Eles são
especialistas daqueles tão especializados que passam a ver seu objeto de estudo
com o que chamam de distanciamento crítico — e apenas assim. É verdade que
distanciadamente é único modo como algumas pessoas conseguem se aproximar
(paradoxo significativo) das coisas, e contudo eu tenho uma dificuldade enorme
para entender isso. Como pode? Como, um ateu estudioso de Santo Agostinho?
Como, um comunista dostoievskiano? Eu me pergunto: como, e a resposta é sempre a mesma: com distanciamento crítico.
Nossas
universidades estão cheias disso. O que me faz lembrar de mim mesma aos
dezesseis para dezessete anos, estudando para ingressar no curso de Letras
porque lá eu encontraria pessoas que gostassem de literatura. Para mim a
relação era simples e direta: todas as pessoas que lêem poesia são sensíveis e
interessantes. Sim, eu fui uma adolescente ingênua e uma leitora sem muitos comparsas.
Depositei todas as minhas esperanças, pois, no bendito curso de Letras, onde
todos seriam como eu e sincera e devotadamente amariam a literatura!
Criança
miserável, estavas errada. Quem eram aquelas pessoas? O que faziam com livros
de poesia entre as mãos? Não eram muito diferentes dos broncos ignorantes do
meu colégio. Liam literatura, mas com distanciamento crítico. “Todos os
problemas de Drummond já estão resolvidos em Baudelaire”, diz o cínico
aspirante a crítico literário, nenhum sinal de tremor nas mãos, nenhum tique
nervoso de pálpebra que denunciasse um mínimo princípio de incerteza.
Para esses
seres (costuma ser complicado chamá-los de indivíduos), filosofia e literatura
são “coisas” paralelas à realidade, que pairam sobre o mundo propriamente dito.
Afinal de contas, ler as Confissões de Santo Agostinho, e estudá-las teoricamente,
não precisa levar ninguém a fazer um exame de consciência em si mesmo (exemplo
roubado de uma das inspiradas falas de minha BFF, Day Teixeira), certo?
Trata-se de um mundo em que o envolvimento do estudioso com seu objeto é
coisa não só dispensável, mas até indesejada, pois a qualidade do trabalho será
diretamente proporcional à quantidade de distanciamento crítico empregado pelo
dito pesquisador ao lidar com seu objeto.
Não faz muito tempo ouvi da boca de um doutorando uspiano: “São Tomás de
Aquino é bem legal, mas religião em si é um horror.” E eu me pergunto: como?!
Dentro da psicologia de uma pessoa viva nesse mundo — como?! Porque em verdade
eu ainda não me livrei daquela adolescente de dezesseis anos e, se preciso
escrever um artigo sobre um romance para uma matéria da faculdade, busco um
jeito de me envolver com ele, se não puder ser por empatia, que seja por
discordância, por simples repulsa — mas é preciso haver alguma relação, um
canal direto entre a minha subjetividade e o que quer que seja o bendito
objeto. E que eu compreenda esse objeto pelo que ele é plenamente, sem qualquer
recurso a essas lentes mágicas que os scholars usam para retalhar uma
obra em pedacinhos não necessariamente comunicáveis entre si. Modo pelo qual
conseguem, por exemplo, estudar Dostoiévski sem passar pelo cristianismo, pois
“a obra não é do autor, é do mundo, já que desde Freud não se pode mais falar
em intenção do autor.”
Todas as
frases entre aspas neste texto são verídicas. Eu gostaria que não fossem, mas
são, e essa última é de autoria de um Professor Doutor do Departamento de
Letras Modernas da USP.