Cheguei a isto. Depois das promessas e garantias que tudo ia
bem – a quem eu estava enganando? Não ia bem. Não vou bem. Passei a noite em
claro; a anterior também. Não lembro do último sono bom que tive. Isto é, sem a
ajuda desses remédios para dormir e para acordar e para sorrir e para olhar nos
olhos de quem me odeia. Joguei-os todos fora. Escrevo com a cabeça limpa e
os olhos claros. Não, não estou escolhendo a morte. Escolho não mais usar o que
me deixava desse jeito, viva (viva?) mas sem a única coisa que importa na vida.
De que vale um sorriso sem a chama interior? De que vale dormir sem o sonho?
Passei anos sem conseguir juntar um verso. Agora, finalmente, posso criar.
Juro que pensei que seria diferente. Acreditei no sonho da poesia, que é na verdade a negação da poesia. Não conhecia a hipocrisia, os cochichos,
os convites que não chegavam a mim. Tudo por quê? Porque não sou como eles?
Como vocês? Não escrevo movida pelo ódio. Digo sem medo que não vos odeio;
quero apenas alertá-los. Julgávamos ser a nata de uma nova elite cultural e
intelectual do mundo, quando na verdade reciclávamos vaidades. O que descobri nos
últimos meses é o quanto mesmo nossos supostos momentos de honestidade eram vaidade. Não sou a primeira a dizê-lo: vanitas vanitatum, et omnia vanitas.
De que me valeram as láureas? Dos mesmos pares
que hoje fingem que não me veem e se afastam de mim nos jantares nos quais eu
ainda apareço? Hic transit gloria mundi. Sendo sincera, mesmo naqueles dias em que tudo parecia ir bem, em que eu me sentia
no topo do mundo; não, em que eu queria
me sentir no topo do mundo. Em que eu me sentia
na obrigação de me sentir no topo do mundo. Mesmo naqueles dias, um vazio
crescia dentro de mim. Talvez por causa daqueles dias. Um vazio que ainda
cresce e que esta noite terá sua chance de dizer a que veio.
Tudo o que importa é o que não conseguimos dizer. Minha vida
não vale nada se eu não expressar a verdade que há em mim; e só me interessa o
inexpressível. Aquilo que podemos apontar sem nunca se apossar. A coisa, e não
o conceito. Se há esperança de se chegar a ela, não é pela tagarelice
dos intelectuais e filósofos; o que vale a pena ser dito é aquilo que só a
poesia – e possivelmente nem a poesia – possa dizer. Ansiei, em vida, em dar voz
a essa verdade, que está além das citações e das referências e da erudição; roupagens que escondem um rei nu.
Deixo minha afeição nestes últimos momentos a todos os meus
amigos e ex-amigos; vou sem mágoas, ciente de que escolho a única redenção que me
é possível. Queria poder prometer-lhes a afeição eterna, mas não acredito nela.
Não digo, vejam, não digo nem mesmo que a vida eterna seja uma quimera, uma
impossibilidade. Digo que ela pode existir. Digo que ela tem que existir e indubitavelmente existe para certas pessoas. Mas a
mim cabe a finitude – a eternidade me é impossível, pois é só perante o vazio
que me vêm os poucos momentos de lucidez. Não os trocaria pela sopa de lentilhas de uma vida eterna. Ainda que me lançassem ao inferno, valeria a pena: tudo que me interessa
está neste instante de passagem do ser ao nada.
Há verdades – nisso eu acredito – que só se expressam in extremis. Que só se podem colocar em
palavras nas experiências limítrofes entre ser e não-ser. No arrebatamento do amor quando carne se funde em
carne. Bem sei o quanto eu o desperdicei, e também como essa possibilidade me é
negada, agora, em definitivo. Jean, se você ler isto, e sei que lerá, saiba que
o buraco negro que me suga por dentro começou com a ferida por você deixada.
Tampouco o culpo; o vácuo interior já estava lá, e você só fez um pequeno rasgo na membrana
que o separava do vácuo exterior. Em verdade, agradeço-te. O vento que me entala a garganta sussurra o seu nome.
Sem mais delongas. É hora da decisão da qual não pode haver
arrependimento e nem perdão. Meus pés já sentem o vento gelado do abismo. Há coisas que só se revelam no limiar da morte. Repito que não estou escolhendo a morte; escolho o momento de clareza que ela proporciona. Que em minha queda final, o
último grito revele o sopro de vida que a vida sufocou. A Deus (sive Natura)
entrego minha alma; aos homens, meu último - meu único - lampejo de luz em meio à noite que a tudo engolirá.
K.
***
[nota do editor: K. foi encontrada morta em sua escrivaninha,
com ambos os pulsos cortados. Em uma página separada, ao lado da carta copiada acima, estava seu último poema, escrito a pena com o sangue do pulso
esquerdo, que segue reproduzido abaixo.]
***
Chorando se foi quem um dia só me fez chorar;
Chorando se foi quem um dia só me fez chorar.
Chorando estará, ao lembrar de um amor
Que um dia não soube cuidar.
A recordação vai estar com ele aonde for;
A recordação vai estar pra sempre aonde eu for.
Dança, sol e mar, guardarei no olhar
O amor faz perder encontrar
Lambando estarei ao lembrar que este amor
Por um dia um instante foi rei.
Canção, riso e dor, melodia de amor,
Um momento que fica no ar.
Ai, ai, ai
Dançando lambada