**TRECHO DA MINHA (ASSIM ESPERO) DISSERTAÇÃO DE MESTRADO**
3.4.3.3
Problema: o mal enquanto tal
Do que foi exposto até aqui, fica claro
que o mal nunca é uma finalidade direta da ação humana. O argumento,
sinteticamente, é esse: nossas inclinações racionais primeiras visam a um bem.
Toda ação humana tem um fim dado por alguma inclinação racional primeira.
Portanto, toda ação humana visa a um bem. Logo, nenhuma visa ao mal enquanto
tal.
Tomás é bastante
consistente nesse ponto, repetindo-o ao longo de toda sua obra. “A vontade é o
apetite racional. Todo apetite é apenas de algo bom” [1].
Considerando apenas o primeiro princípio prático, já havia-se concluído que
todo agente busca o bem considerado formalmente; agora conclui-se que, para
além da consideração puramente formal do bem (cuja busca seria compatível com
perseguir algo mal em si mesmo, sob a ilusão de que tal coisa má era boa), há
sempre um bem concreto que atrai o agente. Ou seja, mesmo no pior dos pecados
haverá algum bem que o agente procura, e esse bem é de fato bom para o agente e
digno de busca pelo ser humano, embora esteja sendo buscado numa ocasião, ou de
maneira, inadequadas.
O mal em si não
movimenta a vontade. Ele só pode ocorrer, portanto, “à parte da vontade do
agente”, seja de maneira totalmente involuntária (como quando o agente pensa
beber mel mas bebe veneno de gato) ou como um efeito colateral previsível mas
que não foi o suficiente para desviar o agente do bem que ele buscava com
aquela ação específica [2].
Mesmo um ato plenamente autodestrutivo como o suicídio é feito por motivos
bons, inteligíveis a qualquer animal racional; Tomás cita a perspectiva de uma
vida infeliz, a vergonha do pecado, o medo do estupro e mesmo o medo de que, se
não morrer, consentir-se-á a algum pecado (perdendo portanto a vida eterna) [3].
Nenhum desses, é preciso deixar claro, justifica
o suicídio aos olhos de Tomás. Eles apenas mostram como mesmo uma ação
destrutiva da felicidade do indivíduo é feita em vista de algum princípio
prático; e, portanto, em vista de algum componente da mesma felicidade que se
destrói no ato. Mesmo nesse caso, o mal não é desejado enquanto tal.
3.4.3.3.1
As peras de Agostinho
Essa posição contrapõe-se a uma forte
tradição de pensamento filosófico cristão que chegara até Tomás e com a qual
ele frequentemente dialoga: o pensamento de Agostinho, segundo o qual a
liberdade da vontade e a corrupção da natureza humana são tais que o homem é
capaz de, e de fato busca se não for ajudado pela graça divina, o mal enquanto
tal. Embora fuja ao escopo deste trabalho comparar a fundo as diferenças entre
o pensamento de Tomás e o de Agostinho (e ainda menos entre este e a tradição
agostiniana com a qual Tomás tinha contato), é instrutivo apontar um caso
peculiar que sublinha exemplarmente essa diferença.
Na obra de Agostinho,
entre as muitas passagens que se dedicam a expor e explorar a maldade do pecado
e da condição humana, uma se sobressai na história do pensamento como singularmente
eloquente: o relato de um aparente pequeno delito da juventude, o furto de
algumas peras junto a amigos, que na verdade ocultou a mais profunda maldade na
alma de Agostinho. Suas palavras não poderiam ser mais claras quanto ao que ele
desejara:
“Carregamos
uma grande quantidade de peras, não para comer, mas para jogá-las aos porcos
mal as tendo provado. Isso nos aprouve ainda mais porque era proibido. Assim
era meu coração, ó Deus, assim era meu coração – do qual vós vos apiedaste
mesmo naquele poço sem fundo. Observe, deixe meu coração confessar a vós o que
ele procurava, naquela prodigalidade gratuita, sem nada que me induzisse ao mal
que não o próprio mal. Era torpe, e eu o amei. Amei perecer, amei minha própria
falta; não aquilo pelo que eu a cometia, mas a falta em si.” [4]
Tomás não tem nenhum
comentário às Confissões e, embora
citações e referências a Agostinho sejam quase onipresentes em sua obra,
raramente se detém sobre ele como seu objeto de estudo. Tampouco há alguma
questão ou algum artigo de sua obra que se refira diretamente a essa passagem.
Contudo, no De Malo, Tomás se refere
a essa passagem. E, condizente com o que foi apresentado sobre seu pensamento
até aqui, vê-se forçado a contradizer o texto de Agostinho. Cito a ocorrência integralmente,
que se dá em dois momentos no artigo 13 da questão 3, em que se pergunta se é
possível a um homem pecar por malícia deliberada.
O primeiro momento em
que a passagem de Agostinho ocorre é em um argumento da seção dos argumentos em
contrário, que, embora concorde com a posição que Tomás defenderá (a de que é
possível pecar por malícia), discorda na hora de definir o que é a malícia.
“Segunda objeção em contrário:
Agostinho diz em suas Confissões que
quando ele estava roubando frutas, ele amou sua delinquência, isto é, o próprio
roubo, e não a fruta em si. Mas amar o próprio mal é pecar por malícia.
Portanto, uma pessoa pode pecar por malícia.”
O segundo momento se dá ao fim do
artigo, quando Tomás responde a esse argumento, um expediente incomum (o normal
é que ele só responda aos argumentos que discordam de sua tese) embora não
único:
“Embora os argumentos
apresentados na seção cheguem a conclusões verdadeiras, devemos notar, com
respeito ao segundo argumento, que quando Agostinho diz que amava sua própria
delinquência, e não o fruto que ele roubava, não devemos entender essa
afirmação como se a própria delinquência ou a deformidade da falta moral
pudessem ser primária e intrinsecamente desejadas. Na verdade, seu desejo primário
e intrínseco era ou exibir um comportamento típico a seus pares ou experimentar
algo ou fazer algo proibido ou alguma coisa do tipo.” [5]
É uma pena que Tomás não tenha se
dedicado mais longamente à passagem das Confissões,
pois seus exemplos dos possíveis bens buscados por Agostinho fogem um pouco à
listagem normal. Tendo que adequá-los à lista apresentada anteriormente,
classificaria os possíveis motivos aventados por Tomás da seguinte maneira: o
desejo de impressionar seus pares provavelmente se encaixaria no princípio da
amizade ou sociabilidade; o “experimentar algo” (“experientiam habere alicuius”) se encaixa, possivelmente, no princípio
prático do conhecimento; a grande incógnita é o “fazer algo proibido”; Tomás
pareceria indicar que há um bem intrínseco em se agir de forma autônoma, em
afirmar a própria individualidade ou poder. Que o homem seja mais livre que o
resto da criação material, e que essa sua autonomia seja um bem metafísico, é
afirmado em diversos momentos. Mas a concretização dessa autonomia livre é
justamente agir segundo o ordenamento da razão, ou seja, segundo leis, coisa de
que as feras são incapazes. Aqui, o bem da autonomia vem justamente de se
violar um preceito racional (não roubar, constante do Decálogo), e permanece, portanto,
enigmática.
Seja como for, está bem
claro que, segundo Tomás, o mal não pode ser desejado enquanto tal; isso vai
contra a própria definição do que é o mal humano (aquilo que repele o homem e
que, conforme o primeiro princípio, ele busca evitar). Mesmo nos atos mais
baixos, há um bem que guia a vontade do agente; ocorre que, naquela instância,
a busca daquele bem ignora ou até impede a busca dos demais bens que compõem a
felicidade, tornando-se portanto má. O pecado é trocar o bem permanente por um
bem transiente. E o pecado por malícia ocorre quando essa troca não advém de
uma ignorância ou de uma paixão incontrolável, mas de um “hábito [que] às vezes
inclina a vontade, quando o comportamento costumeiro transformou, por assim
dizer, a inclinação a tal bem em um hábito ou disposição natural pelo bem
transiente, e então a vontade, por seu próprio movimento e independentemente de
qualquer emoção, se inclina por si mesma ao bem em questão” [6]. A
malícia é antes uma absolutização de um bem parcial do que a busca intrínseca
pelo mal; ocorre quando, num ato deliberado da razão, o agente, “para se
deleitar no bem desejado [a pessoa] não evita incorrer no mal” [7].