Repetir-me-ei um pouco. O artigo a seguir foi publicado na Gazeta do Povo, de Curitiba. Como meus leitores assíduos repararão, muito do que há nele já foi dito por mim no artigo "O Legado de Bento XVI". Contudo, como há também algo novo - uma análise de um possível significado da abdicação - julguei que faria sentido publicá-lo aqui no blog também.
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Quando Bento XVI anunciou sua abdicação, muitos se
apressaram em apontar os pontos negativos que teriam marcado seu pontificado: a
crise da pedofilia ou o conservadorismo de uma hierarquia que perdeu o contato
com o mundo moderno. São pontos injustos.
A crise da pedofilia, por exemplo, data de muitas décadas, e
se estoura agora é em parte pelo esforço de gente como o cardeal Ratzinger, que
adotou uma postura de tolerância zero com os molestadores. Já o conservadorismo
de Bento XVI nada mais é do que acreditar na doutrina católica de sempre. Ainda
que partes desse corpo doutrinal possam mudar no futuro (como, no passado, mudaram
diversos ensinamentos), não deveria chocar o fato da autoridade máxima de uma
instituição defender suas doutrinas oficiais.
Para mim, o legado de Bento XVI é outro: é a restauração da
liturgia, cujos resultados são visíveis até na minha paróquia. É o esforço
ecumênico, manifesto no diálogo com a Igreja ortodoxa e na criação do
Ordinariato para que anglicanos entrem em comunhão com Roma. É o aumento de
transparência nas contas do Vaticano. Por fim, penso nos escritos e falas do
papa mais intelectual da era moderna, e que, curiosamente, atraiu quantidades
inauditas de jovens à Jornada Mundial da Juventude.
Quem esperaria um papa que lê Marx e Nietzsche? Ou que faz
um elogio do amor erótico, harmonizando-o ao amor cristão? A fama do Bento XVI
obscurantista não resiste à leitura de seus textos. É um homem convicto do
ensino oficial da Igreja, o que pode irritar a muitos; mas não é fechado ao
diálogo e ao novo. Uma de suas criações, inclusive, foi o Átrio dos Gentios,
uma iniciativa para promover o diálogo entre intelectuais católicos e
intelectuais representativos da cultura secular, cujos méritos ele sempre
reconhece, ao mesmo tempo em que vê nela muitas limitações.
Seu último legado é, sem dúvida, a abdicação. Ao renunciar,
Bento XVI desmistifica um cargo que, pelos últimos 500 anos, mistificou-se além
de qualquer limite. O bispo de Roma não é um super-homem, não é automaticamente
mais santo ou sábio que o resto dos mortais. E não tem linha direta com Deus
para que lhe cochiche verdades ao pé do ouvido. É um homem como todos nós, com
suas inseguranças e falhas. Alguém que, para aprender, usa os únicos meios
disponíveis: estuda, pensa, reflete, discute. Sua linha direta com Deus é a
mesma que a de todos os outros crentes: a oração, na qual fé e incerteza andam
de mãos dadas.
O papado é apenas um cargo. Os católicos acreditam que seu
ocupante, que tem uma responsabilidade docente perante a Igreja, nunca ensinará
algo que viole o conteúdo essencial da fé ou da ética cristãs. Fora essa
crença, cuja aplicabilidade nunca foi perfeitamente elucidada, o papa é um
homem normal eleito por meios humanos. E, como todo homem, se cansa e se
enfraquece na velhice. Ao ressaltar o caráter humano do papado, Bento XVI nos obriga
a olhar para o mistério divino que jaz além das carolices que sufocam e
mundanizam a verdadeira fé.