher, talvez não se o possa encontrar melhor acabado literariamente que no romance A Bem-Amada, de Thomas Hardy. Nele, o escritor Jocelyn Pierston atravessa seus dias num langor sem fim em busca da mulher que corresponda perfeitamente à idéia descarnada do “feminino”; nenhum dos vultos que se apresentam a ele traz essa identidade em perfeição, neles vendo só traços, notas da tão ansiada “bem-amada”. A impressão imediata, a ser depreendida da narrativa, seria a de que “a mulher ideal” encontra diversas conformações reais, sim; mas mais ressalta é a distorção do foco de Jocelyn Pierson: de certa forma, a idealização despropositada trai mais a distorção que ele operou, em meio às etiquetas da alta sociedade parisiense, sobre a natureza da mulher do que a impossibilidade de, um dia, esbarrarmos com a mulher pura e bruta. Em certa medida, tomamos parte da mesma confusão.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Letter of Recommendation for Philosophy PhD

Dear Board of Admissions,

I'm writing this letter on behalf of J---. I think you should accept him to your Philosophy PhD program.

Over his 9-year long undergrad studies, J--- displayed many traits that put him clearly outside the curve. A bit older than  his colleagues when he got accepted, since he took 3 years right after high-school to, as he told me, "enjoy life", his mental age, on the other hand, was several years younger. He had considerable difficulty concentrating on anything, and his only ambition in life seemed to be spending all day playing soccer at the university's sports club. The first time I saw him, what first came to my attention was his infantile sense of humor; what else can I call a 20-year old who, with a clever smile on his face, tried to put a "farting cushion" on my chair? After this failed attempt, I never saw him until the end of the semester; I guess he was playing soccer and sunbathing. When the final exams came, he cheated on all of them and got As (keep that in mind when evaluating his undergrad transcripts; as far as I'm aware, he cheated on every single test he ever took).

It would be a stretch to ascribe to him a superior, or even above average, intellect. Over the years I've had many students who, though mediocre at first, displayed tremendous potential if only we could tap it. That is clearly not J---'s case. Even at its most concentrated and alert, he possesses a C- mental capacity; perhaps C.

With that said, it's incredible to see how far he came during his undergrad years. As the course progressed, he let go of his sports, turning to illegal drugs instead. I once found him smoking pot on the corridor, giggling, his lost eyes gazing stupidly at the opposite wall. It was around this time that, seeing his dirty clothes that he never seemed to change, that I began suspecting he had been sleeping every night on campus premises. It was only in March of this year, after accepting to be his Master's supervisor, that I confirmed this hypothesis, though. It seems he has become friends with a group of beggars who roam the campus at night, and sleeps with them and the stray dogs who live on the gardens.

From marijuana he quickly turned to crack-cocaine.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Contra Estatizantes: Respostas a Sidney Silveira - II


A introdução desta longa discussão econtra-se aqui.

2. Respostas ao Quodlibet Antiliberal de Sidney Silveira

1- Do ponto de vista psicológico: o liberalismo parte da falácia da consciência individual autônoma. Isto o leva, entre outras coisas, a forjar uma idéia totalmente equivocada de liberdade.”

Essa crítica parte de um equívoco comum dos meios conservadores, que é tentar jogar todos os debates e discussões na conta da filosofia. Como se, para fazer uma proposta política ou um juízo moral, fosse necessário ter uma definição perfeita e filosoficamente irretocável de “indivíduo”, “consciência”, etc. Não está nada claro que a defesa de uma posição política ou mesmo sobre a boa vida humana necessite de um tratamento filosófico cuidadoso da noção de liberdade e consciência. Está bem claro, para a maioria das pessoas, que os homens valorizam diversas coisas boas, e que o Estado pode ou não ter um papel para ajudar nessa busca. A maior parte das defesas liberais, inclusive, são feitas com argumentos econômicos, que visam mostrar que a medida estatal proposta não alcança sequer os objetivos que seus próprios defensores dizem buscar.

Ademais, é complicado falar que o liberalismo parte de uma base filosófica qualquer, pois há diferenças filosóficas enormes entre diversos autores liberais: Mises, Rothbard, Rand. Filosofias radicalmente diferentes por trás de posições políticas próximas. Há até liberais radicais que, metafisicamente falando, são deterministas; isto é, acreditam que não existe livre arbítrio, que toda ação é inteiramente determinada por condições (físicas e/ou psicológicas) anteriores; mas, ainda assim, reconhecem que a vida humana em uma sociedade com pouca ou nenhuma interferência do Estado é melhor. E que é um grande bem que cada indivíduo possa escolher os rumos de sua vida nos campos mais importantes da existência (suas ideias, as atividade produtivas que ele pratica e o uso de seu tempo de lazer).  

Dito isto, o liberalismo me parece a melhor posição política que se pode derivar de uma correta apreciação da liberdade humana e da consciência individual. O homem se guia por princípios objetivos, mas sua ação se dá em meio a circunstâncias particulares e há uma grande dose de latitude para se agir dentro dos parâmetros da moralidade; é vão tentar prescrever legalmente um certo modo de agir como sendo o único aceitável, pois é certo que haverá casos em que a melhor ação não segue a norma estatística (exceção feita às violações voluntárias dos direitos fundamentais ou de negações práticas diretas de algum componente necessário da vida humana plena). Além disso, a ação virtuosa ou vem de dentro, ou não existe. Muito pelo contrário: a tentativa de impor a moral, ao obrigar a adesão externa sem a persuasão interna, antes cria desprezo pela lei e, por contágio, pelo próprio princípio moral em jogo, ainda que ele seja correto.

Já o sistema de livre transação denominado mercado também engendra um tipo de imitação moral, mas virtuosa. É servindo aos outros que se é servido. A educação no livre mercado é a educação sobre como deixar de lado os próprios caprichos e preferências atuais para produzir algo de valor para os outros. Assim, promove a harmonia entre interesses individuais e coletivos e estimula as boas relações e a confiança entre as partes (que são, ao mesmo tempo, pré-requisito e produto de seu funcionamento). Por fim, o mercado mantém todos os seus membros em contato com a realidade de suas escolhas: ele não premia e nem pune nada para além do que a própria realidade social, isto é, a realidade dos desejos das outras pessoas, premia ou pune. E ele também não obriga ninguém a se pautar pelo desejo dos outros. Um artista seguro de estar produzindo uma obra-prima ainda incompreendida tem total liberdade para fazê-lo; só não deve esperar que seus esforços sejam subsidiados pela produção dos demais. E, a bem da verdade, mesmo os artistas – pintores, músicos, dramaturgos – ao longo da história (especialmente na Renascença) tiveram uma relação muito mais simbiótica com o mercado. E ainda têm: é só ver como o mercado de traduções, edição de textos e aulas particulares sustenta escritores e estudiosos independentes hoje em dia.

Assim, alguém que tenha ojeriza pela pornografia ou pela prostituição tem total liberdade de se recusar a consumi-las mesmo pelo preço zero. E, ao fazer isso, desestimula a oferta por esses serviços. Daí a bela resposta do general francês às reclamações do general americano sobre o alto preço das prostitutas parisienses: “O preço delas é diretamente proporcional à virtude de nossas mulheres e ao vício de seus soldados”. Todo juízo de valor entra na composição do sistema de preços; que não é, ele próprio, normativo, e sim o resultado de diversos (e nem sempre concordantes) juízos de valor.

Da mesma forma, vícios, aqueles hábitos que afastam o homem da felicidade que ele poderia alcançar, não são subsidiados e seus efeitos não são partilhados artificialmente entre todos os membros da sociedade. Passou os anos na pornografia, nas drogas e no instagram? Sua escolha engendrará sua própria recompensa. Se a virtude e o vício se definem com base na realidade da natureza humana, nada melhor do que deixar que a realidade fale mais alto do que as decisões políticas, por mais bem intencionadas que possam ser.

2- Do ponto de vista gnosiológico: o liberalismo sempre acaba por optar pelas posturas idealista e/ou imanentista, ainda que, aqui e ali, sob o disfarce realista;”

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Contra Estatizantes: Respostas a Sidney Silveira - I

Leia a segunda parte aqui.

1. Introdução: o austro-libertarianismo católico

O mundo do catolicismo de viés mais tradicionalista e/ou conservador (aos não familiarizados, é bom saber que os dois termos significam coisas diferentes, mas que não serão relevantes para este texto) é marcado por algumas interessantes cisões. Uma delas é acerca da posição político-econômica. Por algum motivo, calhou de que importantes intelectuais do movimento austro-libertário americano sejam católicos tradicionalistas.

"Opa, pera lá! Austro-libertário? O que é isso e como faço para fugir dele?” Esse termo se refere a uma corrente do movimento libertário, provavelmente a principal, que une duas coisas: a defesa de uma ética libertária, ou seja, uma ética da não-iniciação de agressão absoluta ou quase absoluta, e a análise econômica austríaca. Essas duas vertentes nem sempre andaram juntas. Quem criou essa fusão que podemos chamar de austro-libertarianismo foi Murray Rothbard, que uniu a tradição libertária americana (de gente como Lysander Spooner, Albert Jay Nock e o jornalista H. L. Mencken) à análise econômica austríaca (de Mises, Hayek, etc.).

Como eu disse, o movimento austro-libertário tem marcante presença católica. Posso citar três nomes de peso: Lew Rockwell, Jeffrey Tucker e Thomas E. Woods Jr. Woods, em particular, chegou a publicar em 2002 o livro The Great Façade, um verdadeiro manifesto tradicionalista contrário às mudanças do Concílio Vaticano II; livro do qual ele hoje se distancia. Seu coautor, Christopher Ferrara, é atualmente inimigo jurado de Woods, e a causa da briga é, como não poderia deixar de ser, econômica.

É um tanto misterioso o porquê da aproximação dessas duas correntes (tradicionalismo católico e austro-libertarianismo). O século XX teve autores católicos bastante contrários a diversos aspectos do crescimento estatal, mas eles também viam com maus olhos, via de regra, a economia liberal e o capitalismo. Chesterton é um belo exemplo; seus livros abundam em tiradas contra o crescimento sem precedentes do Estado; mas ele também defendia um sistema econômico sui generis e bem pouco liberal. Tolkien se considerava um anarquista, mas imagino que o criador da bucólica Shire não fosse lá muito afeito à economia moderna (posso estar enganado).

Talvez o elo que ligue as correntes seja, novamente, Rothbard. Ele, embora, agnóstico, era amigo e discutia muito com o padre jesuíta James Sadowsky (1923-2012). Sadowski, pela influência de Rothbard, tornou-se libertário; e Rothbard, embora não tenha se convertido, absorveu de Sadowsky uma metafísica realista (em oposição, por exemplo, ao idealismo kantiano de Mises, seu professor) e um apreço pela tradição de pensamento moral católica. (Interessante aqui relembrar o debate de alto nível deles sobre o aborto, na forma de artigos; a crítica de Sadowsky ao argumento de Rothbard, que é próximo ao argumento canônico de Judith Jarvis Thomson, é uma das melhores que já li.)

Com efeito, Rothbard empreendeu uma campanha ativa de realinhamento da “escola austríaca” (entre aspas porque não se trata de uma instituição, mas de uma metodologia de análise; e da qual ninguém pode, estritamente falando, se dizer representante ou líder) com o pensamento continental católico, distanciando-se do Iluminismo escocês (essa campanha é visível em uma de suas obras-primas, An Austrian Perspective on the History of Economic Thought). Segundo a nova leitura (ignorada, por exemplo, por Mises e provavelmente por Menger, o pai da escola austríaca), o pensamento austríaco tem uma antiga linhagem que se inicia em Tomás de Aquino e floresce com os teólogos da escola de Salamanca (principalmente jesuítas mas também dominicanos) nos séculos XVI e XVII, e por meio deles chega a alguns autores franceses e irlandeses do século XVIII. 

Que os doutores de Salamanca tivessem um entendimento econômico muito avançado para sua época é um fato já bastante documentado; mas que exista essa linhagem entre eles e a escola austríaca, ou seja, que a influência deles em Carl Menger seja decisiva e mais importante que a dos clássicos escoceses e ingleses, é algo que, na minha opinião, ainda não foi devidamente provado. Mises (aluno de Bohm-Bawerk, que foi aluno de Menger), por exemplo, desconhecia essa linhagem, e via um contínuo entre a ciência que ele fazia e o que faziam os economistas clássicos a partir de Adam Smith.

Enfim, talvez o diálogo entre Sadowsky e Rothbard explique o apreço desse último pelo pensamento católico (apreço também visível no maior continuador de seu espírito, Hans-Hermann Hoppe, ateu; e ex-aluno de Habermas, just to keep things interesting), e isso explique por que outros católicos conservadores e tradicionalistas se juntaram a seu projeto político. Na falta de informações direto da fonte, essa tese me parece plausível. A tradição católica da lei e do direito natural, que não enxerga no Estado a origem da moral, é um possível ponto de partida para muitos católicos considerarem as afirmações liberais sobre economia e sociedade.

O fato, contudo, é que a maior parte do tradicionalismo católico jamais engoliu o libertarianismo e mesmo a defesa do livre mercado de maneira geral. Fieis à tradição de aliança entre Igreja e Estado absolutista, e desejosos de um mundo no qual outras religiões não possam ser propagadas e hereges sejam punidos pelo braço armado do Estado, e às vezes até mesmo de um forte controle estatal para erradicar o problema da usura, as ideias liberais causam-lhes tanta repulsa quanto alho a um vampiro. A economia, a sociedade e a teologia liberais são vistos como cabeças de uma só hidra, e o mundo não estará salvo enquanto esse monstro durar.

Muitos no Brasil foram influenciados por essa vertente católica do movimento libertário americano: eu mesmo me conto entre as pessoas que participam desse meio liberal e católico, tendo lido avidamente os autores americanos acima citados. A mesma simbiose entre libertarianismo austríaco e catolicismo conservador/tradicionalista é observada em participantes ativos desse pequeno mas crescente movimento: posso citar, por exemplo, o Prof. Ubiratan Iorio, Leandro Roque e Cristiano Chiocca.

Como é de se esperar, no tradicionalismo católico brasileiro também surgiu oposição ferrenha ao liberalismo em geral e à sua vertente econômica em particular. Um dos nomes dessa reação é Sidney Silveira, cujo popular blog Contra Impugnantes foi criado com o objetivo expresso de combater a “cultura liberal” e divulgar o pensamento de S. Tomás de Aquino. Refutações de Mises eram frequentes em seu site; hoje, ele tem se atido mais a S. Tomás que aos debates políticos e econômicos (ou melhor, filosóficos, pois é aí que ele procura enfrentar seus adversários); não imagino, contudo, que suas opiniões tenham mudado. 

Depois deste longo excurso introdutório, quero resgatar do esquecimento um desafio que ele lançou aos católicos liberais, ainda em 2008: seu quodlibet antiliberal. Irei responder aos dez pontos e mostrar os erros de seus posicionamentos e da crítica tradicionalista ao liberalismo em geral. Publicarei, a partir de amanhã (não sei se de uma vez ou em duas partes), minhas respostas, sempre tentando dar, ao leitor que vem de fora, uma ideia da relevância da questão e das possibilidades de posicionamento. Não usarei linguagem escolástica, pois considero um anacronismo injustificável, mas acredito que o fato de discutirmos objetiva e friamente dez afirmações já nos aproxima, em espírito, do que havia de melhor na universidade medieval.

Uma última clarificação antes de publicar as respostas: embora eu leia muito dos autores ditos austro-libertários, e use a análise austríaca sempre que penso em algum problema social, não sou um libertário. Isto é, não tenho a defesa da liberdade enquanto tal como um valor último, e não aceito a validade irrestrita do princípio de não-iniciação de agressão. Sou, isso sim, um católico que se pode dizer liberal: defendo a sociedade, a cultura e a economia liberais - e todas elas têm bases e implicações éticas - que Sidney abomina, bem como uma visão por vezes crítica a certos aspectos da história da Igreja e das doutrinas proclamadas ao longo dos séculos; por isso o debate é substancial. (Também vale notar que não defendo o indiferentismo religioso, o relativismo da Fé, leituras naturalistas da Bíblia, e outras coisas associadas ao liberalismo teológico.)

Segunda parte aqui.
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