Figuras públicas como o Lula ou o Gianecchini têm certa proximidade para os brasileiros. Querendo ou não, o câncer do Gianecchini mexe com a minha mente mais do que o câncer de um empresário X sobre o qual eu porventura leia num jornal. Muita gente gosta do trabalho do Gianecchini. Muita gente detesta. Mas, quando sua doença veio a público, as manifestações, mesmo de quem não gosta dele, foram basicamente de apoio.
Lula não. No caso dele, o câncer gerou manifestações de apoio e de repúdio. Isso porque o tipo de relação que temos com ele é diferente da relação para com um ator famoso. Gianecchini é ele mesmo; um homem que pode gerar simpatia ou repulsa, mas ainda assim é sempre visto como uma pessoa, e portanto temos um vínculo muito mais direto com ele. Lula, e os políticos em geral, mais do que vistos como indivíduos, representam valores e formas de se governar um país. Para o público que detesta o Lula, e que não o conhece pessoalmente, a pessoa real (e desconhecida) se perde atrás de sua persona pública e dos valores que ela representa. Ele vira um inimigo pessoal impessoal: desperta uma repulsa pessoal sem que se conheça sua pessoa.
E o oposto ocorre com seus fãs: vêem nele um amigo pessoal, que no fundo é impessoal. Assim, existem dois Lulas no imaginário popular: um calhorda oportunista, inescrupuloso, estuprador, semi-analfabeto, bêbado, mentiroso, orgulhoso; e um batalhador honesto, amigo do povo, simples, sincero, sábio, alegre. Um deles arruinou o Brasil; o outro o salvou.
É sempre uma falta de delicadeza tratar a doença alheia com leveza ou como instrumento de debate. A morte é mais séria do que a política. Mas dependendo do contexto, uma indelicadeza pode ser justificada. É imoral mandar Lula se tratar no SUS? Certamente é indelicado. Só que poucas das pessoas que dizem isso falariam a mesma coisa se conhecessem o Lula pessoalmente, caso em que, aí sim, o comentário seria indesculpável.
Mas para quem não o conhece, qual o grande problema? Pense num daqueles sujeitos cujas mortes hilárias foram parar nos Darwin Awards. É profundamente imoral achar graça nelas? Não. Mas e se a mãe de um deles estivesse do seu lado, você trataria o assunto com a mesma leveza? Uma morte é sempre séria para quem morre e para quem é próximo dele; não para o mundo inteiro o tempo todo.
O que mais me chamou a atenção foram as reações viscerais dos fãs de Lula às manifestações sobre sua doença. Para eles as brincadeiras e as ofensas são como ofensas a um amigo. Mas Lula não é amigo deles; o Lula com quem eles se relacionam é tão fictício quanto o Lula dos odiadores. A reação dos fãs, então, fica parecendo orgulhosa, hipócrita. Fica parecendo que eles próprios usam a doença do Lula para fins políticos; no caso, para o fim político de silenciar a oposição na base da culpa forçada. Agora que ele está com câncer, ficou proibido falar mal.
Aos que se chocam com a maldade dos que provocam Lula neste momento, proponho um exercício de autocrítica: as piadas com o Alzheimer de Ronald Reagan mexeram com vocês da mesma forma? As manifestações comuns desejando a morte (ou coisa pior!) para Bento XVI causam-lhe a mesma indignação? Talvez você mesmo tenha feito esse tipo de comentário antes?
O comentário sobre o SUS faz sentido como provocação política. É insensível, é indelicado; mas essas considerações só se tornam importantes nos casos de proximidade pessoal. Para a grande maioria dos brasileiros, Lula é um objeto de discussão política. Como sempre, seria ótimo se as demonstrações públicas de profunda indignação moral, que são a marca por excelência da hipocrisia, baixassem de tom. Fazer pouco do câncer do Lula não é ser psicótico; não mais do que rir da morte do ladrão de covas que foi soterrado pela terra que ele próprio escavava.
Ainda assim, quem usa a doença do Lula para manifestar seu repúdio a seu governo ou ao PT faria bem de lembrar que, para além do debate político, existe uma pessoa real que, quaisquer que sejam seus defeitos, deve estar passando por um drama pessoal daqueles. Embora não exista nenhuma ligação humana direta entre eu e Lula, acredito que há um laço sobrenatural que liga todos os homens, mesmo os que não se conhecem. E daí, ainda que se use a persona no debate político, pode-se também lembrar da pessoa - que nunca deve ser usada - e querer o melhor para ela; não o SUS.