Le bât - Pierre Subleyras (1732) |
A pornografia é uma das mais persistentes manifestações do
espírito humano. Os homens pré-históricos já deixaram, gravados ou pintados sobre a pedra, inúmeros exemplos da
representação de atos sexuais e de órgãos genitais, enquanto algumas civilizações antigas — como
a hindu, a grega e a romana — atingiram um elevado nível de requinte em sua arte
pornográfica. Em tempos mais recentes, tão logo a imprensa, a fotografia e o
cinema se desenvolveram, foram utilizados na produção de material pornográfico,
constituindo uma indústria que, hoje em dia, por meio da internet, coloca um
volume crescente de conteúdo à disposição de um público cada vez maior. Da
pintura rupestre à banda larga, a pornografia sempre esteve presente na
história humana, provavelmente em todas as culturas e nos mais diversos meios de expressão.
Mas de onde vem esse interesse aparentemente inesgotável da humanidade pela
pornografia?
Como se sabe, a pornografia funciona de modo bem simples: ela oferece uma excitação dos sentidos ou da imaginação que, a partir do estímulo correto,
possibilita um descarregamento de energia sexual. Cientistas acreditam ter
desvendando a engenharia neurológica por trás desse processo. Em 1994, na
cidade de Parma, na Itália, alguns pesquisadores monitoravam o funcionamento do
cérebro de um macaco ao manipular objetos. Sempre que o macaco agarrava
alguma coisa e a movimentava, um determinado padrão de atividade cerebral se produzia. Certa vez, por acaso, o animal viu um dos pesquisadores levando um
sorvete à boca, o que produziu em seu cérebro um padrão de atividade semelhante
àquele verificado enquanto desempenhava algum tipo de ação — era como se o
macaco vivenciasse mentalmente a situação presenciada. Atribuiu-se o fato ao
que então passaria a ser chamado de “neurônios-espelho”, ou “células-espelho”.
Em 2001, também em Parma, outra pesquisa foi levada a cabo com o objetivo de
verificar se as mesmas células poderiam ser verificadas no cérebro
humano. Foram mostradas imagens de mãos, pés e bocas em
movimento para um grupo de pessoas; em resposta, a região do cérebro responsável pelo controle daquela parte do corpo se ativava.
A descoberta dos neurônios-espelho ajudou a compreender melhor
diversos aspectos da atividade mental humana. É por conta deles, por exemplo,
que bocejamos ao ver alguém bocejar, ou que salivamos ao ver, numa propaganda
de televisão, uma pessoa mordendo um suculento sanduíche. Tais células
cerebrais atuam ainda na aquisição da linguagem, auxiliam na
compreensão das intenções de outras pessoas e possibilitam nosso envolvimento
emocional com situações das quais não fazemos parte ou até mesmo com obras de
ficção. E, é claro, estão relacionados a nosso interesse pela pornografia, como
mostrou um estudo realizado em 2008, na Universidade Picardie Jules Verne, na
França, cujo objetivo era estabelecer a ligação entre a visualização de imagens
pornográficas e a ereção masculina. Nesse estudo, voluntários eram submetidos a um exame de
ressonância magnética enquanto assistiam a vídeos pornográficos. Registrou-se uma intensa atividade na região cerebral conhecida como pars opercularis, especialmente
abundante em neurônios-espelho. A excitação ocorreria porque, mesmo não estando cientes disso, os voluntários se projetavam na situação representada,
experimentando-a mentalmente, como se fizessem parte dela. Eis o mecanismo
por trás do voyeurismo e da pornografia. Contudo, os neurônios-espelho são também o fundamento neurológico de outros aspectos considerados mais nobres da
mente humana, como a moralidade.
Duas mulheres - Egon Schiele (1915) |
Esquematicamente, podemos dizer que a moralidade se estabelece
sobre dois eixos: o cuidado consigo mesmo e o cuidado com o outro. Tais
princípios são invariáveis, sedimentados na natureza humana, mas podem receber
diversas configurações, de acordo com as circunstâncias históricas e sociais. O
cuidado consigo possui motivações fáceis de discernir. Como se sabe, o aparelho
psíquico humano (assim como sua versão rudimentar nos animais) está projetado para buscar a satisfação das necessidades do indivíduo e evitar seu sofrimento. Com o desenvolvimento da cultura, aprendemos a negociar com esses dois
âmbitos da experiência humana, mas ainda assim, como consequência de um processo de seleção natural, continuamos geneticamente programados para preservar nossa integridade física e perpetuar
nosso repertório genético.
Indivíduos mais propensos a se preservar (poderíamos dizer, com um princípio de
moralidade mais pronunciado) têm maior probabilidade de sobreviver às adversidades e passar seus genes
adiante, o que, num certo número de gerações, resultaria numa população mais
cautelosa (e, provavelmente, mais moral).
As motivações evolutivas para o cuidado com o outro são
igualmente evidentes, mas o modo como tal princípio de moralidade se estabelece
em nossa constituição psíquica é menos óbvio. Como espécie, somos vulneráveis aos perigos naturais. Andar em bando e agir cooperativamente
aumentaram em muito nossas chances de sobrevivência, de maneira que indivíduos
mais sociáveis começaram a prevalecer na população, o que também propiciou o
surgimento da cultura a partir de um potencial intelectual inerente à espécie, já
neurologicamente estruturado. Porém, tal processo seletivo ainda não explica
como é possível, num nível individual, passar do instinto de sobrevivência, que
é o fundamento do cuidado consigo, para a preocupação com a integridade do
outro.
Na natureza, encontramos, em diferentes níveis, abundantes exemplos de cuidado com
o outro, principalmente na relação entre progenitores e
suas crias; além disso, em algumas espécies, machos e fêmeas podem defender
seus potenciais parceiros sexuais. Quando não se trata de animais
intelectualmente mais desenvolvidos, tais arranjos de cooperação tendem a não ser duradouros, ficando ao sabor dos ciclos reprodutivos e sua química hormonal.
Sabemos que feromônios regulam o interesse sexual e que há um hormônio
responsável pelo “amor materno”, a ocitocina, que estabelece um vínculo emocional primário entre mãe e filho. Muito provavelmente, tais hormônios estão na origem
da construção de nossos vínculos familiares, organizados posteriormente em
estruturas sociais, mas o que explica, na espécie humana, nossa capacidade de
nos compadecer de indivíduos que, muitas vezes, sequer conhecemos? A
organização de uma sociedade em grupos de reprodução não consegue explicar a
existência de sentimentos como a amizade e a solidariedade.
É justamente o cuidado desinteressado com o outro que
oferece a real medida da moralidade humana, o que só pode ser alcançado quando um
“eu” se identifica com um "outro", considerando-o digno dos mesmos cuidados
que reservaria a si mesmo. É preciso que esse eu, ao ver uma pessoa
sofrendo, entenda a dimensão de tal sofrimento, compartilhando dele, ainda que virtualmente. Ou seja: é necessário que eu me coloque na
situação da outra pessoa, “vestindo sua pele”, projetando nela minha própria
experiência como ser humano, para então descobrir um ser estruturalmente
análogo a mim, potencialmente igual a mim, distinto apenas pelas
circunstâncias; descubro que partilho com ele uma mesma natureza — a natureza
humana. Para chegar neste ponto, há toda uma elaboração moral que não
necessariamente se dá, mas o princípio de nosso sentimento moral está na
capacidade de nos identificar imediata e inconscientemente com os outros, de
reproduzir mentalmente a situação experimentada por eles, e vivenciá-la
subjetivamente. “Amar ao próximo como a si mesmo” e “não fazer aos outros o que
não gostaria que fizessem a você” são princípios que expressam tal fundamento
natural da moralidade humana. Em outras palavras, a raiz de nossa moralidade,
naquilo o que ela nos diferencia dos animais, está na capacidade de criar
empatia, uma operação mental realizada pelos neurônios-espelho.
Mas se é possível constatar a existência de
neurônios-espelho em outras espécies de animais, por que não encontramos entre
elas o mesmo tipo de cuidado desinteressado com o outro? Em primeiro lugar, é
possível observar manifestações desse tipo em algumas espécies mais inteligentes
de mamíferos, como em cachorros, macacos, elefantes etc. Para outras espécies,
possivelmente também aparelhadas com neurônios-espelho, talvez o que falte seja
algum grau de apreensão da própria subjetividade, o que aqueles outros animais,
mais sofisticados, teriam num nível menos desenvolvido do que os humanos.
O circuito da empatia só se fecha integralmente, produzindo as formas mais
desinteressadas do cuidado com o outro, quando aquele que experimenta a empatia
possui plena consciência de sua individualidade; para ser capaz de sentir as
implicações de se colocar na situação do outro, é preciso antes reconhecer-se
como uma pessoa concreta. O autoconhecimento, portanto, é condição para uma
consciência moral plenamente desenvolvida, pois apenas ele pode nos dar uma
real compreensão daquilo o que é melhor para nós e, dessa maneira, o que pode
ser melhor também para as outras pessoas.
The sculptor - John Koch (1964) |
A moralidade humana e a satisfação voyeurística encontrada
na pornografia estão ancoradas numa mesma estrutura cerebral, responsável pela empatia.
A pornografia, portanto, não representa um rebaixamento aos instintos mais
animalescos do homem, nem fornece um índice confiável para o nível de
imoralidade de uma cultura. Na verdade, ela, como uma irmã bastarda
da moral, é o produto cultural de uma espécie excepcionalmente sensível ao prazer
e ao sofrimento alheios. É por isso que o crescimento da oferta de material
pornográfico, ocasionado pelo desenvolvimento tecnológico dos meios de difusão, não é
incompatível com o progresso moral de nossa civilização que, embora não seja
retilíneo nem uniforme, é contínuo. Talvez até haja, arrisco dizer, uma
relação de causalidade entre os dois, para além do avanço dos meios técnicos.
Creio que uma reflexão nesse sentido ajudaria a distinguir moral de moralismo, distinguir o que de fato contribui para o melhor proveito humano daquilo o que se deve a
contingências e interesses de âmbito restrito.
Deixo agora uma questão para discussão ulterior, que talvez
se torne um próximo artigo. Acredito que a pornografia não é em si imoral, mas que
ela pode ser o meio de representação de algo imoral, o que, na minha
perspectiva, acontece quando se representa algo degradante à condição humana.
Deixo bem claro que, para mim, que não sou cristão, a castidade não é um valor
moral, mas um moralismo, uma virtude que tem sua validade dentro de um sistema
de valores particulares, isto é, não universais.