Eu ando de ônibus. Se tivesse de ir trabalhar de ônibus todos os dias da semana, gastaria, contando idas e vindas, R$ 33 (a R$ 3,30 a passagem de Jacareí a São José dos Campos, via Satélite); seriam R$ 132 por mês (mais caro, portanto, que a mensalidade de meu plano de saúde); cerca de R$ 1580 anuais. E não são apenas os trabalhadores que arcam com os custos da passagem; muitas empresas dividem tal despesa com seus funcionários por meio do vale-transporte. Então não é por causa do último reajuste: a conta vem pesando no bolso faz tempo. Lembro-me do tempo em que andar de ônibus era tão barato quanto tomar um refri de 290 ml na padoca. Eu lembro. Sempre andei de ônibus. Pior do que o custo salgado do serviço, porém, são as péssimas condições nas quais ele é oferecido. Quando pego o ônibus de manhã para o trabalho sei que, invariavelmente, ficará lotado. Não falha uma única vez.
A revolta é justa e o buraco é mais embaixo. Por
trás da tarifa abusiva do transporte público está um problema mais
amplo, que é a relação perniciosa que as empresas prestadoras de serviço mantêm com os governos de todas as esferas — federal, estaduais e
municipais —, principalmente naquelas áreas em que está garantido o monopólio
sobre o mercado.
Em minha cidade, Jacareí, existe a lenda de que a empresa de
ônibus que atua no município presenteia os vereadores com automóveis para que eles legislem a favor dos interesses dela. Não sei se é verdade, mas todos sabemos
como funciona esse jogo sujo: as empresas investem pesado nas campanhas dos
candidatos, a maior parte na forma de dinheiro não contabilizado (o chamado
“caixa 2”). Depois o sujeito é eleito e está com o rabo preso. Eis que vêm os
aumentos abusivos (quando considerados a médio e a longo prazo), os cortes de
gasto e a depreciação progressiva da qualidade dos serviços prestados. Com exceção do povo, todos
saem ganhando, uma vez que parte desse dinheiro a mais que as
empresas levam sobre o usuário acaba nos cofres da campanha dos políticos,
quando não em seus bolsos. Estou falando de propina, é claro.
Tanto faz quem esteja no poder: sai PSDB, entra PT, o
esquema já está armado; o sistema, funcionando. É prática corrente no país
inteiro e envolve o transporte público, a merenda escolar, a coleta de lixo, a
publicidade oficial etc. E as empreiteiras. Ah, as empreiteiras... Se abrissem essa
caixa-preta, seria um deus-nos-acuda generalizado. Como cantava o saudoso Bezerra
da Silva: se gritar pega ladrão...
Lembram-se do assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo
André? Há a suspeita de que seja um crime político, ligado a um esquema de cobrança de propina das empresas que prestam serviço à prefeitura, com o objetivo de abastecer de recursos o Partido dos Trabalhadores
local. Até hoje a investigação encontra entraves para avançar. E
o que foi o mensalão, se não o repasse sistemático de dinheiro realizado por uma empresa que tinha interesses nas contas de publicidade do
governo federal? Infelizmente, tal modus operandi não é uma exclusividade do PT, como o mensalão
tucano em Minas Gerais demonstra.
Há um nexo estrutural ligando tais escândalos e o
aumento da passagem de ônibus. O conluio de governos com as empresas que lhes
prestam serviços tem extorquido os contribuintes e lesado os
cidadãos. Como resultado, assistimos atônitos à baixíssima qualidade dos
serviços que, teoricamente, seriam assegurados a nós por direito e à total
ausência de vontade política para mudar a situação. A máquina burocrática
tornou-se um universo à parte, funcionando autonomamente no sentido de se
retroalimentar e perpetuar projetos de poder.
O que está acontecendo agora é que os cidadãos, ao
pressentirem que as ações políticas nunca vêm ao encontro de seus interesses,
que elas nunca se encaminham em direção ao bem comum, começam a emitir claros sinais
de insatisfação, o que foi canalizado pela demanda específica contra o aumento nas passagens de ônibus. Mas o descontentamento é geral, embora difuso, e vem de longe. Como o problema é sistêmico, não se trata de um movimento contra a prefeitura (que é responsável por gerir o transporte
público), nem contra o governo do estado (que comanda a polícia) ou contra a
União. É uma revolta contra a totalidade de nosso sistema político, por isso as
autoridades estão todas desbaratinadas diante da movimentação popular, impossibilitadas de decifrá-la. Enquanto
conseguiram manter o povo fora do centro da ribalta — o povo atuando apenas como
coadjuvante, como massa de manobra —, elas se acostumaram a enxergar o jogo
político como uma disputa partidária, uma luta entre projetos de poder
concorrentes. Os últimos acontecimentos, no entanto, conseguiram acuar situação e oposição no corner.
Engana-se quem imagina que a gritaria atual não
tem nada a ver com a qualidade geral do serviço público, com os recentes escândalos
de corrupção, com o fato de a população ter de arcar com a maior campanha
publicitária da história deste país (a Copa do mundo e as Olimpíadas). Todos esses
fatores estão emaranhados; os vinte centavos são apenas a ponta do novelo.