Uma resposta é que a finalidade é conquistar os direitos legais que são dados a parceiros heterossexuais e dos quais os parceiros homossexuais são privados (direito obrigatório a 50% da herança, poder adotar, poder assistir a cirurgia, algum benefício fiscal, etc.). A discussão muitas vezes segue por esse caminho. Diz um homossexual: "não é justo que eu não tenha com meu parceiro a quem amo os mesmos direitos de um casal heterossexual". E até aí, perfeito; quero dizer, entende-se perfeitamente pelo que é a luta. Há certas coisas da vida prática a que os casais homossexuais não têm acesso e poderiam ter.
Mas é só isso? E se o governo estendesse todas essas garantias legais às uniões homossexuais, mas não as registrasse como "casamento"? Se desse-lhes o nome de "união civil" (ou então "cazamento", "matrimúnio", que tal?); estaria finda a luta pelo reconhecimento formal? Aí cada indivíduo responde por si, mas parece-me que, para muitos, a luta pela aceitação legal da união homossexual vai além da extensão de direitos práticos; é uma luta para que essa união seja identificada e fique plenamente indistinta do casamento heterossexual.
Mas no que consiste essa igualdade que vai além dos direitos práticos? Em um nome. Um nome outorgado pelo Estado. O Estado "considerará" essas uniões como indistintas, assim como não discrimina os casamentos de casais loiros e morenos. Mas ao predicar um ato ao Estado, especialmente um ato mental ("considerar"), fazemos uso de uma ficção. O Estado não pensa e nem quer nada. Ele é uma ficção que criamos para diversos propósitos práticos, mas sabemos que ele não existe, metafisicamente falando. O que existe são as pessoas dos funcionários públicos, e algumas de suas ações, que se pautam por certos critérios formais, são interpretadas pelos membros da sociedade como sendo ações do Estado (se um funcionário público grita com a esposa, isso não é um ato do Estado). O Estado não existe se não nas mentes dos indivíduos, e ele certamente não é identificável a nenhum indivíduo particularmente e nem a todos eles. Então, o que importa se o Estado "considera" X ou Y? Para além dos direitos práticos, que realmente mudam alguma coisa na vida humana, o resto é fumaça e hipostasiada, ou seja, um ente puramente relacional e mental ao qual se atribui uma substancialidade metafisica.
A opinião do Estado não é a verdade objetiva, e nem chega a ser uma opinião, posto que não há mente por trás dele; são palavras escritas em algum papel e só. E por isso acho curiosa a luta pela definição estatal que se dá a algo. O Estado é só palavras e interpretações dadas por indivíduos em um grande acordo implícito; isso importa exclusivamente por causa das implicações legais práticas que essas palavras podem ter; dada uma formulação, posso ir para a cadeia se fizer X. Mas se as implicações legais práticas são as mesmas, de que importam as palavras usadas? Que importa se o Estado "chamar" à relação de um cachorro e seu dono de "zooposse" e der outro nome à relação entre o gato e seu dono? "Ah não! Zooposse para mim é apenas a relação com o cachorro, jamais com um gato. Claro, um homem pode ser dono de um gato e brincar com ele, mas não se tem uma 'zooposse', e sim outra coisa; no máximo uma 'posse de ser vivente' ". Beira ao absurdo. Nomes não são realidades.
Se a luta fosse pelo casamento na Igreja católica, daí a questão seria bem diferente. Pois a Igreja afirma algumas coisas concretas sobre o matrimônio: diz que ele é um Sacramento. Ou seja, pela visão católica, Deus usa essa união entre homem e mulher, e os atos decorrentes dessa união, como um canal especial de sua graça para ajudar na santificação dos envolvidos nela e dos filhos dela nascidos. Sendo assim, é relevante (para quem acredita na doutrina católica), saber o que é e o que não é matrimônio. No Estado nada disso está em jogo; tirando a parte dos privilégios legais dos casados em relação a seus cônjuges, é apenas um nome e nada mais.
Além disso, Deus é, verdadeiramente, uma Pessoa. Ele não tem opiniões (Sua mente tem a relação inversa da nossa com a realidade objetiva; a realidade decorre de sua mente, e não vice-versa), mas é um ser pessoal ao qual cabe falar que afirma ou nega, quer ou não quer, faz ou não faz, etc. Quando falamos do Estado nesses termos, estamos apenas usando uma metáfora. Não existe um "alguém" por trás dele; muito menos um "alguém" cuja opinião favorável carregue consigo a aura de juízo da realidade objetiva.
Assim, não haveria motivo direto para se lutar por uma "aceitação" estatal. A não ser que o objetivo não seja essa aceitação em si (que, como tentei argumentar, é uma ilusão), mas algum efeito que se espera que decorra dela. Um efeito possível é: a maioria das pessoas hipostasia o Estado, e o considera sim como uma pessoa mais importante, quiçá uma voz de uma realidade superior que emite verdades mais sólidas ou absolutas. E portanto, se o Estado "considerar" indistintamente as uniões hetero e homo como casamentos, isso talvez mude a maneira pela qual as pessoas consideram essas uniões. E então seria a motivação da luta pelo casamento gay (supondo que exista um número considerável de militantes que queira, além da igualdade de direitos práticos, também a identidade dos nomes concedidos às uniões; coisa de que não estou certo) uma luta, no fundo, por um meio de mudar a opinião das pessoas via um atalho político?
Outra possibilidade é que, como costuma acontecer, o Estado ainda seja visto em uma chave mais ou menos divina, e não como a ficção humana que ele é. Assim, uma "aceitação" do Estado é vista como algo que dá, por si só, legitimidade a uma prática. Se esse for o caso, trata-se apenas de uma ilusão que precisa ser desmistificada. O Estado é apenas uma agência humana com o poder de iniciar agressão contra os indivíduos que vivem dentro de um certo território. Ele provavelmente é necessário à vida humana em sociedade, mas não há nada nele que o torne fonte ou determinador do que é certo ou errado, legítimo ou ilegítimo em sentido moral; embora, espera-se, as leis que ele coloca em prática preservem alguma relação com o que cremos ser bom e mau na realidade - e mesmo isso nem sempre é o caso.
A legitimidade de um tipo de união romântica pode depender de muitas coisas: da opinião dos homens em geral, única e exclusivamente da opinião dos envolvidos em tal união, da vontade de Deus, dos benefícios ou malefícios que tal união traz independentemente dos desejos e opiniões dos homens, etc. Mas ela não depende, e nem pode depender, de algum tipo de sanção estatal, posto que nada deriva sua legitimidade disso.
Se a finalidade da luta pelo casamento gay for 1) a remoção de entraves legais e outros efeitos práticos, ela é válida (do ponto de vista de alguém que acredite que não há nada de errado ou deficiente nas uniões homossexuais). Se for 2) a manipulação da opinião pública por um meio indireto que se crê eficaz, a luta faz sentido prático, mas sua idoneidade é questionável (mesmo para alguém que aprove ou esteja envolvido em uma relação homossexual). Por fim, se for uma luta para 3) se sentir aceito ou legitimado, como se o Estado fosse uma instância superior capaz de conferir essa "legitimidade ontológica", trata-se de um engano, um resquício da superstição que insiste em divinizar essa agência humana (talvez por que, quando se deixa de divinizá-la, vê-se o que ela realmente é; e daí os detentores e usuários dos meios coercivos perdem, com o véu de mistério sagrado, sua carta branca). Nem se todos os Estados do mundo incluírem as uniões homossexuais no conceito de casamento, e nem mesmo se a ONU (essa meta-ficção) proclamar que é tudo igual, nada disso dará legitimidade à coisa; ou se a encontra independentemente do Estado, ou nunca se a encontrará.
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