Em primeiro lugar, noto que a linguagem condenatória usada nesse item é muito mais forte do que qualquer linguagem utilizada em qualquer folheto de Missa ou agregados (folhetos como esse, distribuídos paralelamente ao da Missa), mesmo ao falar de pecados graves como o aborto (a linguagem é em geral algo como "Que nossa sociedade saiba respeitar a vida").
Em segundo lugar, noto que essa é a forma preferida de muitos setores do clero brasileiro de fazer política: esgueirar posições definidas em orações para que ao povo caiba apenas dizer Amém. Não me parece uma maneira particularmente honesta de se fazê-lo, dado que nas orações rezadas na Missa devam estar princípios básicos e universais da Fé e suas consequências para a vida cristã, e não uma opinião sobre a usina de Belo Monte. Não sou fã do governo Dilma, e nem tenho opinião definitiva sobre o caso em si (tendo a ser a favor da construção), mas uma coisa é absolutamente certa: não há, na proposta de se construir uma hidrelétrica numa selva, nada que faça dela intrinsecamente má e indefensável para um católico. E por isso é tão desonesto colocar a oposição a ela (como ao agronegócio, às madeireiras, às mineradora. Notem que a oração não se restringe às ilegais) como um ponto a ser pedido em oração por todos os fiéis. O que aconteceu com a responsabilidade de cada um de formar sua consciência e se posicionar de acordo? Por isso é que as manifestações políticas no culto público da Igreja e nas manifestações da hierarquia deve ser sempre abrangente, até genérica, buscando condenar o vício e exaltar a virtude sem tomar partido. A exceção a isso são aqueles casos em que alguma política violafrontalmente a dignidade humana ou a Fé, como legalizar o aborto, liberar a pedofilia, instituir a escravidão, proibir o sacerdócio, etc. Nos outros, por mais claros que possam parecer a algum bispo (ou, o que é mais provável, ao grupo de leigos e/ou religiosos que deve cuidar da redação desses folhetos), o mínimo de prudência demanda que sejam mantidos fora do culto público e das manifestações oficiais do clero.
Essa virtude da formação da consciência e da autonomia individual é rara no Catolicismo. Quem dera fosse algo que faltasse apenas aos remanescentes da TL, que são cada vez menos e mais fracos. Ela se estende, no entanto, a todo o panorama político de dentro da Igreja.
Primeiro há os já citados TL, que com base em alguns pronunciamentos do papa Paulo VI e ações de ordens religiosas nas últimas décadas defende que, para o cristão, a defesa do socialismo é obrigatória. No lado contrário, há os tradicionalistas, cujo papa of choice é Pio IX e que elevam suas condenações à "sociedade moderna", à "democracia liberal" e ao Estado laico ao patamar de dogmas. Fora da monarquia confessional não há salvação. Por fim, entre a galera ortodoxa que compõe o lado mais solar e positivo do Catolicismo, há a defesa da "doutrina social da Igreja", tratada como se fosse uma coisa única, com propostas bem claras e inequívocas sobre o bem comum, e que redundam em defender uma social-democracia cristã estruturada mais ou menos como os Estados atuais só que com menos liberdades sexuais e reprodutivas e com menos violações legais da vida humana.
Há ainda um quarto grupo, o menor e facilmente o mais ridículo de todos, formado por católicos liberais e libertários. Eles são mais ridículos porque se tem algo difícil de se defender com base no magistério é o liberalismo. Mas, para padrões atuais, Leão XIII (que foi quem inaugurou a chamada "doutrina social da Igreja"), que reinou em fins do século XIX, é bastante liberal; e há ainda a pouco conhecida contribuição da Escola de Salamanca (séculos XVI a XVIII), formada de importantes pensadores católicos, que tinham posições surpreendentemente liberais e avançadas economicamente. Dado que os frades da Escola de Salamanca não constituem magistério oficial e são um capítulo de exceção na história da Igreja (assim como é toda a tradição tomista da qual eles descendem), a defesa das opiniões deles como a verdadeira tradição católica é, no mínimo, dúbia.
Eu sou um católico liberal, isto é, defendo o livre mercado como melhor forma de se organizar a sociedade, indo a limites considerados bem extremos pela opinião comum (privatização de ruas, de rios; fim das leis trabalhistas; Estado restrito à defesa dos direitos individuais; etc.). Mas não o faço por acreditar que essa seja a posição do magistério católico. Certamente não é e nunca foi. Também sei, contudo, que não existe UMA posição do magistério. Cada papa que se manifestou defendeu algo diferente, ainda que os princípios básicos sejam os mesmos.
Leão XIII era mais ou menos um liberal clássico, embora bem menos liberal que os liberais de sua época. Pio XI defendia o Estado corporativista típico do fascismo (condenando, contudo, o nacionalismo, o racismo e o militarismo). Paulo VI era mais socialista, condenando a ambição e exortando as sociedades a pagarem mais impostos inclusive para aliviar a pobreza dos países africanos. João Paulo II já tinha uma postura bem mais "capitalista", reconhecendo a importância da propriedade privada e o papel essencial do empreendedor, ao mesmo tempo em que defendia generosas proteções legais aos trabalhadores. Bento XVI já tende mais para o Estado mais forte, chegando a defender uma autoridade política, e agora financeira, mundial.
Não costumo gostar muito das intervenções políticas dos papas e dos bispos. Entendo que eles se vejam no dever de guiar os fiéis; apenas acho que costuma faltar conhecimento de economia em muitas dessas manifestações. E nem tenho grandes problemas com a hierarquia pensar diferentemente de mim; meu problema é que muita gente usa essas manifestações para defender posições com base na autoridade eclesiástica, sem ter que defendê-las racionalmente. Assim, mesmo um bispo ou um papa liberal, coisa que me animaria muito, poderia ter um efeito negativo se fosse o de reforçar nos fiéis (nos melhores fiéis, isto é, nos que se importam com a Igreja institucional e que tentam iluminar suas opiniões pela Fé) a ideia de que a discussão política deve se resolver com apelos à autoridade.
Há duas posições que me parecem erradas. Uma é essa: fazer da política e a economia questões de fé, de adesão a pronunciamentos de autoridades. A outra é tornar essas questões totalmente independentes da Fé. Em alguma medida elas certamente são, tanto que há ateus em todos os pontos do espectro político. Mas o cristão que se posicione politicamente tem que iluminar sua posição com a luz da Fé, e essa posição deve se harmonizar com aquilo que ele acredita sobre o homem e seu papel neste mundo. Mas é possível fazer isso honestamente e chegar a diferentes respostas. E por isso mesmo, e porque vivemos num mundo no qual muitos não partilham de nossa Fé, a discussão deve se dar no plano da razão, e não no da autoridade. Pior ainda se essa autoridade introduzir sorrateiramente suas posições altamente polêmicas num momento em que os fiéis se reúnem para o culto público a Deus.