“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se deve acender uma candeia e colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e assim iluminar a todos que estão na casa” (Sermão da Montanha)Numa época de homens enfraquecidos e covardes, que esperança restará se nem nós, mulheres, sairmos em defesa de nossos filhos?
Está impressa na memória de todos a imagem de soldados marchando para guerras, carregando bandeiras, embarcando em navios e deixando para trás mulheres e filhos chorosos. Ainda que o povo brasileiro não tenha passado por nenhuma guerra recente, a imagem do pai arriscando a própria vida para defender e salvar sua mulher e filhos é mais que simbólica – parece fazer parte da ordem natural das coisas. Porém, em tempos de hoje, a ordem natural parece ter saído de moda.
Assistimos todos com pacífica indiferença ao Superior Tribunal Federal aprovar com folga a legalização do aborto em caso de anencefalia. Deixando de lado a discussão absurda sobre se o feto sem cérebro é ou não um ser humano (seguindo o conselho do Filósofo: discutamos sobre tudo, mas não sobre se o céu é azul) vou ao que importa: as conseqüências quase inevitáveis dessa decisão.
O fato de não ter havido nenhuma manifestação mais expressiva do que frases em twitters e facebooks mostra que, sim, a população brasileira já está amaciada quando o assunto é liberação do aborto. Está se tornando feio ser contra a legalização, remexer nesse assunto que já não é tabu em países desenvolvidos - como anuncia a mídia com um suspiro de satisfação. Ninguém quer dar a cara a tapa para defender crianças anencéfalas que viverão dias insuficientes para agradecer pelo esforço. O problema é que as coisas não irão parar por aí.
Basta ter um pingo de noção sócio-política (e confesso não ter mais que um pingo) para notar o rumo que as coisas vão tomando. A proposta de legalização do aborto em casos de anencefalia foi feita pela CNTS em 2004, mas só agora a votação foi realizada – por quê?
Depois de eleições em que o tema foi parar na berlinda e a população recebeu como promessa de campanha que o aborto não seria legalizado no Brasil, vimos, faz poucos meses, surgir um novo nome para a tal “Secretaria de Políticas para Mulheres”: Eleonora Menicucci. A nova ministra, além de ter sido “colega de cadeia da presidenta”, é como que PhD em políticas e técnicas abortivas. A feminista que foi colocada para assegurar o bem-estar das mulheres brasileiras assegurou-se de passar a vida toda se dedicando à legalização e prática do aborto – em toda e qualquer circunstância. Ora, objetará o bom senso, mas foi legalização do aborto de anencéfalos e não do aborto “aborto mesmo”. Ah, é?
Lembro-me de quando das eleições um rapaz foi parar na cadeia por distribuir panfletos anti-abortistas, e teve aquela manifestação na Sé, e discursos inflamados na internet de pastores e padres e até o Papa se manifestou... E então eu pensei: Ufa, seguraremos essa peteca por bons anos ainda; afinal, não será fácil aprovar na cara dura uma medida que é abominada por quase noventa por cento da população. Como eu fui ingênua. Boba de pensar que esses mestres da manipulação social tentariam fazer as coisas assim, como fazemos todos. Não, eles são muito mais espertos.
Quem seria firme o suficiente em sua convicção anti-abortista para recusar à mulher, grávida de um filho com os dias contados, o direito de antecipar o inevitável e evitar todos os possíveis traumas provenientes da extensão desse sofrimento? Quem seria contra o aborto de anencéfalos num país que já se acostumou com a ideia do aborto-por-estupro? Para além do absurdo de condenar à pena capital um filho inocente pelo crime de seu pai, o aborto-por-estupro abre como prerrogativa a preservação da “saúde psicológica da mãe”, que nesse caso (e agora no de anencefalia) vale mais que a vida do filho. Muito poucos, na verdade, se alarmariam com mais essa concessão, e muitos aceitariam a medida, é verdade que meio a contragosto, tentando com isso aliviar aquele peso na consciência de não poder ser assim tão radical. E é exatamente aí que a malícia faz a festa.
Quando o STJ aprovou (sabe-se lá como, considerando que eles são o judiciário) o aborto de anencéfalos alegando a defesa da saúde mental da gestante, abriu-se a porteira para todo tipo de absurdo jurídico. Será questão de tempo até que várias doenças congênitas, malformações e síndromes dos mais diversos tipos entrem no balaio. O argumento geral só precisará de uma retorcida aqui e ali para valer para inúmeros casos (o bebê cego, o bebê aleijado, o bebê autista, o bebê com pé torto) todos eles causarão futuros traumas psicológicos e deverão ser, com todo o suporte do Estado de direito, picados e sugados para fora dos úteros de suas mães – que, coitadas, graças a isso poderão seguir curtindo sua vida sem dor.
A aprovação do aborto por motivo de deficiência do feto cria um nó moral: a quem é permitido julgar a validade de uma vida? Ao Estado? Às mulheres? Agora que se pode matar um filho “porque já ia morrer mesmo”, quanto tempo restará até que se possa matá-lo “porque o mundo é cruel”, “porque ele seria pobre”, “porque não quero minha barriga flácida”, “porque tenho a minha liberdade”? Ora, existe um grande perigo em se colocar valores acima da vida – principalmente quando se trata da vida dos outros (sim, porque os fetos são outros). E ao ceder ao aborto por anencefalia, os brasileiros estão por tabela aceitando a descriminalização do “aborto mesmo”. Sim, assim desse jeito, sem nem perceber. Estão aceitando um inevitável futuro sangrento para nossas crianças só porque não querem ser assim tão radicais. Percebam: é questão de tempo.
Que homens crescidos e magistrados façam isso contra seus pequenos compatriotas já é alarmante, mas que mulheres (mulheres!) aceitem isso como um direito e ainda se sintam lisonjeadas por saberem que agora os filhos de sua nação poderão ser mortos, para mim, é absolutamente inexplicável. Homens e mulheres favoráveis ao aborto para mim são simplesmente loucos. E por isso aqui não falo com eles, mas com aqueles que tendo a cabeça no lugar não têm, no entanto, força suficiente para falar mil vezes contra o aborto em toda e qualquer circunstância. Tomemos cuidado, pois estamos lidando com cobras astuciosíssimas que se valerão de todos os recursos para atingirem seus objetivos.
Por isso cabe a nós – seres humanos já nascidos e crescidos, tão orgulhosos de nossa iluminada razão – usarmos de nossa condição para garantirmos a esses indefesos pequeninos o direito – dado a eles pela própria natureza – de chegarem um dia a ver a luz desse mundo.