Não sei o que dizer sobre a abdicação de Bento XVI, por isso
decidi escrever um texto a respeito.
Quanto aos motivos da renúncia, sem dúvida o que o papa
disse é verdade: ele está fraco para os fardos que o ofício exige. Entre esses
fardos, sem dúvida, deve figurar a intensa oposição que enfrenta dentro da
própria Igreja.
A grande mídia, como de costume, foi muito injusta com o
papa, selecionando apenas aqueles pontos de seu pontificado que reforçam, para
quem olha de longe, a imagem de um retrógrado altamente reacionário a vociferar
contra um mundo liberal que deseja apenas ser feliz. Esses são os “pontos
principais” do pontificado selecionados
pelo G1: “O papado do conservador alemão foi marcado por algumas crises,
com várias denúncias de abuso sexual de crianças e adolescentes e acobertamento
por parte do clero católico em vários países, que abalou a igreja, por um
discurso que desagradou aos muçulmanos e também por um escândalo envolvendo o
vazamento de documentos privados por intermédio de seu mordomo pessoal, o
chamado ‘VatiLeaks’, que revelou os bastidores da luta interna pelo poder na
Santa Sé.”
Faltou dizer: o abuso sexual sistemático – que acometeu
igualmente a diversas instituições, não só religiosas (o ensino público americano,
por exemplo, foi palco da mesma exata dinâmica perversa) – é um problema de
décadas, bem como o acobertamento. E Bento XVI foi, tudo considerado, alguém
que se portou de forma exemplar, com tolerância zero para com abusos e sem
conivências vergonhosas para salvar “a imagem” da Igreja. É uma crise, mas não
começou no pontificado dele e nem consta que a postura dele tenha deixado a
desejar.
O discurso que “desagradou aos muçulmanos” é um enorme não evento,
a não ser por seu valor filosófico e histórico, que era muito bom. A revolta
muçulmana foi comparável a de charges de jornal com Maomé. E de todo o modo, se
irritar alguns muçulmanos fanáticos for uma falha, é, se tanto, de relações
públicas.
O Vatileaks de fato marcou o período final do papado, mas novamente ele não
evidenciou nada que desabone ao papa, e como até hoje o vazamento das cartas em
si tenha recebido muito mais destaque do que o conteúdo de qualquer uma delas, é
bem provável que o “escândalo” caia no esquecimento em breve.
Para mim, o pontificado de Bento XVI teve outros pontos memoráveis.
A ênfase no aprimoramento da liturgia, que incluiu a liberação do rito antigo e
o maior cuidado com como se celebra o rito novo. A jornada mundial da juventude
na Espanha, em 2011, que reuniu 2 milhões de pessoas. O ordinariato para a
inclusão dos anglicanos à plena comunhão com a Igreja católica. As medidas para
tornar públicas e transparentes as finanças do Vaticano. A criação do “átrio
dos gentios”, uma inciativa que visa a estreitar os diálogos entre intelectuais
e cientistas católicos e ateus/agnósticos. Por fim, as encíclicas e demais textos e falas de Bento XVI, que
revelam inteligência e erudição e apontam para a possibilidade de se ser ortodoxo e, ainda assim, intelectualmente vivo.
Assim, acho curioso que vejam Bento XVI como um terrível
conservador. Alguns falam até em um papa nazista, isso sim uma mentira
pura e simples. Ratzinger, de família antinazista, tendo perdido um primo
com síndrome de Down para as políticas genocidas de Hitler, foi forçado a se juntar à juventude nazista,
e nem mesmo comparecia às reuniões mandatórias, sendo nisso ajudado por um
professor benevolente que falsificava a lista de presença em seu favor. Claro,
ele poderia ter se negado abertamente
a participar e ser mandado para a morte em algum campo de concentração, como alguns
de fato fizeram. Mas levantar tal falta de um heroísmo belo, embora quixotesco,
contra um adolescente de 15 anos (!) me parece fora de propósito. Por fim,
próximo ao fim da guerra, sem ter lutado diretamente, desertou o exército.
O mito do nazismo é um golpe de mídia. Mas e o
conservadorismo empedernido? Uma coisa podemos afirmar: Bento XVI acredita na
doutrina oficial da Igreja tal qual ensinada no Catecismo. Quem olha de fora
talvez não perceba o tamanho da revolução que seria mudar algo aparentemente
inócuo: passar a aceitar, por exemplo, a licitude moral da pílula
anticoncepcional. Pelo ensino oficial atual, isso não é algo que sequer o papa
possa mudar, dado que a lei moral não é determinada pela vontade humana. O que
não quer dizer que o ponto não devesse ser discutido com muito mais honestidade
e abertura...
Enfim, no campo das doutrinas, especialmente morais, Bento
XVI foi (e será ainda por duas semanas) um papa ortodoxo e que segue e reflete
o ensinamento que chegou até ele. Um ensinamento que, se por vezes é inflexível
para com certos atos, é também – ou tenta ser, dentro de suas restrições –
receptivo a todos. A condenação aos “atos homossexuais” e aos casais de segunda
união vem sempre aliada à compaixão para com eles e à afirmação de que todos,
heteros e homos, divorciados ou não, são igualmente pecadores. Por mais que se
questione ou discorde da postura da Igreja quanto à homossexualidade, ela não é
homofóbica; pelo contrário, condena as tentativas de se humilhar ou hostilizar
os homossexuais.
Em outros campos, Bento XVI é extremamente aberto: em sua
relação com outras religiões e, especialmente, com outros grupos e igrejas
cristãs, como protestantes e ortodoxos. Vejam o que o Patriarca
de Constantinopla disse sobre a abdicação: “Rezamos para que o Senhor manifeste
um sucessor digno para a Igreja irmã de Roma, e que possamos com ele continuar
nossa jornada em comum pela unidade de todos rumo a glória de Deus”. Uma tal
afirmação vinda da autoridade honorífica da Igreja ortodoxa representa um
progresso ecumênico formidável. O mesmo se dá para com o diálogo de pessoas da
Igreja com intelectuais seculares, ateus e agnósticos. Bento XVI não foi, de
forma alguma, um papa ranzinza fechado para o mundo. A acusação de
conservadorismo tem muito mais de sensacionalismo do que de justiça.
A injustiça midiática, contudo, foi ajudada pelas
falhas de relações públicas e de procedimento do próprio Vaticano. Ninguém lá
percebe que, em meio ao aparecimento generalizado de casos de abuso sexual
infantil, posar de mestra moral do mundo e condenar a camisinha e a
homossexualidade pega um pouco mal? E
pega mal com razão. A Igreja é muito ciosa de sua existência como pessoa
jurídica, como a instituição impessoal, com hierarquias e regras claras e que,
por isso mesmo, pode emitir doutrinas “vindos do céu”, e não pensadas por
indivíduos concretos ao longo da história. Sendo assim, o papa, como líder e
representante máximo da instituição, tem o dever de responder pelos atos de
seus membros e que foram permitidos e agravados pela dinâmica interna de
autopreservação institucional. Bento XVI se esforçou para cumprir esse dever
(com algumas lacunas, como a omissão de encontro a vítimas no México, terra dos
Legionários de Cristo), mas ao mesmo tempo não viu incoerência em adotar
discursos moralistas em outros contextos, quando talvez o mundo precisasse de
um exemplo de humildade.
O papa e os cardeais próximos a ele e seus funcionários
vivem em um mundo à parte, sem a menor ideia de que a reverência e o servilismo
que vigora em seu meio não reflete o que a população normal, mesmo católica,
está disposta a aceitar. Estão acostumados a tomar decisões sem nenhum diálogo,
ou, o que é até pior, apenas com a aparência de diálogo. Nos últimos anos,
muitas vozes de dissenso receberam um “cala a boca” do Vaticano, algumas simplesmente
perdendo toda a base de sua existência. A um longo e omisso silêncio segue-se um ato canônico definitivo e implacável como raio em céu azul (algo similar, penso, ao infeliz episódio de escolha da reitoria da PUC-SP). O conflito que se anuncia com um enorme
grupo de freiras americanas, se o Vaticano endurecer o jogo, é sério; e o mesmo
vale para um grande grupo de padres austríacos. Se a faísca for lançada,
sabe-se lá que outros grupos contribuirão para o incêndio.
Conheço mais de uma pessoa cuja conversão ao Catolicismo se
deu, em parte, pela influência do pensamento de Bento XVI. Lembro também que
compareci a uma audiência pública dele em Roma no início de 2006, acompanhado
de agnósticos que, embora sem nenhuma inclinação a se converter, ficaram bem
impressionados com sua erudição e profundidade (a esse respeito, recomendo as considerações
de Marcelo Coelho a seu respeito).
Talvez seja a produção intelectual o maior legado de Bento
XVI. Se sua administração não foi marcada pela capacidade do diálogo interno,
preferindo o silenciamento e as sanções institucionais, ele próprio é
extremamente afeito à troca de perspectivas e a consideração aprofundada das
questões com que se depara. Mesmo que para discordar (como discordo da proposta
da ONU como uma espécie de governo mundial feita na encíclica Caritas in Veritate – na questão
política, é interessante notar como João Paulo II era mais afeito ao
empreendedorismo e à livre iniciativa em geral), elas nos mostram uma mente
profunda, erudita e equilibrada (quem, no mundo não católico, esperaria um papa
que cita Marx?), mas, mais importante do que isso, iluminadas pelas chamadas
virtudes teologais: a fé convicta na revelação de Deus ao mundo, pela esperança
de que todos possam encontrar a redenção, e pela caridade viva que busca
sinceramente trazer todos à luz de Cristo. Virtudes que, sem dúvida, ele
continuará a exercer mesmo destituído do cargo de uma instituição jurídica que,
embora de certa maneira indispensável, é também um obstáculo ao seu exercício.