por Emmanuel Santiago
Depois de me desdobrar na caixa de comentários do blog,
tentando apontar o que, diante meus olhos, é um erro de avaliação de Bruno
Tolentino em relação à obra de Drummond, resolvi escrever esta postagem para
pôr os pingos nos i’s. Mas não me manifesto aqui como especialista na obra do
poeta mineiro, ou como profundo conhecedor de sua fortuna crítica, o que não sou. Manifesto-me,
na verdade, como leitor de Drummond desde sempre. De fato, meu primeiro contato com o universo da poesia, ainda em minha pré-adolescência, deu-se por meio dos livros de
Drummond, Neruda e Lorca que habitavam a singela, porém eficaz, estante de
livros de minha mãe.
Em Janelas sobre o caos, publicado originalmente na
Revista Bravo, no ano de 2000, Tolentino queixava-se da dificuldade em reunir
poetas contemporâneos para uma coletânea que lhe fora encomendada por uma
editora europeia. Tal dificuldade se daria, segundo sua percepção, por se estar
colhendo em terra desolada, desertificada. Na ausência de rumos da poesia
pós-cabralina (após João Cabral), a poesia brasileira supostamente se perdera. O mais
curioso, no entanto, foi a razão aventada por Tolentino para explicar tal
estado de coisas: Drummond, na condição de nosso “poeta maior”, teria causado
um estreitamento do horizonte, como as montanhas de sua terra natal, sempre a barrar a paisagem. Para usar termos mais técnicos: Drummond teria restringido
o campo das possibilidades poéticas para nós, brasileiros.
Não quero ma ater à discussão do que, para mim, é uma enorme
simplificação: atribuir a um único autor toda a responsabilidade pelo estado
atual da poesia contemporânea, ignorando, por exemplo, que a tradição literária
se desenvolve a partir de condições concretas de recepção, organizadas
socialmente. O que faz, por exemplo, de Drummond nosso poeta maior é menos a
percepção imediata da qualidade estética de sua obra (pois, no final das
contas, todo juízo de valor possui algo de discutível e depende, em alguma
medida, de disposições puramente individuais — meu xará Kant que me desculpe),
do que uma série de escolhas feitas no interior dos campos literário e
acadêmico, ou seja: houve um investimento social para elevar a poesia
drummondiana à posição que ela ocupa. Muitas vezes, os critérios dessas
escolhas nada têm de puramente estéticos. É bem comum que a disputa acerca da
obra de algum artista corresponda, na verdade, a uma luta por legitimação das
posições existentes no campo.
Não é por acaso que o concretismo, ao pretender se fixar
como a posição hegemônica em nossas letras, procurou reescrever o cânone da
literatura brasileira. Pense-se bem em qual foi a contribuição direta (em
termos de influência) que um poeta romântico obscuro como Sousândrade teria
dado ao desenvolvimento do concretismo. Nenhuma. O que ocorreu foi que os
concretistas encontraram, na obra do poeta maranhense, a confirmação das
posições defendidas por eles no campo literário. É claro que o paralelismo com
o caso de Drummond, poeta dos mais populares entre nós, é limitado, mas
usei-o aqui para demonstrar que há um caminho de mão dupla: não é somente a
obra que cria as condições de sua recepção; constantemente, tais condições
funcionam segundo uma dinâmica própria, exercendo um poder determinante sobre o arranjo das obras que compõem a série literária.
Estou dizendo isso sem ignorar o trabalho de críticos
avalizados como Harold Bloom — que atribui a Shakespeare um papel fulcral na
literatura do ocidente — ou de Eduardo Lourenço — para quem toda a literatura
portuguesa é um diálogo ininterrupto com a obra de Camões —, ou mesmo as
considerações de T.S. Eliot a respeito da tradição literária. Tampouco ignoro
os pressupostos das correntes teóricas que, a partir dos conceitos de
dialogismo e de grande temporalidade de Bakhtin, fizeram da intertextualidade a
chave para a compreensão do desenvolvimento da literatura. Ocorre que, no
entanto, tratar a literatura como um diálogo de autores que se dá no vazio,
acima ou além de um público organizado de acordo com uma estrutura que se
modifica respondendo a condições específicas, é fazer tabula rasa do problema
do estabelecimento do cânone literário.
Mas, como eu dizia, não é este o ponto ao qual quero me
ater. O fato é que, além da enorme simplificação do problema, Tolentino ainda
oferece uma visão completamente distorcida do que seria a obra de Drummond, o que
se concentra na seguinte passagem:
É nesse sentido que a intelectualidade dos nossos dias passou a mover-se dentro da moldura drummondiana do mundo. Os impulsos de transcendência, a inquirição metafísica, a busca de uma dimensão sacro-mítica, o mesmo intuito religioso que a poderiam erguer acima do “mundinho poetizado”, ainda que poderosamente, pelo grande vate, ao fim e ao cabo satisfazem-se e esgotam-se com a luta política inflada em meta suprema da existência. O social “per se”, a história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum, atingiram entre nós o nível de uma absurda paródia do sagrado, uma verdadeira (?) metafísica historicista, obviamente uma contradição em termos. Mas é justamente esta espécie de mal du siècle local que desbota e sufoca a vida do espírito no Brasil de hoje. Um impasse de suma gravidade, pois, como se há de moldar e afirmar o novo poeta maior dentro de uma moldura tão estreita e estrangulante?
Nada disso está, de fato, em Drummond. Não que a poesia de Drummond não tenha uma fase “engajada”, em que a adesão ao socialismo tenha ficado explícita. Se eu dissesse isso, muitos versos poderiam me desmentir, como por exemplo: “O poeta/ declina de toda a responsabilidade/ na marcha do mundo capitalista/ e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas/ promete ajudar/ a destruí-lo/ como uma pedreira, uma floresta,/ um verme” (“Nosso tempo”. In: A rosa do povo). Tais versos demonstram um momento em que qualquer preocupação estética submergiu frente ao comprometimento ideológico. Contudo, em primeiro lugar, é preciso considerar que tal poesia participante é apenas um momento da obra de Drummond, localizado entre 1940 e 1948 (de Sentimento do mundo a Novos poemas), no contexto da 2° Guerra Mundial, quando o socialismo soviético parecia se contrapor ao totalitarismo fascista (cf. “Com o russo em Berlim”. In: A rosa do povo) e ainda não se conheciam os horrores do regime stalinista; época de compreensível radicalismo. No livro de 1951, Claro enigma, há uma retração total dessa estética participante e a rosa do povo se fecha num hermetismo abafado, marcado, inclusive, pelo retorno a algumas formas tradicionais, como o soneto: “Eu quero compor um soneto duro/ como poeta algum ousara escrever./ Eu quero pintar um soneto escuro,/ seco, abafado, difícil de ler.” (“Oficina irritada”. In: Claro enigma).
Em segundo lugar, não é que a descrição de Tolentino se
adéque apenas a uma fase limitada do autor. Não. Ela não se adéqua, a
rigor, nem mesmo à fase participante do poeta itabirano. Em nenhum lugar da
poesia drummondiana a luta política é “inflada em meta suprema da existência”.
A luta política, mesmo quando defendida abertamente, é sempre um meio para se
atingir uma finalidade maior, que é a plena realização do homem; a meta suprema é
a liberdade e a felicidade, transformadas em patrimônio universal, para todas
as classes e grupos sociais. Além disso, desponta, aqui e ali, uma solidariedade com o ser
humano que se vê violentado em sua integridade pela violência e pela guerra, e o próprio poeta frequentemente desconfia da possibilidade
revolucionária: “A rosa do povo despetala-se,/ ou ainda
conserva o pudor da alva?/ É um anúncio, um chamado, uma esperança embora
frágil, pranto infantil no berço?// Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.”
(“Mário de Andrade desce aos infernos”. In: A
rosa do povo).
A ideia de uma “história idealizada como locus de um suposto progresso ad infinitum” é onde Tolentino erra mais
feio. A relação do homem com o tempo e com a história (que é o modo do homem
“estar no tempo”) é, de todos os temas da poesia drummondiana, talvez o mais
ambíguo. Há quase sempre uma ponta de pessimismo, de ironia, mesmo naqueles poemas de
proselitismo mais resoluto. De uma maneira geral, o que a passagem do tempo
desperta no eu lírico drummondiano é a consciência da finitude das coisas,
assim como do descompasso do ser com suas formas:
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas o amanhecer. (“Passagem do ano”. In: A rosa do povo)
Ou ainda, no poema Ontem:
Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.
De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.
Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado
não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo. (In: A rosa do povo)
Outro mal-entendido que Tolentino difunde sobre a poesia
participante de Drummond é a restrição ao “social ‘per se’”. Em Drummond,
todavia, o que vemos é o homem considerado em sua dimensão essencialmente humana. No poema que
serve de introdução a A rosa do povo
(“Consideração do poema”) encontramos: “Estes poemas são meus. É minha terra/ e
é ainda mais do que ela. É qualquer homem/ ao meio-dia em qualquer praça.
(...)”; em “O medo”: “Em verdade temos medo./ Nascemos escuro./ As existências
são poucas:/ Carteiro, ditador, soldado./ Nosso destino, incompleto.” (In: A rosa do povo); voltando a Sentimento do mundo, deparamos, em “Ode
no cinquentenário do poeta brasileiro” — poema em homenagem a Manuel Bandeira —, com:
“Que o poeta nos encaminhe e nos proteja/ e que o seu canto confidencial ressoe
para consolo de muitos e esperança de todos,/ os delicados e os oprimidos, acima das profissões e dos vãos disfarces do
homem.” (grifo meu).
Enfim, para que o leitor, por si mesmo, tenha a oportunidade
de verificar o que Tolentino desconsidera da fase participante de Drummond,
sugiro que leia “Caso do vestido”, “Morte no avião”, “O mito”, “Consolo na
praia”, “Retrato de família”, “Onde há pouco falávamos”, todos de A rosa do povo, apenas para ficar entre
os mais conhecidos.
Outro ponto que Tolentino parece estar completamente
equivocado é quando afirma que a poesia de Drummond não consegue se erguer
acima do “mundinho poetizado”, querendo dizer que tal poesia encontra-se
circunscrita ao cotidiano mais tacanho. Como espero já ter demonstrado,
atravessa toda a obra drummondiana uma reflexão constante acerca do homem em
sua relação com o tempo, com a história e com o mundo, isto é, da relação do
ser humano — considerado em sua essência, em sua humanidade — com as condições
de sua existência, sejam elas práticas (sociais, econômicas etc.) ou
ontológicas. Assim, o cotidiano aparece como pretexto, como o
trampolim para a especulação filosófica, não como sua âncora. Parece que
Tolentino, neste ponto, só consegue ter em vista o Drummond do “Eta vida besta,
meu Deus” dos dois primeiros livros (Alguma
poesia e Brejo das almas), que
realmente fez do cotidiano a matéria fundamental de sua poesia. Porém,
deixo para que meu leitor reflita sobre a justiça de se depreender todo um
achatamento filosófico da visão de mundo configurada na poesia drummondiana a
partir de dois livros que cobrem dez anos (os primeiros!) de uma obra literária
que se estendeu por quase sessenta anos.
Para mim, está claro que do que Tolentino se ressente é da
ausência de uma dimensão metafísica na cosmovisão drummondiana. Na ausência de
tal dimensão, a poesia de Drummond seria filosoficamente estreita. Isso só comprova as
ideias que apresentei no começo deste artigo. Bruno Tolentino não está apenas
discutindo a relação de Drummond com a poesia brasileira contemporânea. Ele
está, na verdade, procurando afirmar sua posição no campo literário,
como poeta afeito à metafísica, por meio da disputa em torno do nome de
Drummond; está procurando redefinir o campo literário, reconfigurando as
posições existentes no interior deste. Tolentino, que enxerga em Drummond a
grande referência para nossa poesia, trava combate contra um autor que, em sua
situação de poeta hegemônico, não legitima, não subscreve a posição do próprio
Tolentino no campo literário. Para que a poesia tolentiana pudesse ser
devidamente apreciada, era preciso que a configuração do campo fosse outra. O que Tolentino coloca em jogo por meio da figura de Drummond é a
projeção, em negativo, de sua própria poesia, de modo que atacar esse
espantalho retórico seria defender uma poesia nos termos em que ele, Tolentino,
propõe. Não há nada de errado com isso, pois é exatamente esse o modus operandi no interior do campo. O
problema está no fato de Tolentino desvirtuar completamente a obra de Drummond
para que ela atenda a seus interesses e a suas necessidades de argumentação,
transformando-a em nada mais do que um pálido espectro de seus ressentimentos pessoais.
Cabe ainda a objeção de que Bruno Tolentino se refere
menos à obra de Drummond (do que discordaria) do que do modo como esta foi lida
e apreendida no desdobramento ulterior da poesia brasileira. Ora, se a disputa
em torno do nome de Drummond faz com que os diversos grupos em concorrência
operem uma redução da obra do autor, dilacerando-a como
um bando de bacantes ensandecidas ao corpo de Orfeu, isso faz de Drummond mais
uma vítima do que um culpado. Isto é, se aqueles que se consideram os legítimos
herdeiros do legado da Semana de Arte Moderna, militantes de esquerda, tradicionalistas e críticos ligados ao
formalismo-estruturalismo reduzam, cada um a sua maneira, a poesia drummondiana
àquelas características ou possibilidades de sentido que melhor convêm à
posição defendida por eles no campo (que é o que o próprio Tolentino faz no
texto em questão), então o problema está antes nas posições concorrentes do que
em tal poesia. Como já disse, as condições de recepção de uma obra muitas vezes
têm pouco a ver com a obra em si, mas muito mais com a dinâmica interna do
campo literário ou acadêmico.
Creio que uma discussão em torno de como encontrar os nomes
significativos da poesia contemporânea, ou de por que não conseguimos
encontrá-los, deve começar partindo de uma análise das posições em jogo e da
configuração atual de nosso campo literário. Acho que talvez seja este o melhor
caminho para saber se “o tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e
espera”.