Algumas semanas atrás tomei conhecimento do blog Cem Homens, um produto inequivocamente de nossa década: originalmente, a autora, que escreve sob pseudônimo, queria ter relações sexuais com cem homens ao longo de 2011 e relatar suas experiências e descobertas. Acho que por volta dos 30 o projeto desandou e o blog virou mais um fórum de suas opiniões sobre a sexualidade em geral. Hoje em dia, ela está em relacionamento aberto com um sujeito, e garante que é muito melhor do que o relacionamento exclusivo: o mesmo amor, menos a paranoia e a possessividade.
A primeira pergunta que surge sobre o site é o porquê do fracasso do projeto. Ele lhe trouxe grande ansiedade e sofrimento, mas fica a dúvida: isso se deveu a algo intrínseco ao modo como ela tratava o sexo ou à reação hostil de muita gente ao blog? Pois é chocante o tamanho do ódio que ela despertou. Na minha mente, a oposição viria primariamente do Cristianismo, e quem não tem religião ou não a leva muito a sério não veria problema nenhum numa mulher ter 100 parceiros num ano; até acharia legal. How wrong I was! A principal reação negativa, expressa com extrema virulência, veio de gente que não está nem aí para as coisas do céu; seguidores do que eu chamo de moral fisiológica, que é basicamente o pensamento moral espontâneo da humanidade: uma mistura de alguns insights válidos, pulsões biológicas, conformismo e lei do mais forte. Não entendo bem o que move esse tipo de visão, que condena violentamente na mulher, com desejos de morte e expressões de nojo, o que tolera e até exalta no homem. Enfim, o homem médio é secularizado, mas não liberado (particularmente vergonhoso, na minha opinião, é quando um cristão apela às expressões e juízos da moral fisiológica para ganhar uns pontos fáceis com a plateia; assunto para outro post, talvez).
E eu me pus a pensar: o que eu vejo de errado na conclusão final da autora, da superioridade do relacionamento aberto? Suponho que, por mais honesta que ela tente ser, a honestidade total consigo mesmo ou com outros é uma meta inalcançável. É bem capaz que exista um lado sombrio dessa escolha de vida: ciúmes e inseguranças inescapáveis pelos quais ela passe em silêncio (vide o relacionamento de Sartre e Simone de Beauvoir). Mas ignoremos essa possibilidade e aceitemos sem reservas o que a autora dos Cem Homens diz: o relacionamento aberto tem o amor sem o ciúmes, a diversão sem a insegurança. Nesse caso, qual o problema com ele? Há algo de mau nesse arranjo ou todos os seus problemas se devem ao preconceito social de que ele é vítima? O que há de mau em se ter relações sexuais com vários parceiros sem compromisso?
É curioso pensar que, dentro do Cristianismo, a resposta a essa pergunta tenha mudado substancialmente; uma verdadeira guinada de 180 graus. Nos primeiros séculos da Igreja, na época dos Santos Padres, o sexo era visto como um ato puramente carnal, animalesco; uma vitória das paixões sobre a razão, um prazer terreno certamente contrário ao amor ascético a Deus. Assim, o sexo precisava de motivos para ser desculpado. Os pensadores dos primeiros séculos viam dois motivos possíveis: 1) reprodução e 2) remédio da concupiscência (isto é, fazer sexo com a mulher ou com o marido era uma maneira de acalmar os desejos incontroláveis e evitar, portanto, que se fornicasse por aí). Uma terceira motivação, sexo por prazer, era unanimemente vista como pecado. O Ocidente (Europa ocidental e norte da África), mais rigorista, privilegiou o primeiro motivo; para Sto. Agostinho, por exemplo, mesmo o sexo para evitar fornicação era pecado venial - para quem não sabe, pecado venial significa o pecado leve, que não nos priva da graça de Deus; é um atrasar do progresso rumo a Ele, e não um desvio da rota. O Oriente (Bizâncio, Egito e Oriente Médio), mais tolerante com a fraqueza humana, privilegiou o segundo. Mas ambos tinham uma visão negativa do sexo: ele se desculpava ou como necessidade instrumental da procriação ou como triste concessão à natureza humana decaída. E só. Sendo justo com os Padres, ninguém nunca disse que o sexo era pecaminoso em si mesmo (embora, para Sto. Agostinho, ele raramente ocorresse sem pecado mesmo dentro do matrimônio), e muito menos que era impossível aos casados se salvar. O matrimônio foi sempre visto como santo e o amor dos casados também; mas não se via, entre todos os autores do período, relação nenhuma entre amor conjugal e relação sexual. Defenda-se como quiser a visão dos Santos Padres, estou convicto de que, hoje em dia, é impossível assentir a ela honestamente. A condenação estoica das paixões, que eles tomavam como natural, nos é inacessível, e nossa cultura nos tornou incapazes de ver o sexo como algo puramente fisiológico, sem relevância emocional, psicológica ou mesmo espiritual.
No Ocidente a visão negativa do sexo até se intensificou. Um Santo Padre mais tardio, S. Gregório Magno, ensinava que todo e qualquer prazer sexual era pecado venial. Essa visão talvez estivesse conosco até hoje, não fosse o feliz advento do nosso querido S. Tomás de Aquino. Em matéria sexual especificamente ele era bastante agostiniano e menos avançado que seu professor, S. Alberto Magno, mas mesmo assim seu posicionamento já marcou uma guinada com relação ao passado: não há nada de mal no prazer sexual em si. Pelo contrário: no Paraíso, Adão e Eva teriam mais prazer sexual do que temos neste mundo decaído. É pecado ter o prazer como finalidade, mas não experimentá-lo. Essa tensão não se resolve: por um lado, o prazer é natural, bom e criado por Deus como um incentivo para que o homem faça os atos que preservem sua vida e sua espécie; por outro, deixar-se levar por esse incentivo era pecado.
Nas gerações e séculos seguintes o debate seguiu com defesas mais tolerantes do prazer e sua importância na vida humana. Ter o prazer entre as motivações não é pecado, pode ser algo bom se for perseguido com moderação, etc. Mas notem: ainda assim, ainda com todo esse avanço, nenhum dos envolvidos na discussão via como motivação pessoal para o sexo algo além do prazer, ou seja, algo que o homem tem em comum com os animais. O sexo permanecia desumanizado.
Contemporânea a essa discussão nascia e se desenvolvia um nova visão do amor e do sexo: o que podemos chamar de amor romântico. Hoje em dia Cristianismo e a visão romântica do amor caminham juntos, e muitos podem supor que sempre foi assim. Mas o fato é que eles nasceram separados, e mais, antagônicos. (Um dos grandes méritos da Igreja, na minha opinião, é ser capaz de incorporar elementos que nasceram fora dela, sempre segundo o princípio da relação entre graça e natureza: a graça não substitui a natureza; ela a eleva e aperfeiçoa.) O amor romântico nasceu, até onde sei, nos séculos XI e XII no sul da França: no amor cortês, nos trovadores e nos romances de cavalaria, que cantavam a devoção absoluta do homem por sua amada, o adultério e o sexo não-reprodutivo; talvez tenha chegado lá por influência árabe.
Nossa concepção do amor entre homem e mulher é herdada deles por meio da literatura e das demais artes, que nunca mais largaram esse osso. Para ver como essa concepção não é originalmente cristã (assim como não o era o estoicismo dos Santos Padres ou a ética aristotélica de S. Alberto e S. Tomás), basta ressaltar algumas de suas características que perduram até hoje. Por exemplo, a pouca ênfase dada por ela ao matrimônio, que no Cristianismo é o divisor de águas; o importante para a concepção romântica é que exista o amor verdadeiro, e não contratos e reconhecimentos públicos. Outra ideia difícil de conciliar com o Cristianismo é a noção de alma gêmea que dela se originou: existe no mundo uma pessoa que é seu par perfeito, e sua felicidade e realização pessoal dependem de você encontrá-la e se unir a ela. Ocorre que sua alma gêmea não é necessariamente seu cônjuge, e daí já viu. E mesmo ignorando a abertura que essa ideia dá para o adultério, a noção de que a completa realização humana se dê já neste mundo é contrária ao que ensina o Cristianismo, segundo o qual a plenitude pela qual nossa alma anseia está em Deus, e não nos homens.
Concorde-se ou não com esses pontos, há algo inegavelmente verdadeiro no amor romântico: a relação homem-mulher vai muito além de seu papel social e biológico. Ademais, ele não é um fardo, um mal necessário neste vale de lágrimas; é um dos vínculos mais profundos e recompensadores que existem, e como esse vínculo não é apenas espiritual mas também carnal (de fato, ambos são indissociáveis neste campo), o sexo tem profunda relevância emocional e espiritual, ao contrário da visão antiga do sexo como puramente animal. Entre o homem e a mulher que se amam se forma o desejo de partilhar o que cada um tem de mais precioso e pessoal. O sexo é a culminação física dessa partilha da intimidade, a manifestação e celebração do amor que une o casal. É um símbolo da comunhão e da união das almas dos dois amantes. É um ato intensamente carnal e propriamente humano; focar no seu componente mecânico ou animal é perder de vista sua importância. Por isso a sexualidade é algo muito mais delicado e profundo do que, digamos, o desejo de comer (com o qual era comumente comparada), esse sim basicamente animal. Nossa auto-estima e felicidade, toda nossa estrutura psicológica e emocional, estão diretamente ligadas ao sexo. Há muito mais em jogo na cama do que na mesa.
Ao contrário de outros tipos de amor, o amor romântico é necessariamente pessoal, exclusivo. Não se pode amar romanticamente "aos homens", e nem se pode dividi-lo entre vários, justamente por seu caráter de intimidade e confiança. E como o sexo decorre desse amor e desse partilhar de intimidades, a fidelidade sexual é um requisito necessário para seu pleno florescimento. Ao se fazer sexo, se se entrega inteiramente ao amado, e se demanda que ele se entregue inteiramente a nós, sem reservas de ambos os lados. Quem está disposto a partilhar seu amante com outros ou não o ama ou não ama a si mesmo.
No amor romântico, exclusivo, está contida uma promessa: a promessa de uma felicidade a dois que deve ser construída. A imagem do casal que envelhece e se tornam cada vez mais próximos é até mais cristã do que romântica, mas ao incorporar o amor romântico o Cristianismo abriu-se à integração do sexo nessa relação e à permanência da paixão na vida a dois. Essa incorporação demorou muitos séculos para ocorrer: a primeira menção explícita do ato sexual como motivado pelo amor num autor eclesiástico se deu no século XIX; e o desenvolvimento de uma integração cristã do amor romântico e do sexo como traçado acima apenas no século XX.
O curioso, contudo, é que apesar do desenvolvimento tardio da teoria, havia na Bíblia e na prática cristã imemoriável amplo respaldo para essa visão. O Genesis coloca a união "em uma só carne" entre homem e mulher como uma realidade da vida no Paraíso (à qual Cristo fará referência no Novo Testamento, dando a entender que, por mais que tenha sido degenerada, a natureza humana preserva a capacidade dessa união oriunda do estado de perfeição original); o Cântico dos Cânticos é um hino ao amor espiritual e carnal; e mesmo S. Paulo, quem originou a visão do sexo como remédio da concupiscência, tem coisas positivas a dizer sobre ele. No que diz respeito à prática da Igreja, o sacramento do matrimônio, no Ocidente, é entendido como sendo ministrado não pelo padre, mas pelos próprios noivos, e só pode ser ministrado pela livre vontade dos dois, e de mais ninguém. Além disso, sua consumação se dá só com o ato sexual. Apesar de toda a ênfase na procriação, o que importa para o Sacramento não é capacidade de se reproduzir, mas a de ter uma relação sexual. A esterilidade não é impedimento ao matrimônio; a impotência é.
Tudo isso para dizer que, numa perspectiva cristã atual, a resposta ao questionamento inicial é que, sem a fidelidade, perde-se a oportunidade de se criar um tipo de amor e de felicidade inacessíveis a quem trata o sexo como só mais um prazer da vida. O sexo é um prazer, aliás, um dos maiores prazeres, mas justamente porque envolve muito mais do que uma brincadeira a dois; e reduzi-lo a isso é renunciar à profunda alegria a dois que ele promete. E conforme o caráter se conforma à prática, a própria capacidade para essa alegria do amor exclusivo pode ser perdida. Há uma promessa nessa crença, pois ela não pode ser imediatamente verificada; tem que ser vivida. Há na relação a dois uma escada para o alto; mas é preciso construí-la.