É preciso ter cuidado
por que não se acompasse
o pulso do relógio
com o pulso do sangue,
e seu cobre tão nítido
não confunda a passada
com o sangue que bate
já sem morder mais nada.
— João Cabral de Melo Neto, “Uma faca só lâmina”
Desejo-te ter eterno
e reconheço-te máquina:
porque dentro de ti pulsa
estranha bomba-relógio.
Costumava contemplar-te
como a planta que se abre
uma vez e não termina
de elaborar seu perfume:
se no tempo começaste,
se houve na vida o momento
de respirares primeiro,
desde então és para sempre.
Eternamente te quero
a renascer como o sol,
dia a pós dia, faceiro,
a esconder-se, somente,
jamais pensando em morrer,
desconhecendo o que é morte,
e que nos priva de vê-lo
só por amor das auroras.
Costumava assim dizer-te
da confiança que tinha
quando deitava em teu peito
a turbulenta cabeça
e descansava sabendo
que ali ao menos havia
terreno seguro, alento:
o teu coração batia,
o teu coração batia,
o teu coração batia...
Como nunca escutei antes?
Que essa música macabra
antes mais te arrebatava
do que sempre nos unia.
Eis teu coração dizendo,
e ouço-o distintamente:
— Esgoto a cada batida
a vida que te dá vida.
O meu compasso é certeiro,
meus passos, comprometidos.
— Esgoto a cada batida
a vida que dá sentido
à tua vida dorida.
Perdoa-me, assim fui feito.
Tal sinfonia escutando,
de terra, sangue e metal,
bater-te no magro peito
inconseqüente e indefeso,
esqueço a noção do tempo
e imirjo no dom vital
e imirjo no dom vital
que assim nos uniu exatos,
indefectíveis, porquanto
nem mesmo a ausência de vida
que já te sinto no encalço
e às vezes se me oferece
a objeto do meu desejo
apaga a luz desse beijo
mortal, sanguíneo, espectral
que eu deposito na fronte
do teu coração batendo.