Olha só, eram duas da tarde e eu estava atento com a movimentação da rua; eram duas da tarde, e eu não estava dormindo não. Estava acordado, de olho na rua, vendo o que acontecia. Lá pelas tantas, vi um carro estacionar do outro lado, um carro cinza, da cor do asfalto, como um bicho camuflado (um bicho?). Do carro, saíram duas mulheres, uma vesga, as duas de óculos escuros... Como sei que uma era vesga? Sabendo, ué. É o tipo da coisa que a gente logo vê, sente de longe. Uma mulher vesga é sempre uma mulher vesga, mesmo de óculos escuros. Pois então. Saíram duas mulheres de óculos escuros do carro, uma delas vesga, atravessaram a rua e tocaram a campainha de casa. Não sei se me viram espiando da janela, mas certamente a vesga, se me viu, fingiu que não — às vezes, depois do almoço, fico invisível. A mulher que não era vesga (era loura) tocou mais uma vez a campainha, a campainha aqui de casa, e eu, ali, espiando, escondido. “Não tem ninguém”, disse a loura, “Espera mais um pouco”, disse a vesga, “ainda sinto o cheiro dele”. Eram umas duas da tarde. Lembrei que tinha deixado a tv ligada lá embaixo e que elas poderiam escutar se fechassem bem os olhos e fizessem força assim. A tv ligada conversava com o silêncio do sofá vazio. Dessa vez, ao invés de tocar a campainha, uma das mulheres socou a porta, socou a porta e disse: “Abra, sabemos que você está aí, só viemos buscar o que é nosso!”, foi assim que ela disse assim, arranhando a porta. “Vão embora daqui!”, eu gritei daqui de cima, “Vão embora daqui e me deixem em paz!”, e elas se entreolharam, deram de ombros, combinaram que não me ouviam. “Vão embora daqui!”, eu gritei de novo, até que meu peito quase estourasse, e elas, nada — ficaram paradas, mastigando a brisa. “Abra; só queremos falar com você”, a vesga disse num tom sentimental, quase piedoso. Eu não vou abrir essa porta, pensei. Elas, se quiserem, que arrombem a porta; eu vou ficar aqui na cama, dormindo. Não que eu tivesse medo delas! Eu tinha sono, só isso, sono e um bocado de preguiça, afinal, tinha acabado de almoçar e costumo ficar com os nervos moles depois do almoço, os nervos moles escorrendo pelo corpo, me puxando para baixo, me pregando ao chão, onde eu me arrastava pesando uma tonelada, que é quanto pesam meus nervos do lado de fora do corpo. Então fechei os olhos e pensei: “Só hoje”.