Ninguém gosta de guerra. Ao menos ninguém o diz publicamente. Destruição, violência, fogo, armas, mortes, lutas; gostamos no cinema, não tanto na vida real. Seria ótimo se não houvesse mais guerras no mundo; se todos os homens vivessem em paz e harmonia, e se a própria possibilidade de conflito bélico acabasse (o que é, obviamente, uma impossibilidade para o mundo real, mas acompanhem o raciocínio). Não haveria mais bombas nem exércitos. Todos estariam melhor e mais felizes. Com uma exceção: os militares.
Há gente cuja grande vocação é defender a pátria no campo de batalha, pegar em armas para lutar e matar o inimigo, quem sabe morrendo em combate. Gente que se realiza pensando estratégias de guerra, ou criando e testando novas armas. Para todo mundo que está na carreira militar por escolha (e não por falta de escolha) a ideia da paz eterna deve produzir um sentimento ambíguo: por um lado, reconhecem a desejabilidade de tal cenário. Por outro, ficariam sem rumo na vida.
A vocação dos militares envolve mortes violentas e destruição de propriedades; eles se realizam fazendo o mal a outros (ainda que esse mal relativo esteja articulado a uma causa absolutamente boa. Não estou falando nada contra a guerra aqui. Há guerras justas sim e é ótimo que tenhamos soldados. Estou apenas apontando que, consideradas em si mesmos, os atos cometidos numa guerra são maus). Então, por mais simpatia que tenhamos por eles, seríamos todos a favor da paz universal.
Há uma vocação, contudo, que se assemelha à do soldado em depender (parcialmente) de algo mau, mas ao contrário dela não comete atos maus em sua atuação: a do filósofo. Nesse caso, desejar o bem universal e eterno seria uma decisão muito mais difícil. Assim como o soldado combate os inimigos, o filósofo combate as opiniões (que ele considera) equivocadas.
Existem muitas opiniões discordantes e inconciliáveis no mundo. Elas não podem ser todas verdadeiras ao mesmo tempo. Portanto, existem erros no mundo. É o alguém estar errado que dá origem às discordâncias, que dá origem às discussões e aos argumentos. Frequentemente, ambos os lados de uma discussão estão errados em alguns pontos e certos em outros; ainda assim, em cada uma das discordâncias entre os dois lados haverá pelo menos um erro em um dos lados. Se ambos estivessem corretos sobre o mesmo assunto, concordariam, e não haveria discussão.
Imagine que o erro sumisse do mundo; que todas as opiniões humanas fossem verdadeiras. Seria o fim de toda discussão, pois não haveria mais discordância real em nada. Ainda haveria ignorância; os homens não seriam oniscientes, e precisariam aprender. Assim, teríamos professores; e teríamos filósofos, gente que tenta ir mais fundo que os demais no conhecimento da realidade. Mas grande parte do sabor da filosofia, que é a discussão de ideias, seria perdida. Comunicaríamos uns aos outros nossas descobertas, e eles por sua vez nos informariam de outras coisas. Esqueça os filósofos e suas discussões etéreas; o que isso faria com a conversa normal de amigos durante uma festa? Alguém afirma algo. Um outro diz: "concordo!". Um terceiro diz: "É verdade, e além disso blá blá blá." O primeiro responde: "Ah sim, muito bem colocado!". No máximo, alguém duvidaria de uma informação e pediria uma prova, que seria dada, e fim de papo.
Suponhamos que a filosofia verdadeira seja o tomismo (um tomismo ideal, corrigido dos erros que porventura contenha e com capacidade explicativa para acomodar potencialmente tudo que o homem viesse a descobrir). Todos os filósofos seriam tomistas. Todos pensariam e ensinariam conforme o Contra Impugnantes, que seria também o modelo de todos os livros, revistas, blogs e tweets. Nenhuma genuína variação; apenas diferentes graus de profundidade e detalhamento de uma mesma escala. Tentem imaginar o que isso significaria.
Não haveria a variedade de opiniões e concepções de mundo que torna a vida interessante. O professor do departamento cujos artigos de jornal nos dão ódio; o revolucionário aloprado; o vegano radical; o fascista; o stalinista; o anarquista; a feminazi; o kantiano; o utilitarista; o ateu cientificista; o místico guenoniano; o católico tradicionalista; o polemista judeu anti-cristão. Enfim, um mundo sem erros seria muito mais sem graça.
Mas o objetivo de toda discussão é convencer o outro lado de uma verdade, e uma das consequências é diminuir a quantidade de opiniões discordantes no mundo. Portanto o que toda discussão busca é um estado final no qual não haveria discussões. E esse estado final seria muito pior do que o estado atual, com seus erros formidáveis.
Portanto, mesmo o mundo perfeito teria que ser imperfeito?