A única entidade que pensa, quer e age é o indivíduo humano. Países não o fazem; raças não o fazem; bairros não o fazem; nem empresas; e nem Estados.
Nós, é claro, atribuímos ações a essas entidades impessoais. Quem vende os produtos se não a empresa que os produziu? Não é o João, gerente de vendas da empresa X, que é dono dos produtos e os vende pessoalmente para um comerciante do varejo. Ele atua em nome da instituição, e falamos como se fosse ela agindo. A ação, contudo, continua sendo dele tanto quanto se fosse uma venda de um objeto pessoal, mas é interpretada, tanto por ele quanto pelos outros membros da sociedade, como sendo não atribuível a ele pessoalmente (a não ser que ele tenha inserido nela, por iniciativa própria, algum outro elemento, como uma fraude para ganhar um dinheiro por fora). Toda e qualquer ação institucional é, na verdade, ação ou ações de certos indivíduos que são interpretadas como pertencendo à instituição.
Essa interpretação, contudo, está nas mentes; e é dúbio até que ponto essa manobra mental é capaz de isolar a pessoa de seus atos institucionais. O soldado que mata fica imune aos danos psicológicos de se tirar vidas violentamente? O empregado que só seguia ordens ou regulamentos é, por isso, isento de culpa?
Embora ficcional, o atribuir existência e atos a instituições é muito útil para nossa vida em sociedade. Nossa vida seria impensável sem pessoas jurídicas. Mas a ficção legal continua sempre sendo ficção, e se tomada como verdadeira, leva a enganos. No âmbito das instituições comuns de nossa vida (Estado e empresas), leva à impressão de que a sociedade - e todos os serviços e infraestrutura que ela implica - é algo automático, feito por entidades impessoais. As empresas estão aí provendo seus serviços, e sempre foi assim, e se algo falhar é porque alguém resolveu mexer onde não devia. Na verdade, mesmo os fatos mais banais do cotidiano, como a padaria ter um pão pra te vender, dependem de uma malha tão complexa de ações conscientes e voluntárias - que não têm nada de necessário e que podem mudar a qualquer momento. Isso leva à falta de perspectivas individuais (vê-se a realidade institucional do mundo como algo eterno e inalterável, alheio às ações das pessoas que de fato compõem o mundo) e ao sentimento de que o mundo nos deve algo, dado que tantos bens e serviços são produzidos automaticamente, sem esforço humano nenhum.
Quero, contudo, apontar para a distorção de perspectiva que nos acomete quando pensamos na Igreja como uma pessoa jurídica; isto é, como uma entidade que pensa, deseja e age mas que é, ao mesmo tempo, impessoal.
A Igreja é o conjunto dos fieis nesta vida e na próxima; não vou entrar em detalhamentos precisos: serão só os batizados? E os batizados que não se consideram parte da mesma Igreja? Uso o conceito católico atual da Igreja como consistindo de todos os fieis e abarcando mesmo gente que não é católica mas que é boa e por isso pode participar implicitamente dela. Pensemos, contudo, nos membros que são implícitos e explícitos: ou seja, os católicos em comunhão uns com os outros. Havia uma distinção básica na Igreja desde sempre: alguns de seus membros eram ordenados, capazes de ministrar uma série de Sacramentos , e outros não. Esses ordenados, descendentes dos apóstolos (lembrando que o bispo é o indivíduo plenamente ordenado, e todas as outras ordens são como que uma ordem parcial).
Enfim, o grupo dos fieis desde muito cedo aderiu à institucionalização, e com bons motivos: é preciso organizar de alguma forma a vida sacramental: saber quem é sacerdote e quem não é; quem é batizado e quem não é, saber quem pode se casar, etc. Alguns dos elementos da institucionalização estavam dados desde as primeiras gerações de cristãos: a divisão territorial das comunidades, cada uma sob os auspícios de um bispo. A reunião de muitos bispos em concílios para determinar as crenças e as práticas que devem se estender a todos. Cada vez mais, contudo, foi ganhando espaço o termo "a Igreja" como agente, coisa que hoje em dia é universal, embora o platonismo dos primeiros séculos do Cristianismo seja indefensável e mesmo impossível para nós (lembro-me da perplexidade de C. S. Lewis frente ao argumento patrístico de que toda a Humanidade pecou em Adão).
Usa-se "a Igreja" para se referir a uma série de coisas: em geral, são os clérigos, ou mesmo a cúria papal, ou mesmo apenas o papa. Mas ao se omitir a referência específica, despersonaliza-se o ato ou, o que é mais relevante, o pensamento. Se dizemos que a Igreja ensina algo, fica parecendo que uma entidade impessoal emite juízos caídos do céu. Se damos nomes aos agentes - por exemplo, "o papa X disse isso usando este e aquele argumentos, que têm sido repetidos desde então" - a aparência sobre-humana cai. Não quer dizer que o papa X não estava dizendo uma verdade, ou que o Espírito Santo não o impediria de dizer um erro naquele contexto, mas ficamos sem a muleta da ficção jurídica para nos ajudar a embasar uma posição.
Se a Igreja é composta de todos os fieis, então os bispos, ou um bispo específico, são uma parte da Igreja. Não podem falar por toda ela. Eles têm uma autoridade docente - ou talvez seja melhor falar em uma responsabilidade docente -, mas isso não tira deles, nem mesmo do bispo de Roma, a necessidade de aprender e argumentar como todas as outras pessoas do mundo. Esquecer disso permite que caiamos em afirmações como esta: "Ora, mas a Igreja não foi feita para acolher a todos? – Sim, mas quem não quer abdicar de suas opiniões para seguir a fé da Igreja já tem uma religião – a do egoísmo -, não precisa vir à Igreja Católica… Esta não deve mudar para se adaptar ao mundo; são as pessoas que precisam se conformar aos ensinamentos de Cristo."
Quando uma opinião, defendida historicamente por membros específicos da Igreja, adquire status de fé da Igreja? E como saber se um dado ensinamento bate ou não com o que Cristo ensinou? O católico está em vantagem automática sobre os demais ao ler a Bíblia e procurar entender o que se diz lá? Por que é egoísmo discordar de algum ponto do ensino oficial atual e não é egoísmo defender esse mesmo ponto? Se a imensa maioria dos fieis, dos padres e mesmo dos bispos acreditar em algo, isso é irrelevante. Mas não foi exatamente esse critério de universalidade que foi usado no passado para definir diversos ensinamentos e distinguir o que era e o que não era verdadeiro? Seja como for, parece-me claro que há uma pretensão epistemológica muito grande e infundada nos defensores mais ardorosos da ortodoxia (e a ortodoxia de hoje não é idêntica à ortodoxia de outras eras); e a nebulosidade de uma Igreja PJ, que fala e pensa por si só e não depende da mente de indivíduos específicos (embora, bem saibamos, só eles pensam), ajuda a confirmar essa pretensão.
Uma pretensão que fornece uma dose de conforto - "não preciso pensar por mim mesmo, a Igreja já o faz; " - mas que, assim como os atos das pessoas jurídicas, não nos eximem da responsabilidade de pensar e ver com os únicos olhos de que dispomos: os nossos.