domingo, 17 de março de 2013

O sequestro do parnasianismo na literatura brasileira

por Emmanuel Santiago

Da esquerda à direita: Alberto de Oliveira, Raimundo Correia e Olavo Bilac

Olavo Bilac, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Francisca Júlia, Vicente de Carvalho, Luís Guimarães. Apenas a menção destes nomes é capaz de fazer a esmagadora maioria daqueles que os reconheçam torcer o nariz. O parnasianismo é, de longe, o movimento literário mais menosprezado de nossas letras, pois a imagem que dele persiste foi a que Mário de Andrade nos legou em Mestres do Passado, série de sete artigos publicados em 1921, no Jornal do Comércio. No primeiro, o que temos é o necrológio da poesia parnasiana:

Ó Mestres do Passado, eu vos saúdo! Venho depor a minha coroa de gratidões votivas de entusiasmo varonil sobre a tumba onde dormis o sono merecido! Sim: sobre a vossa tumba, porque vós todos estais mortos! E se, infelizmente para a evolução da poesia, a sombra fantasmal dalguns de vós, trêmula, se levanta ainda sobre a terra, em noites foscas de sabat, é que esses não souberam cumprir com magnificência e bizarria todo o calvário do seu dever! Deveriam morrer! Assim conclama, na marcha fúnebre das minhas lágrimas, a severa Justiça que não vacila e com a qual vos honro e dignifico! Deveriam morrer! A vida vegetal a que se agarraram, [sic] não se coaduna com o destino dos muezins de uma arte do tempo incessante, dos troveiros alados, dos cortesãos da Beleza fugitiva!...
Vivos alguns, embora! despejo sobre vós, ó Mestres do Passado, os aludes instrumentais de meu réquiem; e acendo junto à cruz dos vossos monumentos, sobre os vossos crânios vazios, a fogueira da consagração contemporânea! (ANDRADE in BRITO, 1974, p. 257)

Em tempo: Alberto de Oliveira só morreria em 1937, dezesseis anos depois, portanto, de Mário de Andrade ter decretado sua morte literária. Embora as críticas do autor de Pauliceia desvairada não sejam de todo destituídas de justiça — a despeito de seu tom provocativo e beligerante —, elas acabaram projetando sobre o parnasianismo pesadas sombras que até hoje não se dissiparam. Se Mário falava a respeito da persistência anacrônica do parnasianismo entre nós, do esgotamento e do esclerosamento de suas fórmulas, a crítica que lhe seguiu os passos foi além: sentenciou, retroativamente, a morte do parnasianismo desde o berço; desde então, ele figura em nossas antologias como um espectro natimorto e os poemas de seus representantes guardam um quê de relíquia macabra que convém não comentar, para não atrair maus augúrios.

Instituiu-se assim um erro de perspectiva que, para dizer o mínimo, distorce nossa compreensão da história da literatura brasileira. Via de regra, o parnasianismo é considerado como um desvio de rota entre os estertores do romantismo e os prenúncios do modernismo; um lapso no processo de formação de nossa literatura; um corpo exógeno que teria acometido um meio cultural débil, ainda sem os antígenos necessários para combater a constipação. Entretanto, à medida que analisamos a questão mais detidamente, percebemos que o parnasianismo foi um fenômeno quase que exclusivamente nosso, excluindo-se, é claro, o caso francês.

De acordo com J. Aderaldo Castello e Antonio Candido, em nenhum outro lugar do mundo o parnasianismo francês criou escola (CANDIDO & CASTELLO, 1974, p. 101). Em Portugal, por exemplo, teria havido, nas palavras do crítico português Duarte de Montalegre, apenas um escritor “estruturalmente parnasiano”: Gonçalves Crespo, que, coincidentemente ou não, era natural do Brasil. Segundo Montalegre, o parnasianismo português não teria passado de “uma tendência ou um conjunto de tendências (...): uma espécie de pendor mais ou menos geral, que, a despeito de pronunciado, não chegou a se definir”; uma tendência entre outras a compor o “ecletismo literário multíplice” dos poetas portugueses da época (MONTALEGRE, 1945, pp. 12-3). Situação semelhante à que se verificou nos países hispânicos da América Latina, nos quais elementos parnasianos se misturaram ao simbolismo e à influência da poesia norte-americana para compor uma corrente literária que ficou conhecida como modernismo.

Além disso, nem mesmo na França o parnasianismo conheceu duração tão prolongada, espraiando-se numa segunda geração de epígonos (os chamados neoparnasianos) e prevalecendo sobre o simbolismo. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux: “(...) o Neoparnasianismo é fenômeno particular da literatura brasileira. Aqui e só aqui fracassou o Simbolismo; e por isso o movimento poético precedente sobreviveu, quando já estava extinto em toda parte do mundo” (CARPEAUX, 1951, p. 197). Se tomarmos a Semana de Arte Moderna de 1922 como marco simbólico para o fim do parnasianismo, e admitindo, como Péricles Eugênio da Silva Ramos, a publicação de Sonetos e Rimas (1880), de Luís Guimarães, como a primeira expressão significativa de nossa poesia parnasiana (RAMOS in COUTINHO, 2004, p. 115), chegamos a nada menos do que 42 anos. Para efeito de comparação, lembremos que o romantismo brasileiro inicia-se em 1836, com o lançamento de Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, e só seria contestado de maneira consistente em meados de 1870 — culminando no episódio da Batalha do Parnaso, em 1878 —, num total idêntico de 42 anos. Todavia, enquanto o romantismo brasileiro apresentou uma maior diversidade de tendências, dividindo-se em três gerações discerníveis, o parnasianismo manteve maior coesão, mesmo entre os poetas de sua segunda geração e a despeito da incorporação de elementos simbolistas.

Portanto, ao contrário do que diz a opinião corrente, o parnasianismo foi um produto orgânico de nosso sistema literário e, apesar de sua origem francesa, conseguiu satisfazer a necessidade de exprimir conteúdos latentes da mentalidade do homem brasileiro. Apenas isso explicaria o enorme êxito que a escola logrou encontrar no Brasil das últimas décadas do século XIX e início do XX. Segundo o crítico português José Osório de Oliveira, o parnasianismo, “mesmo com todos os recursos à velha Grécia, como toda a inspiração mediterrânea, traduziu qualquer coisa da maneira de ser dos brasileiros. Digamos que certa feição da psique brasileira encontrou na poesia parnasiana o seu meio de expressão, e que, por isso, ao adotar o modelo estranho, nacionalizou-o” (OLIVEIRA, 1939, p. 112).

O “sequestro do parnasianismo” na história da literatura brasileira, pelo menos naquilo o que tem sido considerado seu desenvolvimento natural, gerou uma série de equívocos que precisam ser debelados caso se queira formar uma imagem mais real da constituição de nosso campo literário, que começa a se organizar, de fato, no período que assistiu à ascensão do parnasianismo à posição hegemônica em nossas letras.

Uma das principais críticas que se faz ao parnasianismo brasileiro é a qualidade, em geral baixa, de sua produção poética. É verdade que a média da poesia parnasiana seja, na verdade, medíocre. Entretanto, não se pode ignorar que a escritura de poemas era, à época, uma espécie de rito de passagem entre a juventude e a vida adulta. Tributários que éramos de um modelo educacional ainda fortemente calcado no estudo das então chamadas letras clássicas (enquanto na Europa começava a se dar prioridade a um ensino mais técnico e científico), era natural que nossos jovens encontrassem na produção literária, e na poesia em específico, um meio eficaz de participação na cultura de seu tempo, de modo que praticamente todo rebento de nossas classes letradas “cometesse” seus versos, embora poucos deles chegassem a investir numa carreira de escritor. A poesia servia então para conceder certo lustro intelectual ao futuro advogado, médico, funcionário público etc. A essa poesia de caráter diletante, somava-se a imaturidade dos poetas de ocasião (mal integrados ainda à vida adulta), criando uma avalanche de versos de qualidade duvidosa, na qual os lugares-comuns do parnasianismo, do simbolismo e de um romantismo tardio eram repetidos à exaustão. Uma situação bastante semelhante à que ocorria durante o romantismo, com a diferença que, embora a educação formal ainda fosse um privilégio, a ascensão dos estratos médios da população urbana representou um incremento significativo de nossas classes letradas.

É preciso fazer justiça à obra daqueles poetas que conseguiram elevar-se além da mediocridade que grassava em meio a tal coqueluche literária. Não sei ainda até que ponto Olavo Bilac, por exemplo, pode ser classificado como um grande poeta, mas devemos reconhecer que os sonetos reunidos em Via Láctea podem ser colocados tranquilamente ao lado de Marília de Dirceu como um dos grandes  exemplares de nosso lirismo amoroso, assim como o poema “O caçador de esmeraldas” não faz feio diante de O Uraguai, de Basílio da Gama, ou de I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. No mínimo, podemos dizer que Bilac era um grande poeta em relação ao nível que a poesia brasileira havia alcançado até aquele momento.

Não se trata aqui de propor uma reabilitação da estética parnasiana, nem de ignorar suas evidentes deficiências e limitações. Trata-se, na verdade, de tentar apreender o parnasianismo em sua real dimensão, como forma de compreender melhor um importante momento de nossa história político-social — relacionado à implementação do regime republicano no Brasil — e também literária, pois, afinal, poucos movimentos alcançaram tamanha popularidade entre seus contemporâneos, mesmo levando-se em conta a restrição que os baixos níveis de escolaridade impunham a sua repercussão social.


Referências bibliográficas:

ANDRADE, Mário de. “Mestres do Passado”. In: BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974, pp. 254-309.

CARPEAUX, Otto Maria. Pequena bibliografia crítica da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1951.

CASTELLO, J. Aderaldo & CANDIDO, Antonio. Presença da literatura brasileira: do romantismo ao simbolismo. 5ª ed. São Paulo: DIFEL, 1974.

MONTALEGRE, Duarte de. Ensaio sobre o Parnasianismo brasileiro. Coimbra: Coimbra Ed. Lda, 1945.

OLIVEIRA, José Osório de. História breve da literatura brasileira. Edição revista e aumentada. São Paulo: Martins Fontes, 1939.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. “A renovação da poesia parnasiana”. In: COUTINHO Afrânio (org.). A literatura no Brasil: era realista/era de transição. 7ª ed. São Paulo: Global, 2004, p. 91-149.
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