sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

O Tradicionalismo Pós-Moderno



Se não existe verdade, se tudo são narrativas de diferentes pontos de vista, se a razão iluminista falhou, se não temos acesso à "coisa em si", se as pretensões de objetividade foram desconstruídas e revelaram-se vontades de poder, então... então todas as opiniões valem, sejamos livres, leves e soltos e vamos curtir o pluralismo, não é mesmo?

Não tão rápido, camarada! Esse mesmo discurso pode ser usado - já é! - por crenças muito distantes do "Paz e Amor". Pense o seguinte: se nenhuma crença é objetivamente válida ou verdadeira, então todas o são igualmente. E a minha religião ou ideologia do coração, que sob o sistema antigo, racionalista, era claramente inválida e furada, agora merece tanto respeito quanto a ciência mais bem estabelecida. Com um bônus: quem garante a verdade da sua crença secular e liberal são apenas os pensamentos falíveis e relativos da sua cabecinha; já a minha é garantida pela autoridade de Deus. Ganhei.

Chamou minha atenção o dia em que li um editorial abertamente, orgulhosamente pós-moderno na Al Jazeera (sim, sim; a Al Jazeera não é uma porta-voz de movimentos fundamentalistas islâmicos. Mas ela os trata, e a outros "pontos questionáveis" do mundo árabe, com luvas de pelica). Pensando em escrever este texto, fui lá procurar o editorial de meses atrás. Nem precisei. O primeiro artigo de opinião que encontrei era exatamente a mesma coisa. Vejam lá: "Who is a Muslim?", de Hamid Dabashi, professor de Estudos Iranianos e Literatura Comparada (indicador infalível) em Columbia.

O artigo (na verdade a introdução a um livro a ser publicado) prima por joias pós-modernas como esta:

Imagining ourselves in a post-Western world requires the dismantling of the regimes of knowledge the fiction of "the West" has historically generated. In the Second Chapter, "Breaking the Binary", I will explore why and how is it that a post-Western regime of knowledge is necessary and in fact the elements of which are already evident. The habitual binaries between "Islam and the West", between "religion and secularism", need to be conceptually discarded. These binaries have concealed much about Muslim worlds rather than revealing anything about them. These binaries have been imposed by the power of the regimes of knowledge production that take "the West" as an ontological a priori and narrate the rest of humanity in terms conducive to that primacy.
Narrativas são produtos de vontades de poder humanas. Nenhuma é mais válida do que as outras (a não ser a Ocidental, que é menos válida do que todas). Fiquem vocês com o ecoveganismo, que eu fico com as profecias comprovadas do Corão. Que venham os véus e a crença nos djinns! Sob o regime ocidental, colonialista e anglo-americano da razão e da ciência, a coisa ia mal para as pretensões de verdade do Islã. Já em meio ao discurso pós-moderno ele se sente em casa, ganhando até mesmo ares de justiça social.

Não vou bater em cachorro manso. Se eu vivesse no Londonistão ou em Islamsterdã talvez fosse relevante, mas aqui no Brasil a comunidade muçulmana é pequena, amistosa e tolerante. Quero falar das loucas da minha própria casa, a Igreja Católica. Pois há certos tipos de Catolicismo que, embora façam careta e finjam não gostar, acolhem de muito bom grado o discurso pós-moderno quando ele lhe é útil. A realidade é incognoscível e ininteligível; estamos perdidos e sem guia em meio ao caos. Felizmente, Deus mandou para nós um guia infalível, uma rocha em meio à tempestade, a quem submeteremos nosso intelecto sem mais perguntas. É claro que eu não estou falando de Jesus Cristo!

O católico adere ao pós-modernismo, ainda que não o perceba, quando recorre à infalibilidade da Igreja (em geral, dos papas) como justificativa última de sua doutrina. A Bíblia? Só a temos graças ao papa, claro. Tudo bem que o cânone só foi definido oficialmente no século XVI, e que pequenas diferenças ainda existam entre latinos e gregos (e que, mesmo com essas diferenças, formaram uma só Igreja visível até o século XI), e ainda mais com outros grupos apostólicos (com os quais fomos uma Igreja só até o século V).

Ou então dizem que é impossível interpretar a Bíblia por conta própria, que precisamos da autoridade da Igreja para fazê-lo. Ora, o que a Igreja preserva para nós são as interpretações bíblicas de diversos autores ao longo da história. Não há tal coisa como um "guia dos católicos sobre como ler a Bíblia verso por verso".   Primeiro aceita-se o papa, depois pode-se entender a Bíblia ou as palavras de Cristo, todas elas indecifráveis ao leitor comum. A prova disso? Ora, é o que a Bíblia diz em Mateus 16...

Sem o papa, nunca teríamos certeza doutrinária; ficaríamos navegando perdidos num mar de opiniões, sem uma rocha para se ancorar nossa certeza absoluta e descansar em paz, seguros de que possuímos a verdade. Mas e se mesmo entre papas ao longo da história não houver consenso perfeito?

Católico conservador, o papa não tem uma linha direta com Deus que lhe sussurra dogmas! Todos os papas, para chegar a decisões, estudam, meditam, pesam argumentos como qualquer pessoa. Ocorre muitas vezes de um papa discordar do que pensaram outros papas do passado. É dificílimo apontar com alguma certeza sobre quais pontos da doutrina pesa ou não pesa a infalibilidade papal, mesmo porque o ato de fazer essa distinção não é infalível. Coisas outrora tidas como infalíveis hoje são consideradas falsas. O maior exemplo que me vem à mente é a usura, outrora repetida e solenemente condenada, e hoje em dia permitida - uma mudança lenta e, infelizmente, bem pouco transparente. A opinião da hierarquia sobre a liberdade religiosa é outro bom exemplo.

Dessa constatação, duas correntes igualmente pós-modernas se formaram: o daqueles que rejeitam o que os papas recentes disseram para manter o que foi dito por papas mais antigos; e os que rejeitam o que os papas antigos disseram (ou os reinterpretam até que eles queiram dizer o oposto do que queriam) para manter tudo o que os recentes dizem. "É o papa, temos de aceitar, sob pena de pecado mortal!" Que um ato do intelecto de aderir ou não a uma opinião seja visto como passível de pecado já mostra a confusão de fundo: a confusão entre intelecto - faculdade cognitiva - e vontade - faculdade volitiva.

O bispo de Roma sempre teve, desde os primeiros séculos da Igreja, o papel de um árbitro de último recurso; e se bem me lembro Roma foi a única sé a nunca cair em heresia. Talvez não fosse o superbispo com autoridade absoluta e imediata sobre tudo o que acontece na Igreja no mundo inteiro, como é mais ou menos o caso hoje, mas havia uma primazia - não só honorífica, mas de autoridade doutrinal - relativamente reconhecida por bispos de todo o mundo. Os desenvolvimentos na relação com as Igrejas orientais são o que há, na minha opinião, de mais interessante para quem sabe se chegar a um equilíbrio mais justo do verdadeiro papel do bispo de Roma; e que provavelmente será algum meio do caminho entre o que afirmam os ultramontanistas e os ortodoxos orientais.

O papa nunca foi o critério de se ser ou não católico. E não era o filtro pelo qual os cristãos olhavam a realidade. Se o transformamos no critério último, na autoridade divina manifesta, caímos no fideísmo. Pois qual o motivo de aceitá-lo desta forma? A própria autoridade dele em afirmá-lo? No fundo, resta apenas o ato da vontade. Nossa mente é incapaz de conhecer a realidade; por isso, vamos escolher nosso representante divino favorito para arcar com nossa insegurança. Nossa consciência e nossa vida pagarão o preço. O papado se transforma, para esses católicos - muitas vezes (mas nem sempre) à revelia do que querem os papas -, numa espécie de Fidel Castro da alma: "Dar-te-ei segurança e paz de espírito. Peço apenas que abras mão de pensar; de usar sua (nefasta) faculdade crítica."

O mesmo problema se dá quando nosso critério não é o papa mas "a Igreja" ou "os Santos Padres", como fazem muitos ortodoxos. Pois não há essa entidade impessoal e abstrata, "a Igreja", que emite doutrinas e ensinamentos vindos do céu. Há pessoas concretas que formam a Igreja e que escreveram e disseram muitas coisas ao longo dos séculos. Em pouquíssimas delas há um consenso claro, mesmo entre os santos canonizados. É mérito dos latinos ter percebido isso já há quase mil anos, por exemplo, quando Abelardo escreveu seu Sic et Non. O intuito era que todas as aparentes contradições entre os Santos Padres fossem perfeitamente conciliáveis, mas não foi o que a história mostrou. Hoje em dia, então, quando nosso acervo de Santos Padres é muito maior do que o disponível na Europa do século XII, a coisa ficou ainda mais improvável. É uma pena que, à crença ingênua em um "consenso dos Padres", tenha-se substituído, gradativamente, a adesão acrítica ao juízo de um santo padre.

A lição disso tudo? Mesmo com uma religião hierárquica, a certeza absoluta nos escapa. Sua mente, sim, seu intelecto pessoal, sua razão individual; continua sendo sua única ferramenta para pensar, conhecer e tomar as decisões que lhe cabem, mesmo no campo espiritual. É possível fingir, talvez com alguma dose de auto-engano, que essa responsabilidade pessoal possa ser delegada a um terceiro. Ao fazê-lo, você perde a própria realidade, e passa a viver no sonho pós-moderno (que não é nada moderno - existe desde que um certo casal foi expulso de um Jardim): o sonho de que desejos humanos determinam a realidade; seus companheiros são Derrida e Bin Laden. Hora de acordar!

domingo, 16 de dezembro de 2012

Ad Hominem Entrevista: Rodrigo Gurgel

Prêmios literários no Brasil obedecem a uma curiosa regra: existem para confirmar reputações tidas e havidas como indiscutíveis ou alavancar reputações futuramente tidas e havidas como indiscutíveis. O que menos se espera de um jurado, aparentemente, é que julgue e premeie obras literárias de fato relevantes. E se a literatura brasileira “é uma das formas mais eficazes do tédio”, da crítica literária brasileira não se poderia mesmo esperar outra coisa que não enfado e subserviência.


Ocorre que, de tempos em tempos, aparece alguma figura rigorosamente sensata que, de tão deslocada no cenário nacional acostumado a pantomimas e salamaleques, passa a impressão de quixotesca ou, como se costuma dizer nesses casos, polemista.


É o caso de Rodrigo Gurgel, o famigerado Jurado C, na última edição do nunca assaz celebrado Prêmio Jabuti. Desde o desaparecimento do curitibano Wilson Martins, não se tinha notícia de crítico que julgasse obras literárias com os dois únicos ou principais critérios com que se espera um crítico julgue uma obra e, por conseguinte, seu criador: inteligência e honestidade inegociável.

Gurgel acaba de se tornar figura non grata entre os escritores e respectivos editores que preferem a adulação ao julgamento; o compadrio ao destemor; a imitação à literatura. 

E é com tal figura a nós gratíssima que achamos por bem começar o Ad Hominem Entrevista.

***

Você provocou um pequeno rebuliço nos meios editorial e literário brasileiros apenas por julgar um livro a partir do que considerou seus deméritos intrínsecos, e não pelo nome do autor. Qual a sua avaliação final do incidente? O que lhe diz sobre as condições da crítica literária hoje no Brasil?


Como já disse em meu blog, a avaliação do incidente pode ser resumida no pensamento de Samuel Johnson: “É difícil contentar aqueles que desconhecem o que exigem ou aqueles que exigem propositalmente o que julgam impossível obter”. No que se refere à crítica literária, em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo, o professor de literatura da PUC-RJ, Karl Erik Schøllhammer, questionado pelo jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa afinidade, essa conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”. Quando li essas palavras, fiquei em estado de júbilo: alguém pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte dos nossos críticos esconde sua opinião nos jargões acadêmicos exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso hermético, ficam naquilo que minha avó chamava de “conversa para boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Por falar em julgar uma obra pelo que lhe é intrínseco... O seu livro, Muita Retórica Pouca Literatura (Vide, 2012), adota um procedimento similar aos do new criticism: comentar os textos lidando com passagens específicas, sem se afastar da materialidade da obra para incorrer em afirmações muito genéricas. É de se supor que considere esse um procedimento útil aos nossos meios jornalístico e acadêmico. Ou não? E por quê?


Utilizo essa forma de analisar o texto por um motivo didático e não por ser filiado ao new criticism. Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás, extremamente honroso, pois elabora o diálogo que sempre deve haver entre a obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e deve ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o depauperamento da cultura, da própria civilização. 

Qual é, na sua opinião, o papel da literatura na vida humana?

A literatura pode servir como bom passatempo. Pode também desempenhar o papel de força inspiradora – são inúmeros os casos de escritores que, antes de começar o exercício diário de escrita, leem uma ou duas páginas de autores geniais. Mas ela tem duas funções primordiais. A primeira é permitir ao leitor que ele se abra à variedade da experiência humana; ou seja, reconstituir, na imaginação, os conflitos humanos, como Olavo de Carvalho sempre repete. Poucas pessoas têm a oportunidade, em suas vidas, de experimentar, por exemplo, situações em que uma extrema coragem é exigida. Refiro-me àquele momento em que você se torna herói ou covarde. Em termos morais, em termos de aperfeiçoamento da personalidade, trata-se de uma situação fundamental, que testa os limites do ser humano. Pois bem, a literatura coloca nas mãos do leitor a chance de experimentar tal realidade, ainda que de forma, digamos, oblíqua ou indireta: basta ler “Lorde Jim”, de Joseph Conrad. A segunda função primordial é “ajudar o indivíduo a se confundir, em paz e na alegria, com a uniformidade do ser”. Essa ideia, defendida por Milan Kundera, agrada-me, pois é um aprofundamento do que costumamos chamar de leitura por prazer: na verdade, essa relação prazerosa com a literatura é apenas o sintoma de algo mais profundo: nossa reintegração no Ser.

A visão de mundo do crítico (sua religião ou ausência dela, bem como convicções morais e políticas) influi na atividade crítica de maneira geral? E no seu caso específico; se você visse a realidade de maneira diferente, sua opinião sobre obras literárias seria afetada?

Essa é uma pergunta que não pode ser respondida com um “sim” ou um “não”. O fato de eu ser católico impregna toda a minha vida, todo o meu ser. O crítico literário francês Patrick Kéchichian, convertido, creio, em 2009, afirma com sabedoria: “Católico não é um adjetivo, mas um substantivo. Não sou um crítico ou um escritor católico; sou crítico, escritor e católico”. Então, é evidente que a fé católica está comigo não só quando leio uma obra. No entanto, penso como Robert Louis Stevenson. Em um de seus ensaios, “The Morality of the Profession of Letters”, ele diz que, na verdade, quando se trata de literatura, todos, escritores e críticos, dispõem de uma só ferramenta: a empatia. Ele afirma que (traduzo sem ser literal) “quando um livro é concebido sob grande tensão, com um espírito que, graças a essa tensão, multiplicou seu poder, aqueceu e eletrificou, por meio do esforço, a sua obra, as condições do nosso ser se veem presas de uma iluminação tão vasta que, ainda que o conceito básico da história seja trivial ou vulgar, não pode deixar de surgir do livro algo belo e verdadeiro”. E concluía: “Da força nasce a doçura; mas algo ruim pobremente executado é algo ruim do princípio ao fim”. Esses trechos resumem a maneira como me aproximo de uma obra literária: disposto à empatia, ainda que o tema seja, digamos, anticristão; certo de que a beleza e a verdade vencem tudo, inclusive um tema eticamente duvidoso.


Você considera que a literatura brasileira tenha valor verdadeiramente universal, e que nossos escritores – os maiores, especialmente: Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Osman Lins – possam ser colocados, lado a lado, com os maiores ficcionistas do cânone literário?



Temos ótimos escritores, mas nenhum pode ficar, lado a lado, com Dante Alighieri, Tolstói, Dostoiévski, Henry James ou Joseph Conrad. Somos um país que ainda está engatinhando. Temos um Manuel Bandeira, cuja obra caminha, ombro a ombro, com a maioria dos poetas do século XX. E Machado de Assis, claro. Mas nenhum deles é um desses gênios cuja leitura é obrigatória a toda a humanidade. Um russo, por exemplo, pode passar a vida sem ler Machado, mas não sem ler Shakespeare. 


Hoje, muitos jovens no Brasil têm saltado a formação literária para ir direto ao estudo de outras áreas, como filosofia, ciência política e economia. A ignorância da literatura brasileira, em específico, excetuado um Machado ou um Bandeira, é até bem maior. O que você pensa a respeito?

Nosso sistema escolar é medíocre. Basta ver as listas de compra de livros de ficção para escolas públicas. Ali há autores contemporâneos brasileiros que, dentro de duas décadas, já estarão na lata de lixo da história literária. Outros demorarão um pouco mais... Na verdade, a escola se encarrega, hoje, de transformar os alunos em presas fáceis de quaisquer discursos, de qualquer besteira ou mentira lida ou ouvida na Internet, nos jornais, na tevê. O país está se desintegrando sob um populismo rasteiro. Os jovens não são treinados para serem mestres do seu próprio intelecto. Essa expressão, aliás, não é minha, mas da escritora Dorothy Sayers, que no ensaio “The Lost Tools of Learning” resumiu bem, creio que na década de 1940, o problema que só se agravou até hoje. A solução defendida por Sayers, ainda que radical, é a que recomendo a quem me pergunta como romper essa ordem na qual o cinismo marxista tornou-se hegemônico: devemos retornar ao Trivium. Qualquer outra saída será apenas um paliativo. 

O seu livro – assim como o que lhe seguirá – trata apenas de prosadores brasileiros. De um modo geral, o que você tem a dizer sobre a poesia brasileira?

Como leitor, digamos, profissional, dedico-me exclusivamente à prosa. Leio poesia, mas minha relação com esse gênero é essencialmente amorosa. Tenho alguns poetas que aprecio – e sempre retorno a eles. E, em suas obras, gosto às vezes de alguns poucos poemas. É o caso de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo. Dos brasileiros, só Bandeira tem meu amor irrestrito. 

Certa vez Olavo de Carvalho afirmou que Bruno Tolentino era o maior poeta em língua portuguesa desde Camões. Na sua opinião, qual o papel de Tolentino para essa nova geração de poetas brasileiros?

Sempre que penso no Tolentino lembro-me de meu professor de latim na PUC-SP, o brilhante padre Matheus Nogueira Garcez. Tínhamos duas aulas por semana com ele – e sempre éramos premiados com um dito irônico sobre os concretistas. Só percebi muitos anos depois como aqueles comentários tinham o efeito de um conforto moral, pois ali, no templo semioticista paulistano, em que pontificava, na pós-graduação, o próprio Haroldo de Campos, alguém tinha coragem de ir contra o pensamento hegemônico. Tolentino foi um dos que ousou apontar as deficiências do movimento e os males que sua hegemonia causou. Ao mesmo tempo, a poesia de Tolentino tem o mérito de recuperar à nossa imaginação a força, a energia das formas fixas. Temos, em língua portuguesa, uma versificação riquíssima – basta ler o Tratado de versificação, do Olavo Bilac –, mas que permanece, apesar dos esforços do Tolentino, esquecida. Como disse Manuel Bandeira, “precisamos urgentemente voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada [...]. O modernismo era suportável quando extravagância de alguns. Agora é a normalidade de toda a gente. Então depois que reinventaram a brasilidade, a coisa tornou-se uma praga. [...] Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos que vieram depois é que estão caceteando”. E continuam caceteando até hoje. 

A presente geração é marcada pelo advento da Internet. Uma das consequências dessa nova realidade é que as pessoas podem produzir literatura e publicá-la imediatamente, em sites e blogs, sem a mediação de editores e casas de publicação. Você vê esse cenário com bons olhos?

O cenário é irreversível. E permite, como a própria realidade, coisas boas e ruins. A “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset, a pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para ficar. O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império dos filisteus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio filisteísmo”. Por isso mesmo não podemos ficar em silêncio ou agir como vaquinhas de presépio. 

Desde o ponto de vista privilegiado de jurado de um grande prêmio literário, você diria que há boa literatura em nossa produção recente, ou tem razão de ser a não rara impressão de que o momento é de estagnação e mesmice?

Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos contemporâneos usando uma pinça. Posso dizer, utilizando-a de modo cirúrgico, que, na última década, começamos a sair do beco escuro controlado pelo eterno vanguardismo. Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea, relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer os departamentos de Letras das universidades e os críticos que só valorizam acrobacias linguísticas. Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo, que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados da doença à qual dei o nome de narratofobia. Há, no entanto, bons escritores, dispostos a contar boas histórias, corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com discursos politicamente corretos. E há outros, em menor número, que já percebem que boa literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.


Recentemente vieram à mídia dois casos ímpares para a cultura brasileira atual: o seu voto polêmico no prêmio Jabuti e o projeto da Vara Criminal de Joaçaba-SC, idealizado pelo juiz Márcio Bragaglia, que propõe a diminuição da pena dos detentos que lerem grandes obras da literatura universal. Ambos os casos nos proporcionaram ver expostas na grande mídia ideias até então confinadas ao “gueto conservador”. Tanto você quanto o juiz Márcio são admiradores confessos do pensamento de Olavo de Carvalho. Será que já podemos dizer que a “contrarrevolução cultural”, cujas bases o filósofo preparou, está começando a dar frutos?



As ideias de Olavo de Carvalho estão fadadas a produzir frutos – e bons frutos. Ninguém faz tudo que o Olavo já fez – e ainda vai fazer –, com a sinceridade de coração, com as intenções retas que o impulsionam, para ser tratado como a figueira estéril. Ao contrário. Estamos, assim, só no começo, nos primeiros gemidos de uma contrarrevolução cultural. É a primeira batida de coração de um feto que não será abortado.

Está chegando o Natal. Deixe-nos de presente a indicação de um bom livro que nos ajude a viver o espírito natalino.

“Sangue sábio”, de Flannery O’Connor, pode nos ajudar a compreender não apenas o mistério da Encarnação, mas, principalmente, o da Redenção. Ou seja, compreender o sentido da existência humana e o mistério da Graça, pois, para Flannery, e ela estava certa, “a Graça é o acontecimento perante o qual o homem entende o seu destino, o seu verdadeiro destino”.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Sobre as propostas de controle estatal da mídia

Respostas dadas por mim a um trabalho de graduação de um amigo que chegaram tarde demais e por isso não foram usadas. Para que não fiquem inúteis, publico-as aqui. Tema: controle estatal/social da mídia.



Você apoia a aprovação, no Brasil, de uma Lei de serviços audiovisuais, a exemplo do que ocorreu na Argentina ou de legislações europeias?

Sou radicalmente contra uma tal lei.

O caso da Argentina é paradigmático nesse sentido: o governo argentino vem cada vez mais aumentando seu poder e limitando a liberdade dos cidadãos e promovendo a desinformação intencional. Os órgãos estatísticos oficiais do governo estão tão corrompidos, publicando dados de inflação tão abaixo da real, que a revista The Economist, que publica semanalmente centenas de dados sobre quase todas as economias do mundo, viu-se obrigada a parar de publicar os dados oficiais da inflação argentina ("Don't lie to me, Argentina", fev/2012). Órgãos e pesquisadores independentes são alvo de perseguição constante e ameaça de processos judiciais.

Para conter a fuga de capitais, o governo tem imposto restrições e vigilância cerrada à compra de dólares (mesmo para fins de turismo) e se fechado cada vez mais à importação. Tentou-se até mesmo controlar a entrada de livros no país sob a justificativa inusitada de que era preciso averiguar a quantidade de chumbo na tinta da impressão; a repercussão internacional foi tão negativa que o governo logo voltou atrás; mas a atitude que subjaz a essa e a outras tantas medidas é claríssima.

Com relação à mídia, vale a mesma postura autoritária; é só ver a perseguição intensa que o governo tem feito ao Clarín, que já foi alvo de mais de 450 (!) ações judiciais e administrativas. Sem falar nas acusações mais pífias e estapafúrdias, como a de que os filhos adotivos dos donos do Clarín fossem órfãos de vítimas da ditadura, o que os obrigou a passar por um vergonhoso teste de DNA público - cujo resultado, claro, foi negativo.

O governo Kirchner, não obstante estar arruinando a economia nacional, quer também silenciar toda a oposição e controlar sozinho toda a informação do país. Um passo importante nesse projeto é exatamente a nova Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual, que vai finalmente permitir que o governo tome posse das propriedades do grupo Clarín, e que vai basicamente submeter todo o conteúdo veiculado no país a órgãos estatais ou paraestatais, que serão livres para usar critérios políticos para conceder licenças públicas de funcionamento (são 7 novos órgãos criados) e com recursos para produzir cada vez mais material estatal e obrigar que esse material seja veiculado. Promete-se, para o dia 07/12, o desmantelamento do Clarín; diversos editores e jornalistas no mundo inteiro condenam o ato.

Sob o pretexto demagógico de garantir a "pluralidade", pune-se os veículos mais bem-sucedidos e premia-se aqueles mais dispostos a fazer propaganda estatal; que também recebem, por sua vez, mais verbas do Estado via propaganda de estatais, como aliás já é prática comum no Brasil. Note-se que o argumento de promover a pluralidade é particularmente fraco nos dias de hoje, quando a revolução digital permitiu o aumento de veículos de comunicação online sem precedentes. Falando como alguém que defende posições extremamente minoritárias, não há a menor dúvida de que hoje em dia há muito mais espaço para que elas sejam veiculadas do que havia, digamos, na década de 90; e nada disso teve a ver com o Estado (que, aliás, já quer também regulamentar a internet...).

No mais, é bom que grupos que conseguem consistentemente apresentar à população programas e publicações que os consumidores queiram comprar cresçam e se tornem dominantes. Essa dominância, longe de constituir um impedimento à concorrência, é fruto da concorrência, e dura apenas enquanto a população continuar a patrocinar livremente a programação do grupo de mídia em questão. Nesse caso, ser grande é sinal de se servir bem aos consumidores. Foi assim que se deu a transição de dominância da Tupi para a Globo. E notem que a Globo, longe de poder sentar confortavelmente em sua liderança, como faz uma estatal ou monopolista (que recebe licença exclusiva do Estado), tem que ficar diariamente preocupada com o Ibope. Os espectadores não são domáveis; atrações outrora popularíssimas como o Fantástico passaram (ainda passa?) por imensas dificuldades. Estrelas como a Xuxa amargam em espaços cada vez menores, e mesmo novelas de escritores consagrados (como a Salve Jorge) podem ter desempenho ruim. A Folha e o Estado, assim como o muito maior New York Times, têm passado por maus lençóis com o advento da internet e com os jornais gratuitos; muitos jornais americanos já fecharam. A concorrência em criar valor para os consumidores nunca para. A dominação da Globo dura apenas enquanto ela conseguir produzir jornais, novelas e atrações melhores do que os produzidos por suas rivais (isto é, melhores na opinião dos espectadores); no fundo, ela é serva do desejo dos espectadores e não vice-versa.

Agora imagine uma sociedade em que toda geração de conteúdo tivesse que passar pelo crivo de funcionários públicos e "representantes de classe". Em que qualquer notícia ou opinião contrária aos desejos dos governantes nos deixasse a mercê de processos judiciais ou mesmo pressões informais (ligações de figurões para as redações, exigência de que se demita um jornalista, ameaça de não mais receber anúncios de estatais, etc.); em que qualquer grupo de mídia que queira crescer um pouco precise basicamente vender sua integridade e suas opiniões para o partido reinante. Infelizmente, a realidade brasileira já é um pouco assim; mas ficaria ainda pior se entrássemos na mesma onda da Argentina.

Felizmente, até hoje, a presidente Dilma, ao menos em seus discursos, tem se distanciado de propostas desse tipo. Mas outras figuras ligadas ao PT, gente de reputação ilibada e dotada das melhores intenções, como José Dirceu, exigem leis nesse sentido.


Uma lei dessas não seria interpretada como censura por parte dos grandes grupos midiáticos?

Censura é proibir um certo conteúdo de ser veiculado. Essa lei engloba e vai além da censura, ao não só potencialmente proibir conteúdos e negar licenças, como ao exigir veiculação de certos conteúdos (produzidos no país, por exemplo). Ela visa a estabelecer o controle estatal da mídia; o que incluirá, decerto, a censura indireta, que não é a proibição ex ante de certas teses, pois essa pegaria mal, mas a pressão e a punição de quem, sendo relativamente grande, publique algo que desagrade aos interesses do governo.


Como a sociedade civil e o governo poderiam responder a essas questões?

A "sociedade civil", isto é, cada indivíduo enquanto representante de seus próprios interesses, já responde a isso perfeitamente bem. Quem não gosta de uma programação, não a assiste; quem não gosta de uma publicação, não a lê. É por isso, por exemplo, que Rede Globo conseguiu preponderar sobre a outrora dominante Rede Tupi na década de 70. É por isso também que uma revista como a Veja tem tiragem de 1,2 milhões, e uma Carta Capital de 70.000; as pessoas escolhem aquilo que querem ler. O governo, é claro, nem sempre aprova essa escolha.

A única postura correta do governo nesse campo é o de não interferir de forma alguma. Deixe que os grupos de mídia compitam livremente. Quando alguma notícia ou acusação gravemente falsas forem feitas, o autor ou veiculador podem ser processados na justiça, e só.


Você entende que os grandes grupos de mídia têm uma postura parcial em suas coberturas políticas? Quais são as implicações desse comportamento? 

Não existe imparcialidade plena. A própria seleção do material a ser coberto já indica uma prioridade. Curiosamente, em grandes grupos de mídia há uma tendência maior a uma certa imparcialidade do que em pequenos, devido às dificuldades de se coordenar um grande número de pessoas, e ainda mais em mantê-las ideologicamente na mesma linha. Por isso um jornal com uma linha editorial "conservadora" como o Estadão acaba contratando jornalistas com visões de esquerda, formados por faculdades (como a ECA-USP) cujo currículo é solidamente de esquerda. Então temos, ao mesmo tempo, artigos de opinião com uma certa visão, e reportagens que partem de bases diferentes. A presença de editores e de toda a hierarquia da redação complicam ainda mais as coisas. Em pequenos jornais e sites, as equipes podem ser muito mais ideologicamente coesas.

Há méritos e deméritos em se ter uma publicação mais ou menos coesa ideologicamente. É, por acaso, um grande crime que uma revista como a Carta Capital publique apenas uma visão, e muito parcial, das coisas? Não; é natural, e preocupante seria se ela não tivesse o direito de publicar o que publica. O mesmo vale para todas as outras publicações.

As implicações para a sociedade são duas. Enquanto consumidores de serviços de mídia, os indivíduos usam seu discernimento para escolher aqueles veículos que mais lhes agradam. Enquanto produtores em potencial, vivem num sistema que permite que, se considerarem que há um ponto de vista que não está sendo contemplado e que tem potencial para contribuir de forma relevante no debate público, podem eles mesmos tomar a iniciativa de cobrir essa lacuna. Dou como exemplo veículos pequenos em que trabalham amigos meus: o site já citado Implicante (de viés anti-esquerdista), e, com posição socialista convicta, a revista Brasil Atual.

Por fim, é preciso lembrar que grupos de mídia estatal estão igualmente sujeitos a erros, parcialidades, manipulações e escândalos. Mesmo um grupo sério como a BBC (de um país em que se consegue muito mais separar serviço estatal de defesa dos interesses do partido) tem passado por escândalos e dificuldades: vide aqui e aqui. A diferença é que, enquanto um grupo privado depende de leitores ou espectadores (que por sua vez garantem que o valor da propaganda nesse veículo será alto) para se manter, um grupo estatal responde a interesses de gestores descolados de qualquer feedback da sociedade; e portanto a adaptação e as mudanças são muito mais lentas, difíceis e custosas.


Você acredita que os governos petistas realizaram mudanças no quadro das comunicações no Brasil?

Não sei dizer. Sei que o PT é famoso pela pressão informal a órgãos de imprensa, e tem se aliado com veículos como Carta Capital e Record (embora esse tipo de atitude não seja monopólio do PT; José Serra também é notório por coagir órgãos de imprensa). Isso não é nada positivo. Na verdade, a única mudança positiva que consigo conceber, no que diz respeito à atuação do governo, é que ele diminua seu poder e sua influência nesse setor; e está bem claro que o PT não fez isso.


Qual a sua opinião a respeito da cobertura dos grandes meios a respeito dos movimentos sociais?

Um movimento social é um grupo de pessoas unidas por uma causa e cujos representantes, por algum motivo, gozam de algum tipo de legitimidade política aos olhos da população. A atividade deles, em geral, se limita a pressionar o Estado para realizar alguma ação que os beneficiará. Infelizmente, nosso sistema político é tal que esse tipo de estratégia funciona. E quanto mais funciona, mais os movimentos tendem a se corromper e buscar usar o sistema (o melhor exemplo são os muitos casos de beneficiários do MST que vendiam suas terras e voltavam ao movimento).

A forma de atuar dos movimentos sociais é, em geral, nociva à sociedade, pois substitui os mecanismos voluntários do mercado pelo uso da força e da coerção para sanar demandas, prerrogativas do Estado. Sem falar que a escolha de quais movimentos sociais importam ou não importam é ela própria uma escolha enviesada, que revela juízos de valor por parte dos governantes (a diferença entre essa parcialidade dos funcionários públicos e a parcialidade dos jornalistas na seleção de matérias é que a dos funcionários públicos gerará leis e políticas que afetarão a toda a sociedade indiscriminadamente, enquanto a dos jornalistas afeta apenas seus leitores e espectadores, que podem deixar de sê-lo se julgarem que a qualidade do que assistem não corresponde à suas expectativas). Quem disse que o MST ou o MTST têm reivindicações mais justas que o MVB (Movimento Viva Brasil - pelo direito de se ter e portar armas de fogo no Brasil) ou do que o Homeschooling Brasil - pelo direito ao ensino domiciliar?

Quem escolherá quais representantes de movimento devem ou não ter voz e poder político? No final das contas, toda a vida nacional se resumirá a negociações entre líderes de grupos de interesses, sufocando o espaço das escolhas pessoais e da livre interação e cooperação. Líder de movimento social não representa, de forma alguma, "a sociedade". Representa em geral um grupo de pessoas que quer conseguir algo via Estado (o que sempre implica que algum outro grupo demográfico, organizado ou não em "movimento social", perderá algo via Estado) e nada mais do que isso. Toda a lógica dos movimentos sociais, dos sindicatos e das organizações de classe, que buscam agregar indivíduos em classes e grupos de interesse num eterno cabo-de-guerra, minando - e às vezes proibindo - a possibilidade de cada um de atuar fora do grupo, é distorcida e deletéria para a sociedade.

Assim, parece-me exagerada a importância que a grande mídia dá aos movimentos sociais, especialmente aos de discurso marxista. O cúmulo disso seria se o Estado desse ou subsidiasse a eles canais de comunicação, para que realizassem e difundissem suas pregações, seus discursos e suas propagandas com recursos extraídos à força do resto da população, mais interessada em assistir e ler revistas, jornais e canais de TV que, por essas mesmas leis, estariam impossibilitados de crescer.

O interesse da população por eles parece que vem caindo, e por isso aparecem menos no noticiário, mas ainda assim contam com uma exposição muito maior do que qualquer mérito que tenham; fora que contam com a permissão tácita para violar a lei sem consequências. Quem sabe essa perda de interesse mude um pouco seu foco de atuação: menos gasto de recursos em influenciar a opinião pública e conseguir passar leis de seu interesse, e mais iniciativas voluntárias de realizar seus propósitos dentro da ordem social já estabelecida, usando financiamento privado.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Sobre o Surto Moralista que Ameaça nosso Humor

Uma piada pode ser brutalmente ofensiva; pode desancar gente que não o merece; pode afirmar os preconceitos mais nefastos, ser moralmente podre, escrota mesmo. E, ainda assim, ser engraçada.

Moralidade e graça são coisas muito diferentes. Nós, que vivemos em uma sociedade crescentemente moralista, acabamos confundindo as coisas. Nosso moralismo é diferente do moralismo da primeira metade do século passado. Naquela época, o tabu era o sexo; comediantes profissionais contavam uns aos outros, longe do público, as piadas mais sujas como The Aristocrats. Eu não sei o que os humoristas atuais cochicham uns para os outros nos camarins, mas observo como nós, não-humoristas, contamos baixinho, envergonhados e com um milhão de ressalvas piadas sobre raça, estupro ou deficiência. O novo moralismo apareceu muito rápido; no início dos anos 90, tanto aqui como nos EUA, coisas impensáveis para nossa década. Vide a piada mais engraçada do Debi & Loide.



Parte da graça está estupidez, ao mesmo tempo demencial e perversa, do Loide; mas a outra parte está na situação simplesmente patética do menininho cego com seu canarinho morto; pretty bird, pretty bird (e se não fosse para rirmos disso, a cena não voltaria para o menino; ficaria só na conversa do Debi e Loide). Não tenho talento para analisar a graça, mas de alguma maneira ver claramente o estado de indefensibilidade e autoilusão de uma pessoa é engraçado.

Minha principal ferramenta de análise neste post, falha como ela é, é a análise da minha própria subjetividade, e o único teste possível é saber se essa análise "soa" verdadeira aos leitores; isto é, se ela bate com as percepções e análises de cada um. Alternativamente, usarei também a definição sucinta e com alguma base de pesquisa proposta por Peter McGraw: o humor ocorre quando uma mesma situação cumpre dois critérios simultaneamente: 1) é uma situação de violação - isto é, trata-se de algo que viole algum aspecto de como o mundo deveria ser; 2) essa situação é benigna, ou seja, não apresenta uma ameaça ao espectador. Essa definição bate com a minha experiência subjetiva, então parece ser boa; mas ainda resta saber se ela funciona para toda e qualquer instância de humor. A formulação não é muito distante da tese da Ayn Rand sobre o humor: o humor é a negação da relevância ou da importância metafísica de algo feito por meio de uma incongruência ou contradição, isto é, violando a expectativa do ouvinte sobre a realidade.

Tendo esses guias básicos em mente, olho para a reação crescente ao humor brasileiro, que tem longa tradição de não se importar muito para os padrões vigentes de moralidade. Citei acima o Debi & Loide, e para o Brasil poderia citar Os Trapalhões. Digam-me se este quadro seria possível hoje em dia:


Dois negos pobres e malandros enchendo a lata, chega o garçom, preocupado com uma pindura, e os chama de "Engenheiros, bacharéis...". Todo o personagem Mussum brincava com esses traços comuns da percepção social do negro, como aliás também era o caso de Grande Otelo, e dos sambas humorísticos: nega do cabelo duro... Humoristas brancos como Mazzaropi brincavam com a imagem do caipira.

O estupro também é tema antigo no repertório humorístico nacional, incorporado até mesmo em ditado popular: "se o estupro é iminente, relaxa e aproveita". A brincadeira aí é com o suposto desejo devasso de toda mulher.

Mariana Hamellini diz, lá pelos 3:20 min, que a graça em se ver uma pessoa cair na calçada está no fato de haver, ali, uma quebra. Mas ela mesma mina um pouco essa explicação: "você ri dela porque ela não morreu; e porque não é você."

"Quem é filho da puta? Eu? Não, vocês." - 7:25 - Danilo Gentilli falando da piada da Preta Gil, saída fácil pros comediantes.

E quando chega o acadêmico de Humanas, lá vem o desinteresse - Idelber Avelar - 9:10

piadas de preconceito - mais fáceis? Depende do preconceito, depende da obviedade e do nível de consciência que as pessoas têm do estereótipo.

piada de gordo - longa tradição

15:01 - piada que é contra "a autoridade" é melhor?

"toda piada tem um alvo" - Gentilli

piada com homem - a piada do "aperta a teta" era com o homem

22:20 - a piada, fora do contexto de piada ("mulher feia deveria ser estuprada"), se dita como um expressão séria, seria horrível. Mas como piada não é. A piada pega um elemento de uma realidade complexa e se foca nele: a mulher feia que, por ficar privada de sexo por muito tempo, fica desesperada (e aqui não importa a realidade, mas a percepção acerca da realidade. Freira é recalcada e desejosa de sexo? Provavelmente não; mas tem muita piada nesse sentido). E, nesse contexto, o estuprador lhe faz um favor.

23:00 - honestidade: riu com a piada, mas a evitaria para evitar a polêmica ou mesmo por considerá-la imoral.

Cop-out: condenar a piada por não ser boa como humor; mas fica óbvio que o problema do cara não é esse: o problema é o tema e o caráter "antirrevolucionário", "não transformadora" da piada.

28:43 - bela saída. Gentilli sabe ir além e brincar com a coisa.

29:45 - o guarda não é massacrado pela opinião "transformadora" de hoje em dia?? Esse próprio discurso pode ser tão ofensivo quanto os outros.

A indignação vem do quê?

Hábito muito ruim de documentários politizados: colocar respostas logo em seguida à fala daqueles de quem se discorda.

"Não chamar o negro de macaco é decência básica humana" - Idelber, 36:40. nem toda piada é decente.

Justiça traz problemas de limite à liberdade legal, mas não é o problema de base. O problema é a atitude básica da indignação moral constante, que reflete uma mudança no padrão de conduta: o importante não é ser uma pessoa boa, mas ter as opiniões corretas sobre uma série de assuntos. Isso leva, por um lado, ao à patrulha moralista (sobre tudo de si mesmo: "não posso rir disso; estarei traindo a causa; tenho o dever de protestar publicamente") que, por sua vez, leva à mais preguiçosa autossatisfação moral ("estou fazendo a minha parte, sou bom"). Como eu vejo as coisas, todas as lutas e todas as causas. Quanto mais moralista a pessoa, menos capaz de humor ela é; e portanto menos capaz de olhar para os próprios defeitos; para seus reais defeitos, e não para aquilo que pega bem quando se faz piada a respeito (aliás, esse tema rende: como vivemos numa sociedade de raiz cristã, a postura socialmente aceitável ainda é a da humildade: "sou um homem cheio de defeitos" - só que essa ostentação da humildade acaba virando uma mostra de orgulho ainda maior do que a afirmação acrítica da própria perfeição moral). Pega muito bem dizer que a melhor piada é aquela que critica o próprio piadista, mas será que é verdade? Ou é apenas uma resposta confortável para se fugir do desafio do humor? Se o humorista for negro, ele pode/deve contar piada de preto? E não é possível que uma piada sobre si mesmo também seja imoral (ao desancar alguma característica boa do humorista)?

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Não Somos Anões

É a segunda vez que João Mellão Neto traz o conservadorismo para o debate na grande imprensa (“Eu sou um conservador“, Estado de S. Paulo, 16/11/12). E acho que ele deve ser aplaudido por fazê-lo: novas posições, autores e referências são sempre bons em nossa cultura política cada vez mais carente de ideias. Neste segundo artigo fica explícita a influência, que já se fazia sentir no anterior, de Russell Kirk e Edmund Burke (se ele reproduz bem o pensamento desses dois autores é algo que não posso julgar).

Voltam à baila os pontos principais que ele frisara anteriormente: que os arranjos institucionais que chegaram a nós passaram por longos testes e portanto devem ser os melhores, e que nós, modernos, em relação a nossos antepassados, debruçamo-nos em ombros de gigantes. Isso não quer dizer ser avesso a toda e qualquer mudança, e sim que as mudanças propostas serão sempre graduais, aprimoramentos marginais ao invés de reformulações totais.

Além disso, há dois elementos novos. O primeiro é o rechaço ao relativismo moral; e o segundo é o valor dado ao meio-ambiente e à natureza. E quero me dedicar aqui ao primeiro desses, que ilustrará bem o que vejo como a fraqueza no cerne do pensamento conservador defendido por Mellão Neto. Diz ele:

“Voltando às principais teses conservadoras, um conservador de verdade não tolera o relativismo moral. Ainda no século passado, terríveis consequências sofreram os povos onde ocorreu um colapso da ordem moral, onde os cidadãos transigiram quanto a isso. A moral há de ser uma só, seja ela fruto de revelação divina ou tenha sido forjada pela convenção humana. Ela é o resultado de um arranjo costumeiro, cuja origem data de tempos imemoriais. E é ela que nos preserva do abismo.”

A princípio parece apenas uma defesa de uma moral/ética objetiva, ou seja, não dependente de caprichos ou adesões irracionais; mas leiam com mais cuidado. Ele diz que a moral há de ser uma só, e não que ela seja uma só. A confirmação disso é que ela pode ter origens díspares: revelação divina, convenção, arranjo costumeiro (o que está ausente: realidade, razão; tudo o que seja universalmente e objetivamente acessível a todos). Ao dizer isso, não se está rejeitando o relativismo moral; se está rejeitando apenas a variabilidade dos juízos morais, o que é muito diferente. Não se rejeita que a origem da moral esteja em alguma instância arbitrária (no capricho ou no salto de fé – que pode ser qualquer fé); rejeita-se, isso sim, que, existindo um código moral, outros existam paralelamente a ele. Isso é a ruína, isso nos joga no caos e no abismo. “A moral há de ser uma só”; não importa que seja verdadeira –cabe falar de verdade no âmbito das convenções? – e sim que seja a única. Nessa visão, o único ato verdadeiramente proscrito é propor um critério ou um valor moral diferente do dominante. Se a sociedade for escravocrata, tudo está bem; o problema nesse caso seriam os abolicionistas, ao introduzir princípios de desordem e desunião ao consenso moral outrora coeso.

Viver em um mundo escravocrata onde os homens podiam bater nas mulheres impunemente ou em um mundo em que todos tenham seus direitos individuais respeitados? Esse é o tipo de decisão que deixaremos nas mãos dos antepassados?

Nos ombros de gigantes?

O problema do conservadorismo expresso por Mellão Neto (trata-se ou não de leitura fiel de Kirk?) é que, no final das contas, ele redunda em nada mais do que uma recusa a se pensar racional (e, portanto, sistematicamente) sobre as questões da vida e da sociedade: o que nossos antepassados fizeram já deve ser o melhor; e, demais, como saber? Somos só anões em ombros de gigantes…De onde tal complexo de inferioridade? De onde se tirou que nossos antepassados sabiam mais do que nós? Tempo não é critério. A medicina tradicional do Ocidente durou milênios; e mesmo assim estava quase que completamente errada e foi completamente solapada pela medicina moderna. O mesmo vale para a física de Newton, que enterrou de uma vez por todas as doutrinas físicas aristotélicas (o que não tira, obviamente, o valor delas para o progresso do conhecimento humano). Nos campos moral e político, há progressos inegáveis também: a instauração de direitos individuais, e a descoberta de como funciona o mercado (que possibilitou diversas medidas políticas acertadas ao invés de completamente erradas), o fim da escravidão, o fim da condenação à morte por homossexualidade, o consenso hoje incontestável da igualdade dos sexos (e, portanto, do fim de práticastradicionais como a punição física da esposa), a condenação moral e proscrição da tortura, a conquista da liberdade religiosa. Como alguém pode afirmar que não houve “progresso algum”?

O que não quer dizer que a história seja feita só de progressos; meu ponto é que os progressos e retrocessos, especialmente em matéria política, são cognoscíveis e factíveis; e que portanto não devemos abrir mão inclusive de mudar radicalmente de rumo se algo que foi legado pela tradição vai demasiadamente mal.

Como uma ressalva quanto aos meios, como um alerta para que não se destrua as instituições vigentes levianamente, ele é válido: pois sabemos que o colapso das instituições básicas é terreno fértil para todo tipo de monstruosidade. Então, na medida em que, imperfeitas como sejam, as instituições garantam algum mínimo respeito a esses direitos, é melhor preservá-las. Se elas se convertem, contudo, em violadoras sistemáticas de nossos direitos (a tirania), daí já passa a ser louvável tentar derrubá-las mesmo. A mera antiguidade não prova nada. Os antigos não foram gigantes, e nem nós somos anões. Ouso dizer que é graças ao fato de eles não terem sido plenamente conservadores, mas de terem tido a coragem de inovar e romper consensos estabelecidos, que hoje gozamos dos progressos por eles alcançados e podemos mirar mais longe.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

O que é Casamento Gay?

A pergunta é sincera, sem ironias. Quando se discute o casamento homossexual, do que é que se está falando? Quero identificar precisamente qual a finalidade da luta pelo casamento gay.

Uma resposta é que a finalidade é conquistar os direitos legais que são dados a parceiros heterossexuais e dos quais os parceiros homossexuais são privados (direito obrigatório a 50% da herança, poder adotar, poder assistir a cirurgia, algum benefício fiscal, etc.). A discussão muitas vezes segue por esse caminho. Diz um homossexual: "não é justo que eu não tenha com meu parceiro a quem amo os mesmos direitos de um casal heterossexual". E até aí, perfeito; quero dizer, entende-se perfeitamente pelo que é a luta. Há certas coisas da vida prática a que os casais homossexuais não têm acesso e poderiam ter.

Mas é só isso? E se o governo estendesse todas essas garantias legais às uniões homossexuais, mas não as registrasse como "casamento"? Se desse-lhes o nome de "união civil" (ou então "cazamento", "matrimúnio", que tal?); estaria finda a luta pelo reconhecimento formal? Aí cada indivíduo responde por si, mas parece-me que, para muitos, a luta pela aceitação legal da união homossexual vai além da extensão de direitos práticos; é uma luta para que essa união seja identificada e fique plenamente indistinta do casamento heterossexual.

Mas no que consiste essa igualdade que vai além dos direitos práticos? Em um nome. Um nome outorgado pelo Estado. O Estado "considerará" essas uniões como indistintas, assim como não discrimina os casamentos de casais loiros e morenos. Mas ao predicar um ato ao Estado, especialmente um ato mental ("considerar"), fazemos uso de uma ficção. O Estado não pensa e nem quer nada. Ele é uma ficção que criamos para diversos propósitos práticos, mas sabemos que ele não existe, metafisicamente falando. O que existe são as pessoas dos funcionários públicos, e algumas de suas ações, que se pautam por certos critérios formais, são interpretadas pelos membros da sociedade como sendo ações do Estado (se um funcionário público grita com a esposa, isso não é um ato do Estado). O Estado não existe se não nas mentes dos indivíduos, e ele certamente não é identificável a nenhum indivíduo particularmente e nem a todos eles. Então, o que importa se o Estado "considera" X ou Y? Para além dos direitos práticos, que realmente mudam alguma coisa na vida humana, o resto é fumaça e hipostasiada, ou seja, um ente puramente relacional e mental ao qual se atribui uma substancialidade metafisica.

A opinião do Estado não é a verdade objetiva, e nem chega a ser uma opinião, posto que não há mente por trás dele; são palavras escritas em algum papel e só. E por isso acho curiosa a luta pela definição estatal que se dá a algo. O Estado é só palavras e interpretações dadas por indivíduos em um grande acordo implícito; isso importa exclusivamente por causa das implicações legais práticas que essas palavras podem ter; dada uma formulação, posso ir para a cadeia se fizer X. Mas se as implicações legais práticas são as mesmas, de que importam as palavras usadas? Que importa se o Estado "chamar" à relação de um cachorro e seu dono de "zooposse" e der outro nome à relação entre o gato e seu dono? "Ah não! Zooposse para mim é apenas a relação com o cachorro, jamais com um gato. Claro, um homem pode ser dono de um gato e brincar com ele, mas não se tem uma 'zooposse', e sim outra coisa; no máximo uma 'posse de ser vivente' ". Beira ao absurdo. Nomes não são realidades.

Se a luta fosse pelo casamento na Igreja católica, daí a questão seria bem diferente. Pois a Igreja afirma algumas coisas concretas sobre o matrimônio: diz que ele é um Sacramento. Ou seja, pela visão católica, Deus usa essa união entre homem e mulher, e os atos decorrentes dessa união, como um canal especial de sua graça para ajudar na santificação dos envolvidos nela e dos filhos dela nascidos. Sendo assim, é relevante (para quem acredita na doutrina católica), saber o que é e o que não é matrimônio. No Estado nada disso está em jogo; tirando a parte dos privilégios legais dos casados em relação a seus cônjuges, é apenas um nome e nada mais.

Além disso, Deus é, verdadeiramente, uma Pessoa. Ele não tem opiniões (Sua mente tem a relação inversa da nossa com a realidade objetiva; a realidade decorre de sua mente, e não vice-versa), mas é um ser pessoal ao qual cabe falar que afirma ou nega, quer ou não quer, faz ou não faz, etc. Quando falamos do Estado nesses termos, estamos apenas usando uma metáfora. Não existe um "alguém" por trás dele; muito menos um "alguém" cuja opinião favorável carregue consigo a aura de juízo da realidade objetiva.

Assim, não haveria motivo direto para se lutar por uma "aceitação" estatal. A não ser que o objetivo não seja essa aceitação em si (que, como tentei argumentar, é uma ilusão), mas algum efeito que se espera que decorra dela. Um efeito possível é: a maioria das pessoas hipostasia o Estado, e o considera sim como uma pessoa mais importante, quiçá uma voz de uma realidade superior que emite verdades mais sólidas ou absolutas. E portanto, se o Estado "considerar" indistintamente as uniões hetero e homo como casamentos, isso talvez mude a maneira pela qual as pessoas consideram essas uniões. E então seria a motivação da luta pelo casamento gay (supondo que exista um número considerável de militantes que queira, além da igualdade de direitos práticos, também a identidade dos nomes concedidos às uniões; coisa de que não estou certo) uma luta, no fundo, por um meio de mudar a opinião das pessoas via um atalho político?

Outra possibilidade é que, como costuma acontecer, o Estado ainda seja visto em uma chave mais ou menos divina, e não como a ficção humana que ele é. Assim, uma "aceitação" do Estado é vista como algo que dá, por si só, legitimidade a uma prática. Se esse for o caso, trata-se apenas de uma ilusão que precisa ser desmistificada. O Estado é apenas uma agência humana com o poder de iniciar agressão contra os indivíduos que vivem dentro de um certo território. Ele provavelmente é necessário à vida humana em sociedade, mas não há nada nele que o torne fonte ou determinador do que é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo em sentido moral; embora, espera-se, as leis que ele coloca em prática preservem alguma relação com o que cremos ser bom e mau na realidade - e mesmo isso nem sempre é o caso.

A legitimidade de um tipo de união romântica pode depender de muitas coisas: da opinião dos homens em geral, única e exclusivamente da opinião dos envolvidos em tal união, da vontade de Deus, dos benefícios ou malefícios que tal união traz independentemente dos desejos e opiniões dos homens, etc. Mas ela não depende, e nem pode depender, de algum tipo de sanção estatal, posto que nada deriva sua legitimidade disso.

Se a finalidade da luta pelo casamento gay for 1) a remoção de entraves legais e outros efeitos práticos, ela é válida (do ponto de vista de alguém que acredite que não há nada de errado ou deficiente nas uniões homossexuais). Se for 2) a manipulação da opinião pública por um meio indireto que se crê eficaz, a luta faz sentido prático, mas sua idoneidade é questionável (mesmo para alguém que aprove ou esteja envolvido em uma relação homossexual). Por fim, se for uma luta para 3) se sentir aceito ou legitimado, como se o Estado fosse uma instância superior capaz de conferir essa "legitimidade ontológica", trata-se de um engano, um resquício da superstição que insiste em divinizar essa agência humana (talvez por que, quando se deixa de divinizá-la, vê-se o que ela realmente é; e daí os detentores e usuários dos meios coercivos perdem, com o véu de mistério sagrado, sua carta branca). Nem se todos os Estados do mundo incluírem as uniões homossexuais no conceito de casamento, e nem mesmo se a ONU (essa meta-ficção) proclamar que é tudo igual, nada disso dará legitimidade à coisa; ou se a encontra independentemente do Estado, ou nunca se a encontrará.

***

A mesma consideração vale para quem se opõe, com unhas e dentes, ao casamento gay. O que querem preservar? Qual o medo de que o Estado mude algumas palavras? Ou é, também, apenas uma questão de garantir que certas benesses legais sejam dadas somente a um tipo de união e não a outros?

sábado, 24 de novembro de 2012

Gays e Cabras - a comparação que não ocorreu

J. M. Guzzo conseguiu o que queria com seu artigo "Parada Gay, Cabra e Espinafre" na Veja: provocar quem já a odeia e assim ganhar exposição. O título dá a entender algo, o texto quando (mal) lido dá a entender algo, mas é algo que não está lá. Em nenhum momento a homossexualidade é tomada por doença e em nenhum momento equipara-se o casamento gay ao incesto ou à bestialidade, e nem se argumenta que, liberado aquele, esses eventualmente também o serão. O artigo, na minha opinião, é ruim; mas não pelos motivos que se alardeiam. Esses são apenas a prova de seu sucesso.

As comparações que Guzzo faz não equiparam, em momento algum, a homossexualidade às outras coisas citadas. O que ele faz é apenas mostrar que a homossexualidade partilha com elas de alguma característica, sem disso inferir - o que seria plenamente falacioso - que elas se equivalem em qualquer outro plano.

Deixem-me exemplificar: andam dizendo por aí que é um absurdo não comer capim, pois capim é verde, que nem brócoli, e nós comemos brócoli. Acontece que, ao contrário do que dizem essas pessoas, existe uma série de coisas verdes que nós não comemos: etezinhos (E.T.s pequenos), por exemplo. Falta a esses itens, capim e etezinhos, o essencial para algo ser comida: ter proteínas. É claro que comer capim é só uma burrice e comer etezinhos é uma barbaridade intergaláctica, mas isso não vem ao caso neste exemplo: ambos têm as mesmas características de serem verdes e não comestíveis, e isso basta. Você pode até discordar, e dizer que não, etezinhos não são verdes, são azuis. Ou então argumentar que não é preciso ter proteínas para ser alimento. Ambos são válidos. Mas não tem motivos para se escandalizar com a comparação, feita num âmbito muito preciso e que não "transborda" para nenhum outro tipo de equiparação ou equivalência.

Da mesma forma, Guzzo diz que, muito embora homossexuais possam constituir relações estáveis, isso não os qualifica para o casamento. Afinal, outros tipos de casal também constituem relações estáveis (homem e cabra, mãe e filho), mas nem por isso se qualificam para o casamento. Portanto, não basta qualificar-se como relação estável para se estar apto a casar. Pode-se questionar muitas coisas aí; mas a comparação, ou melhor, a equiparação que chocou a tantos simplesmente não foi feita. Então deixem a lindíssima, a idolatrada indignação moral de lado um pouquinho e usem esses belos olhos e cérebro sedentos de justiça para ler o que está escrito.

O que a mim parece ser a verdadeira fraqueza do texto do Guzzo é que a base do argumento é fraca. No fundo, basicamente reafirma a lei existente. Casamento é só entre homem e mulher. E daí, quem disse que essa lei é a melhor, ou mesmo boa? Uma diferença entre essa relação e a homossexual é apontada: essa gera filhos. Ora, a incestuosa os gera também; por que eles não podem? Mas há casais sabidamente estéreis (uma mulher que se case depois da menopausa); por que eles podem se casar se a reprodução é o fator determinante? E o dia em que a tecnologia permitir que um homem engravide de outro homem; daí o casamento gay passará a ser legítimo e deverá ser instituído pela legislação? Pode parecer absurdo, ou mesmo indecente, questionar as práticas legais atuais mesmo no que diz respeito ao incesto; mas podem ter certeza que, indecente ou não, se a única coisa impedindo o reconhecimento legal de um relacionamento for o costume de não aceitá-lo, essa restrição está com os dias contados. Nossa sociedade não adere mais à premissa conservadora de que, se algo foi instituído por gerações passadas e durou muito tempo, então elas devem ter tido bons motivos ainda que nós não os conheçamos. Da mesma forma, mesmo para quem é contra o casamento gay, não basta dizer que sempre foi assim ou que a lei o define assim; é preciso mostrar por que a união heterossexual é superior e digna de um reconhecimento único. A reprodução sozinha não dá conta do recado.

domingo, 18 de novembro de 2012

Ler e Filosofar


Poucos discordariam de que é útil, e talvez necessário – filosoficamente –, estudar os filósofos do passado. É irrelevante para um físico ler Newton; e imprescindível para um filósofo ler Platão. A filosofia no presente se beneficia do conhecimento de seu passado, e por isso se justifica que tantos estudantes se dediquem a alguma questão histórica (no meu caso, por exemplo, a questão que pesquiso no mestrado é: “Qual a fundamentação epistemológica do conhecimento humano acerca do bem e do mal?”). Nesse tipo de estudo, a preocupação é desvendar o que um filósofo realmente diz sobre um tema; isto é, lê-lo e entendê-lo corretamente.

Em que medida isso importa? Em que medida nossa forma de ver o mundo depende de saber se, digamos, Aristóteles pensava X ou Y sobre o mundo? Além do benefício para o estudante, que é levado a pensar em diversas questões ao estudar um autor como Aristóteles, é difícil pensar que, hoje em dia, uma mudança em nossa leitura de Aristóteles tenha impacto na discussão filosófica. Imaginem que um novo comentador prove, sem margem de dúvidas, que a forma como lemos Aristóteles até hoje está errada. Imagine que ele prove, ademais, que a verdadeira leitura de Aristóteles, aquela que capta o sentido real de suas obras (enquanto todas as outras apresentam problemas sérios de leitura), seja, filosoficamente falando, muito mais tola e rasa. Imaginemos, por exemplo, que esse acadêmico prove que Aristóteles, sempre que fala de “formas”, refere-se exclusivamente ao formato geométrico e corpóreo do ser. Mesmo quando o assunto é a alma, Aristóteles estava a atribuir formato geométrico a ela(sim, sim, é absurdo e falso imaginá-lo; mas por um momento topem essa suspensão da descrença). Isso quer dizer que toda a tradição aristotélica, ao atribuir a seu pai fundador uma certa concepção muito mais rica e profunda de “forma”, estava equivocada.

[Um pequeno adendo: hoje em dia, com nossa técnicas de leitura, filologia e análise contemporâneas, é improvável – embora não impossível – que um erro grotesco de leitura se perpetue por tanto tempo. No passado, contudo, essa possibilidade estava muito mais presente. Em meu próprio mestrado, um conceito importante de Tomás, a “synderesis”, teve origem, vejam só, em uma cópia mal-feita que algum monge fez de um texto de S. Jerônimo. Em uma passagem em que S. Jerônimo se referia à “syneidesis” – termo grego traduzido como consciência – o copista escreveu “synteresis”, criando um novo termo (inexistente na língua grega). Adicione-se a isso algumas gerações de estudiosos e comentadores, e temos um novo conceito filosófico e teológico.]

A pergunta que quero fazer com base nesse exemplo é: e daí? E daí se Aristóteles tiver sido um tolo com uma tese ridícula acerca da realidade? Isso faria toda a diferença para a indústria acadêmica, causaria imenso rebuliço nos departamentos de filosofia, consagraria carreiras e talvez destruísse outras; mas para a filosofia nada mudaria. As questões, as posições e os argumentos atuais - nenhum dos quais depende da autoridade pessoal de Aristóteles - continuariam os mesmos. Da mesma forma, se encontrássemos, hoje em dia, algum texto perdido de Aristóteles, a importância do achado para os departamentos de filosofia seria imensurável. Para a filosofia em si, é improvável que ele tivesse grande impacto direto (a não ser que em sua obra inédita constassem argumentos e refutações inéditos de problemas atuais).

Não é possível falar de um progresso filosófico claro e mensurável, como nas ciências naturais; mas é igualmente claro que há um progresso em andamento: argumentos são consolidados, novas respostas e refutações surgem, problemas são reformulados, o conhecimento do mundo natural leva-nos a descartar certas possibilidades, etc. Um rápido exemplo: um argumento para a imortalidade da alma como o dos contrários, encontrado no Phaedon, não é mais sustentável hoje em dia. E é por esse motivo que um novo texto de Aristóteles, assim como um novo texto de Newton, embora criassem uma revolução no nosso entendimento da história do pensamento, não criariam uma revolução na filosofia ou na física.

Mesmo assim, essa correção da leitura faria muitos filósofos que gostavam de Aristóteles se sentirem mal. Aposto que haveria até um impulso inicial de defender Aristóteles da nova e desabonadora interpretação; e a motivação não seria a de fazer a defesa da própria leitura, mas a de provar que Aristóteles não era um tolo. Falando por mim, imagino que é exatamente isso que eu faria se uma nova interpretação de S. Tomás visasse mostrar que ele não passou de um pensador raso e limitado (a propósito, é isso que faz Anthony Kenny ao responder às passagens nada elogiosas que Russell dedica a S. Tomás em sua história da filosofia).

Não tenho resposta ou explicação para isso. Se tivesse que arriscar, diria que gostamos de ver nos autores clássicos uma personificação de suas ideias. Caindo Aristóteles, não cai o realismo metafísico, mas cai a ideia de Aristóteles como uma personificação do ideal ético e filosófico que associamos às suas ideias (e que pode variar muito de leitor para leitor: o Aristóteles de Garrigou-Lagrange não era o mesmo do de Ayn Rand). Também podemos fazer de um filósofo a encarnação de algo mau. No caso de um aristotélico contemporâneo, os (supostos) defeitos pessoais de Kant ou Bentham servem como um tipo de refutação poética de suas filosofias (nesse sentido, ainda bem que Aristóteles viveu há 2400 anos...). Nossa relação com a filosofia não é inteiramente impessoal; estão em jogo convicções, modos de ver o mundo, apostas existenciais; e daí importa saber se temos ou não exemplares reais dela no mundo, testemunhando a possibilidade de viver por diferentes ideias. A biografia, a dignidade ou a inteligência de nossos antepassados não importa para a filosofia; mas importa para os filósofos.

sábado, 10 de novembro de 2012

Platão comenta texto de Lorena Miranda

Sim, Lorena Miranda escreveu este texto, Joel Pinheiro e Rafael Falcón o comentaram, mas o velho Platão, malandro bimilenar, já tinha atirado sua garrafa ao Mediterrâneo. Está lá no Teeteto, 173d-174b, e segue abaixo na tradução de Carlos Alberto Nunes (Edufpa, 2001):

Sócrates – Então, falemos dos diretores do coro, já que isso te agrada, conforme verifico. Qual a vantagem de perdermos tempo com a arraia-miúda do campo da Filosofia? De início, devemos observar acerca dos primeiros que desde a mocidade o que mais do que tudo ignoram é o caminho da ágora ou onde fica o tribunal, a sala de conselho e quejandos locais de reuniões públicas; não ouvem nem vêem as leis nem as decisões escritas ou faladas. As disputas dos cargos públicos nas hetérias, as reuniões e os festins, os banquetes animados por tocadoras de flauta: nem em sonhos lhes ocorre comparecer a nada disso. Nasceu na cidade alguém de nobre ou baixa estirpe? Certo cidadão herdou tara de seus antepassados, homens ou mulheres? É o que filósofo conhece tão pouco, como se diz, como quanta areia há no mar. Nem chega mesmo a saber que não sabe nada disso. Porém não se alheia dessas coisas por vanglória, mas porque realmente só de corpo está presente na cidade em que habita, enquanto o pensamento, considerando inane e sem valor todas as coisas merecedoras apenas de desdém, paira por cima de tudo, como diz Píndaro, sondando os abismos da terra e medindo a sua superfície, contemplando os astros para além do céu, a perscrutar a natureza em universal e cada ser em sua totalidade, sem jamais descer a ocupar-se com o que se passa ao seu lado.

Teodoro - Que queres dizer com isso, Sócrates?

Sócrates - Foi o caso de Tales, Teodoro, quando observava os astros; porque olhava para o céu, caiu num poço. Contam que uma decidida e espirituosa rapariga da Trácia zombou dele, com dizer-lhe que ele procurava conhecer o que se passava no céu mas não via o que estava junto dos próprios pés. Essa pilhéria se aplica a todos os que vivem para a Filosofia. Realmente, um indivíduo assim alheia-se por completo até dos vizinhos mais chegados e desconhece não somente o que eles fazem como até mesmo se se trata de homens ou de criaturas de espécie diferente. Mas o que seja o homem e o que, por natureza, lhe cumpre fazer ou suportar, para distingui-lo dos outros seres, eis o que ele procura conhecer, sem se poupar a esforços em sua investigação. Compreendes-me, Teodoro, ou não?

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

De como Dostoiévski foi o primeiro olavete; e o desaparecimento iminente dos moderninhos com cara de nojo

I

Escrevi recentemente um artigo sobre Dostoiévski onde avalio a relação deste com a noção de Ocidente e a cultura ocidental. O artigo foi lido por Joel Pinheiro e Julio Lemos e desagradou a ambos pelo que seria um excessivo tom “olavista-voegelinista”. (Nota: Não conversei com Julio Lemos sobre o assunto; sua apreciação me foi brevemente transmitida por Joel Pinheiro. Já com este último venho discutindo abundantemente todas as questões em torno do malfadado artigo, de modo que boa parte do que direi nesse texto não lhe será novidade. No entanto, creio que a grande maioria das pessoas tem sobre Dostoiévski a mesma impressão truncada que verifiquei ser a do Joel. Este texto é uma tentativa de desfazer parte desses nós e de quebra pegar o gancho da discussão mais interessante que a internet viu nos últimos tempos: aquela em que Olavo de Carvalho respondeu às indiretas de Julio Lemos.)

No que pese a crítica razoável de que meu artigo deveria citar menos comentadores (notadamente, Ellis Sandoz, discípulo de Eric Voegelin) e mais o próprio Dostoiévski, é notório que o problema de Joel Pinheiro é principalmente com a linha interpretativa que eu sigo no artigo, tomada, sim, a Sandoz-Voegelin, uma vez que desconheço fonte teórica mais acertada para interpretar o Dostoiévski político (e acrescento que Dostoiévski é o objeto da minha pesquisa de mestrado; há pelo menos três anos não faço outra coisa senão ler interpretações de sua obra). Mas faço o mea culpa que me cabe: o leitor não-especializado, que não leu as mil e quinhentas páginas de textos jornalísticos de Dostoiévski, tampouco suas cartas e cadernos de notas, além, evidentemente, de sua obra literária, não tem obrigação de saber que o ideólogo por trás de obras enigmáticas como Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo identificou pioneiramente o fenômeno a que Eric Voegelin chamou “gnose moderna”. Eu deveria, portanto, ter escrito algo como um preâmbulo justificando a pertinência de minhas fontes teóricas. Concedido isto, sigamos adiante.

Joel Pinheiro declara que, ao invés do meu artigo, gostaria de ler

um ensaio sobre Dostoiévski, e não apenas sobre o "processo político/espiritual gnóstico da modernidade que foi profundamente percebido por Dostoiévski quando ele se defrontou, despido de todas as ideologias, com o problema do nada na alma russa, e como sua crítica vislumbrou os males do séc. XX e de nossa sociedade à beira do apocalipse".

E diz ainda que Ellis Sandoz, ao interpretar a Lenda do Grande Inquisidor à luz da teoria histórica voegeliniana, não está falando de Dostoiévski, mas usando o russo para “fazer política”. O que me faz inevitavelmente exclamar de mim para mim: que raios o Joel pensa ser o conteúdo e o sentido último da obra dostoievskiana?! Subtraia-se a Dostoiévski o sentido do “processo político/espiritual gnóstico da modernidade” e tem-se perfeitamente um corpo sem forma, um significante sem significado. O que não falta são leituras de Dostoiévski politicamente neutras como a desejada pelo Joel, mas eu continuo achando muito mais válido ler um autor pela chave que ele, com todas as letras, declarou ser a sua, e desse modo desdobrar os conteúdos ali implícitos, dando continuidade àquilo que o próprio autor se comprometeu com dizer.[1] No caso de um escritor prolixo como Dostoiévski, esse tipo de crítica é mais do que bem-vindo; mostrar quem é o Dostoiévski de carne e osso sob a parafernália polifônica alardeada pela leitura formalista de Mikhail Bakhtin é o melhor que se pode fazer, nos dias de hoje, pela memória de um autor com os pés tão fincados no real e muito pouco interessado em formalismos e abstrações.

Mas, com efeito, é bastante compreensível que um leitor não-especializado não dê pela importância disso, pois desconhece o projeto literário-político-filosófico do mentor de Os Demônios. Eis algo de que só me dei conta quando da discussão em torno do meu artigo: a grande maioria das pessoas não faz a mínima ideia de quem tenha sido o ideólogo Dostoiévski. Isto se deve, é claro, à dicção literária do romancista russo, que, tendo intenções filosóficas e não raro políticas muito bem definidas para cada uma de suas obras (e isto se verifica de modo muito claro em seus textos não-literários), não consegue senão retratar a realidade de forma polissêmica, dando um equivalente literário ao caos das coisas elas-mesmas. Donde resulta seu recrutamento pelos grupos ideológicos mais díspares, de socialistas a aristocratas wannabe.

É um fato atualíssimo: todos amam Dostoiévski. O autor russo que viveu administrando pedradas e cusparadas e aplausos os mais efusivos chegou, enfim, a ser plenamente adorado. Mas isto tem seu custo: diferentemente dos leitores de hoje, seus contemporâneos o conheciam, liam-no tanto em seus romances como – e talvez até mais – nos textos jornalísticos em torno dos quais ele construiu sua persona intelectual. E, assim, na Rússia do século XIX não era possível macaquear Dostoiévski: quem fosse partidário do velho Fiódor Mikháilovitch trazia necessariamente a si o estigma de suas opiniões tão controversas. Já seus leitores de hoje não o levam às últimas consequências e elogiam-no cada qual na medida de suas conveniências e interesses – seja pelo simples fato de ser um autor canônico, e assim não lê-lo é de uma deselegância inaceitável, seja por ele retratar o caos da alma humana, pelo que serve à causa-mor da contemporaneidade desnorteada – a implosão das ordens tradicionais.

Mas quem era, em verdade, esse Fiódor Dostoiévski? Pudesse ele avaliar seus leitores de hoje e o mundo de hoje, o que diria? Mais interessante ainda: se alguns de seus entusiastas atuais vivessem na época que o viu nascer, seriam ainda entusiastas, ou quem sabe engrossariam o time de seus detratores? Ainda uma última elucubração: se tivéssemos nos dias de hoje um intelectual com ideias semelhantes às de Dostoiévski e eloquência parelha à do autor russo, como seria sua recepção pelos nossos críticos e tão bem penteados homens de letras?


II

"Há uma grande tristeza em não se ver o bem no bem."
- Atribuído a Gógol por Lúcio Cardoso


Um paralelo entre Dostoiévski e Olavo de Carvalho é inevitável quando se leem os escritos jornalísticos de um e de outro. Não apenas suas preocupações político-culturais vão no mesmo sentido, como seus papéis sociais, na Rússia do século XIX e no Brasil do século XXI, respectivamente, são curiosamente semelhantes. Ambos partem de uma experiência pessoal, de um corpo a corpo com o movimento revolucionário de esquerda: Dostoiévski passou quatro anos em uma prisão na Sibéria por ter feito parte de um grupo simpatizante das ideias socialistas (o chamado círculo de Petrachévski); Olavo foi militante do Partido Comunista Brasileiro. Se a vida madura de ambos é marcada pelo combate à mentalidade revolucionária (termo olavético que – salvo engano meu – se aplica perfeitamente à realidade psicossocial de que tratava Dostoiévski, assim como a gnose de Voegelin), isto certamente deve remeter-se a terem visto de perto o olho do furacão. Diz Dostoiévski:

Todas essas convicções quanto à imoralidade das próprias fundações (cristãs) da sociedade contemporânea e à imoralidade da religião, da família, do direito à propriedade privada, e assim por diante – tudo isso eram influências a que éramos incapazes de resistir e as quais, de fato, capturaram nossos corações e mentes em nome de algo muito nobre. (...) Aqueles entre nós – isto é, não só os do círculo de Petrachévski, mas em geral todos os infectados e que no entanto mais tarde rejeitaram completamente toda essa escuridão e terror que se preparava para a humanidade supostamente para regenerá-la e restaurar-lhe a vida – nós àquela época ainda não conhecíamos as causas de nossa doença e portanto ainda éramos incapazes de lutar contra ela. E por que, então, os senhores supõem que mesmo um assassinato à la Nietcháiev nos teria parado – não todos nós, é claro, mas ao menos alguns de nós – naqueles tempos frenéticos, tomados por doutrinas que nos haviam capturado as almas, em meio aos devastadores eventos na Europa de então – eventos que nós, negligenciando nosso próprio país, seguíamos com angústia febril?

(In: Diário de Um Escritor, “Uma das falsidades de hoje”, 1873. Nietcháiev foi o mentor do evento que inspirou o romance “Os Demônios”, em que um jovem foi morto ao tentar desligar-se de uma célula revolucionária.)

O relato de Olavo sobre sua experiência comunista complementa muito naturalmente o de Dostoiévski:

Levei décadas para compreender que a sedução esquerdista não me conquistou – nem a mim nem a meus companheiros de geração – pelo conteúdo ativo da sua proposta ideológica, que só conhecíamos muito superficialmente, mas sim pela oferta implícita de um novo código de moralidade, que chegava a nós sem palavras, pela impregnação difusa na convivência diária. (...) Libertávamo-nos da “moral burguesa” escravizando-nos à autoridade irracional de um círculo de “companheiros”, cuja afeição se tornava o único fiador da salvação da nossa alma ante o tribunal da História. O apego ao grupo era fortalecido pelo ódio a inimigos que não conhecíamos, dos quais nada sabíamos, mas de quem imaginávamos com facilidade as piores coisas, deleitando-nos então de pertencer à comunidade dos bons. (...) Considerando-se a extensão e a gravidade dos crimes praticados pelo comunismo contra a espécie humana, o dever mais óbvio daqueles que se desiludem com ele é aprofundar a ruptura, investigando dentro de si até extirpar as últimas raízes do erro monstruoso em que se acumpliciaram. (In: http://www.olavodecarvalho.org/semana/080731jb.html)

Dostoiévski, como Olavo, saiu da experiência socialista disposto a dedicar sua vida a combater o movimento revolucionário. Isto se verifica com clareza em seus romances, mas é também um dos principais motivos de seus artigos jornalísticos. Tal combate, no entanto, toma a forma de uma crítica social ampla, buscando nos fatos correntes do cotidiano de seu país os indícios de que a mentalidade revolucionária se alastrava, o que o obrigava a insistir terminantemente – os moderninhos enojados diriam “histericamente” – nas terríveis consequências que adviriam da tomada do poder pelos autoproclamados “novos homens”. Eu me sinto segura o bastante para afirmar que Dostoiévski de bom grado teria aberto mão de toda sua obra literária por um único artigo que tivesse sido eficaz no combate às ideias revolucionárias em seu país. Essa era sua “tarefa cívica”, sua justificada obsessão. E não poderia ser de outro modo.

Não poderia ser de outro modo porque não há nada mais importante na história da cultura russa do século XIX do que o advento do pensamento socialista. Qualquer homem minimamente inteligente, interessado por cultura e que vivesse naquele tempo percebê-lo-ia. Em se tratando não apenas de um homem minimamente inteligente, mas de uma potência criativa como Dostoiévski, era inevitável que ele se voltasse à maior das questões de seu tempo, uma vez que tinha diante de si a gestação de uma ideia com o potencial destrutivo de uma bomba atômica – de efeitos materiais mas sobretudo morais. Repito: vivendo quando e onde viveu, e tendo o alcance intelectual que tinha, Dostoiévski não poderia senão ocupar-se da maior questão de seu tempo: é o que fazem os grandes homens.

Mas o Brasil do início do século XXI não é nenhuma Rússia pré-revolucionária, dirão. Não, não é; o Brasil contemporâneo é, sim, um país em plena revolução, e nós, que aqui vivemos hoje, presenciamos a cada dia o avanço da onda que há aproximadamente duas gerações vem desfigurando nossa sociedade civil e esterilizando nossa cultura. É muito difícil perceber isso, e seria praticamente impossível sem os esforços de Olavo de Carvalho. Ele é nosso Dostoiévski, e não lhe faltam no Brasil atual detratores como os teve Dostoiévski. Também o russo teve de viver sob acusações de loucura e conspiracionismo; também ele não se amedrontou e manteve até o fim sua convicção de que alguma coisa gigantesca estava sendo gestada na Rússia oitocentista e que em breve o mundo o testemunharia.[2]

E é assim que, sempre que leio um Julio Lemos fazer pouco de Olavo de Carvalho porque este suja demais as mãos no excremento dos fatos do dia, respiro fundo e penso em Dostoiévski, e me consola a certeza de que a injustiça do momento será paga com a justiça da História. Não tenho dúvidas de que, estivesse Dostoiévski vivo e tivesse a peculiar sorte de nascer brasileiro, ele estaria precisamente denunciando o Foro de São Paulo e as falcatruas do PT – ele estaria, de modo geral, chafurdando naquilo que reconhecesse como o mal no mundo. Se tem coisa que eu não entendo é esse nariz empinado de quem diz “vocês são uns suburbanos denunciando o mal no mundo!”. Ora, eu me pergunto, se um sujeito com veleidades de ser um “homem de ideias” não ocupa seu pensamento com a busca pelas metamorfoses do mal em seu tempo (e identificar o mal é inerente a delinear a verdade), faz o quê? Julio Lemos aparentemente já fez de tudo, já passou por todos os processos em que agora se debatem os olavetes suburbanos, que, ingênuos, creem ter descoberto a pólvora quando ele próprio, o Buda da internet, agora estuda as ciências naturais porque já colheu todos os frutos da metafísica.

Mas realmente não me cabe ficar aqui divagando sobre a psicologia dos detratores de Olavo de Carvalho, pelo simples fato de que Ronald Robson já o fez num texto definitivo. De 2008 a 2012 o cenário parece ter-se agravado, tornado-se mais copioso, mas sem uma mudança substancial na dinâmica de forças. E é ao mesmo Ronald Robson que eu tomo a citação que dá de modo irretocável a razão da superioridade de figuras como Dostoiévski e Olavo de Carvalho sobre seus críticos nojentinhos: “só está apto a produzir algo que fale a todos os homens de todas as épocas o indivíduo que olhou com clareza atroz o que se passa ao seu redor e amou ou odiou, com todo o empenho do seu ser, a sua particularíssima situação concreta.” O que por sua vez remete a uma carta escrita por Dostoiévski a seu amigo Nikolai Strákhov, em que critica um artigo de Turguêniev onde este descreve sua incapacidade de olhar de frente uma execução pública:
 [O]s filhos dos homens não têm o direito de dar as costas a nada que aconteça sobre a terra; não, segundo os princípios morais mais elevados, eles não têm. Peculiarmente cômico é quando ele [Turguêniev] de fato as costas, assim evitando assistir à execução. “Vejam, senhores, que refinada educação é a minha! Eu não pude suportar uma tal cena!” O tempo todo, ele se trai. A impressão mais definitiva que se tem do artigo de modo geral é que ele está desesperadamente preocupado consigo próprio e sua paz de espírito, mesmo quando se trata de cabeças sendo decepadas.

Does it ring a bell, leitor? Temos ou não temos entre nós vários filhotes de Turguêniev? Mais engraçado ainda é ver como Dostoiévski, antecipando os sofrimentos de Olavo de Carvalho, tinha de justificar o tempo todo sua escolha pelos temas do dia, os mais provincianos possíveis (no sentido que “província” tem no supracitado texto de Robson). A partir de 1873 ele passa a publicar o Diário de Um Escritor, periódico em que comentava os principais assuntos do momento e respondia a cartas – espécie, digamos assim, de True Outspeak por escrito –, sobre o qual escreve a uma conhecida:

A senhora escreve que eu estou desperdiçando meus talentos com bagatelas no Diário. Não é a primeira pessoa de quem escuto isto. Portanto quero agora dizer à senhora e aos outros: eu cheguei à conclusão de que um artista deve estar a par, até o mais mínimo detalhe, não apenas da técnica da escrita, mas de tudo – tanto eventos atuais quanto históricos – relativo à realidade a qual ele deseja retratar. (...) Eu devo dedicar-me especialmente a certas peculiaridades do momento presente. E neste presente momento a geração mais jovem me interessa particularmente e, relativa a ela, a questão da vida em família russa, a qual, em meu entendimento, é bastante diversa hoje do que era vinte anos atrás. Também várias outras questões do momento interessam-me.

Veja bem, leitor: nada disto quer dizer que é obrigatório ao intelectual tomar para si o trabalho de escrutínio do presente de que se ocupam Dostoiévski e Olavo de Carvalho. Quer dizer, as pessoas têm vocações e desígnios diferentes. Felizes seremos todos se Julio Lemos se tornar um grande lógico ou matemático; eu mesma não quero fazer outra coisa senão escrever poesia, assim como alguns serão críticos literários e outros engenheiros, e desse modo nem todos combaterão de frente o projeto diabólico da mentalidade revolucionária – mas daí a desdenhar de quem o faz é necessário um grande salto de desonestidade. Não se trata de ignorância, pois Julio Lemos sabe que Olavo de Carvalho se ocupa de coisas importantes, assim como sabe que o olavete de Facebook não representa os verdadeiros discípulos do Olavo – entre os quais não me incluo, pois diante de Ronald Robson e Rafael Falcón sou meramente uma pessoa que gosta de poesia.

Quem julgar que este texto é de um nauseante baixo nível, por tratar “de pessoas e não de ideias”, vá lamber sabão. Devíamos estar todos fartos de viver de aparências. Os debates no Brasil são essa coisa inócua porque instituiu-se que não se pode proferir palavra sem antes embrulhá-la com o papel de seda do bom mocismo.

Agora, voltando a Dostoiévski, faço uma última pergunta: alguém aí, que não seja especialista em cultura russa do século XIX, já ouviu falar em Dobroliúbov, Granóvski, Píssariev, Vladímir Zotóv? Dou um dente a cada pessoa que disser que sim. E então façam as contas e descubram quem chegará à posteridade, se Olavo de Carvalho ou as miniaturas de aristocratas que, na falta de coisa melhor, lhe fazem as vezes de críticos.



***

P.S.: Por falta de espaço, não pude comentar, como planejara, outros trechos de cartas de Dostoiévski muito interessantes ao paralelo do russo com Olavo de Carvalho. Mas postarei esses trechos em apêndice no primeiro comentário desse post, apenas para curiosidade e deleite do leitor.







[1] A título de breve exemplo, vejam-se os seguintes trechos de cartas escritas por Dostoiévski à época da criação de Os Irmãos Karamávov, em que discorre sobre suas intenções para esta obra:

“Its idea is the presentation of extreme blasphemy and of the seeds of the idea of destruction at present in Russia among the young generation that has torn itself away from reality. Ivan’s convictions form what I consider the synthesis of contemporary Russian anarchism. The denial not of God, but of his creation. The whole of socialism sprang up and started with the denial of the meaning of historical actuality, it arrived at the program of destruction and anarchism. The principal anarchists were, in many cases, sincerely convinced men.” (…)  
“The modern denier, the most vehement one, straightway supports the advice of the devil and asserts that that is a surer way of bringing happiness to mankind than Christ is. For our Russian socialism, stupid, but terrible (for the young are with it) – there is a warning [in the Legend], and I think a forcible one. Greed, the Tower of Babel (i.e. the future kingdom of socialism), and the completest overthrow of conscience – that is what the desperate denier and atheist arrives at. The difference only being that our socialists (and they are not only the underground nihilists) are conscious Jesuits and liars, who will not confess that their idea is the idea of the violation of man’s conscience and of the reduction of mankind to the level of a herd of cattle.”  (…) 
“The West has become blinded and has lost Christ. The course of the whole misfortune in Europe, everything, everything, everything without exception, has been that she gained the Church of Rome and lost Christ, and then decided that they could do without Christ.”

[2] Se é verdade que a crença positiva de Dostoiévski era sobretudo no potencial russo de produzir uma mensagem capaz de salvar o mundo do ateísmo revolucionário, essa era uma crença complementar à sua convicção de que, se os socialistas tomassem o poder, seria o fim; donde vencê-los seria um acontecimento tão significativo que deveria implicar necessariamente a posse da chave para os problemas não só da Rússia como de todo o Ocidente.
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