Eu, que estas cousas senti
n'alma, de mágoas tão cheia,
--- Como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu, só, descansos enjeito.
n'alma, de mágoas tão cheia,
--- Como dirá, respondi,
quem alheio está de si
doce canto em terra alheia?
Como poderá cantar
quem em choro banha o peito?
Porque, se quem trabalhar
canta por menos cansar,
eu, só, descansos enjeito.
- Camões, estrofe 15 de “Sôbolos rios que vão...”
Os povos não se salvam pelo arrependimento, como as almas. Os povos morrem de uma só vez, pelos erros que cometeram. E a ressurreição de um povo dura séculos.
- Lúcio Cardoso, “Diário Completo”
A poesia e a música são o próprio território da liberdade. Pois se colocam no ápice da arte. E esta, como já vimos, por mais de uma vez, é o domínio do poder ser. Enquanto a moral é o dever ser. E a filosofia, e a ciência de que ela é também a ponta extrema, é a própria expressão do ser. A filosofia e a ciência, portanto, são servas da verdade. Enquanto a poesia e a música são donas da verdade, pois se colocam no plano do possível e não do que é ou do que deve ser. Daí ser a liberdade a própria essência da beleza. E a poesia e a música expressões extremas da criatividade humana. A música como poesia do som. E a poesia como música da palavra. (...) Não há grandes poetas para pequenos leitores.
- Tristão de Athayde, Jornal do Brasil – 23.06.1978
Tendo abordado a face atual da poesia, ou o que poderíamos chamar de a atmosfera em que paira a produção poética contemporânea, fica em suspenso a pergunta que na verdade deveria presidir a todas as outras: ainda faz sentido lutar para escrever poesia no Brasil desse início de século? Existe algum motivo sólido para a permanência do verso em face a tantas novas formas simbólicas de comunicação? O desinteresse do grande público (aí inclusa não desprezível parte do público letrado) pela poesia não apontaria para o ocaso natural e irreversível da mesma?
Recuperemos alguns pontos do artigo anterior. Eis alguns fatos sobre a situação brasileira: 1) Há um número incrivelmente pequeno de poetas e leitores de poesia. Não, o que há em abundância nos blogs e respectivas caixas de comentários não são poetas nem leitores de poesia, mas arremedos dos mesmos; 2) Tem-se acercado da poesia uma aura pejorativa, um cunho feminil, flébil, fleumático, uma condescendência de avó, em cujo fundo se encontra a confirmação do item 1: o que há por aí, nas feiras e baladas literárias, nos saraus hippies de faculdades de Letras, são caricaturas de poetas, e a ideia que se faz de poesia hoje ignora o que é poesia realmente. Poesia não é o modo por excelência de um sujeito exprimir seus sentimentos. Nem toda quebra de linha se pode chamar de verso, como nem toda disposição vertical de linhas quebradas onde se leiam confissões sentimentais é um poema. (Isto não é um poema.)
Mas o ponto agora já não é lamentar o miserável estado em que se encontra a atual poesia brasileira, e sim levantar a questão: apesar de tudo, ainda é mais do que delírio solitário, egocêntrico e dead-ended um sujeito decidir, hoje, lutar contra as circunstâncias para se tornar um poeta, tendo a certeza de que terá pouquíssimos leitores, entre outros desestímulos? Reclamar dos poucos leitores não é querer ter fama ou aclamação popular. No artigo anterior eu dizia, repetindo João Cabral de Melo Neto, que um poeta, como todo artista, deve estar consciente de sua inserção sócio-temporal e deve compor sua obra como monumento a seu próprio tempo – como chave, como registro formulador desse tempo. Obras de arte dissolvem-se na atmosfera cultural de um povo, fecundando seu inconsciente, mas para isso é preciso que sejam minimamente consumidas. O que me parece particularmente problemático no Brasil atual é que obras de arte de verdade, aquelas que se colocam à altura das tradições a que se reportam, dando-lhes continuidade – obras de arte realmente boas, hoje, não conseguem alcançar o inconsciente coletivo, pois não há a quota mínima de sua circulação. Ou seja, parece que não estão conseguindo surtir o efeito desejado (ao menos não ainda), pois há um fosso aberto entre a realidade e o povo brasileiro, por assim dizer. Não ignoro que tudo o que existe seja real e legítimo, inclusive a ignorância dos povos, mas refiro-me a isso que se assemelha a um delírio coletivo, um distanciamento tão cabal das noções mais básicas que sustentam a dignidade humana, que é difícil colocá-lo no mesmo nível de “realidade” da realidade ela-mesma. Um povo que esqueceu que tem alma continua sendo humano e imortal, mas delira e, nessa espécie de cegueira, perde, entre outras coisas, a capacidade de entrar em contato com obras que o deem a ver a si mesmo, como ele realmente é, não a imagem distorcida com que se aprendeu a identificar.
Graduei-me em Letras na Universidade de São Paulo. Foram cinco anos de curso, ao longo dos quais nunca – NUNCA –, isto é, nenhuma vez sequer, ouvi o nome de Bruno Tolentino integrar qualquer reflexão acerca de literatura ou cultura que se fizesse ali. Não reclamo de não ter tido cursos inteiros sobre esse grande poeta, como os tive sobre Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Machado de Assis e Shakespeare – digo que nunca nem sequer ouvi falar em Tolentino dentro daquelas salas de aula. Eventualmente, soube de sua existência por meio de colegas de curso, mas nunca, nunca ouvi qualquer referência a ele da parte dos Professores Doutores. E isto, prezado leitor, não é sem relevância para a totalidade do que somos enquanto povo, não é uma exceção casual – isto é o próprio coração do problema. Tolentino legou às culturas de língua portuguesa um livro como As Horas de Katharina, entre outros, mas que só este já bastaria para serem erguidos para ele templos de culto em todas as faculdades de Letras desse país. Ao invés disso, os caciques e seus seguidores calam-se solenemente sobre o autor e sua obra, e não duvido de serem capazes de rir com escárnio à menção de seu nome (nunca fiz o teste, mas ainda farei).
E eis, pois, a questão: se não há ponto de contato entre a poesia e a mentalidade de quem seriam seus destinatários imediatos, se se sabe que se vai dar tiros n’água, por que escrever, por que ser um poeta? A mera satisfação pessoal a partir da prática da escrita não é resposta suficiente – nenhum artista o é exclusivamente para si mesmo. (Me vem à mente o caso de Emily Dickinson, a introvertida poeta americana, famosa por sua vida reclusa e que escreveu poesia lírica, subjetivista, avessa a pensamentos sociais. A poesia de Emily, vinda a público somente após sua morte, foi cuidadosamente organizada pela autora em pequenos cadernos feitos à mão. Difícil pensar que tamanho esmero não aguardasse vir à tona um dia.) A existência dos poucos gatos pingados, contemporâneos do poeta, que o hão de ler e que ele ajudará a educar é, por sua vez, um bom estímulo ao autor de versos, porém há algo mais, e eis o “x” da questão: há os poetas do futuro. Pode ser que no presente e ainda durante algum tempo faltem leitores, mas me parece que a atividade do poeta em tempos de seca ainda se justifica pelo que podemos chamar de o vínculo intergeracional entre poetas.
Na falta de imagem melhor, pensemos o seguinte: a tradição poética de uma língua é como uma escada a que cada geração acrescenta um novo degrau (sendo que o fim da escada, e se ela sobe ou desce, não interessa, é apenas uma sobra da imagem). Com a mudança dos tempos, muda a linguagem poética correspondente, mas, diferente da História, que se faz como à revelia das vontades individuais dos homens (cf. Tolstói, Guerra e Paz), a linguagem poética é produto direto da consciência individual do poeta, do modo como ele interpreta a si mesmo e suas circunstâncias. O que um poeta é enquanto poeta não lhe foi dado de graça pelo ambiente, como se gosta de pensar nos Núcleos de Estudos Relativistas de nossas universidades; um poeta não é a voz espontânea do tempo; que ele seja a voz do tempo, estamos de acordo, mas de modo algum sê-lo-á sem esforço, automaticamente: antes, o raro, o excepcional poeta a que se possa conceder a alcunha de tradutor simbólico de seu tempo só a conquistará após incansáveis tentativas laboriosas e conscientes de dominar o reino do verossímil, para qual tarefa só dispõe de si mesmo e dos poetas que o precederam.
E não todos e quaisquer poetas, mas especialmente os poetas de sua própria língua. Porque poesia é a arte da imagem, sim, mas apenas na mesma medida em que também é a arte da dicção. Um poeta aprende a pensar e a imaginar com os poetas do mundo, mas o expressar-se poeticamente é lição tomada aos poetas de sua própria língua. Ler Dante, Baudelaire, T. S. Eliot é, por um lado, fundamental, indispensável mesmo à formação de qualquer poeta brasileiro que escreva em português; mas é também certo que esse poeta jamais desabrochará na ausência de um conhecimento profundo – de uma imersão total na poesia em língua portuguesa de todas as épocas. Porque poesia é como escultura que se faz com o barro da língua, e cada língua é maleável a seu próprio modo; conhecer a musicalidade da língua na qual se escreve – aprender a tirar dela certos padrões sonoros como se tiram acordes de um instrumento musical, isso é fazer poesia. E isso só se aprende in loco: dentro da tradição a que escrever em determinada língua necessariamente filiará você.
É preciso ter ainda em mente a fundamental importância, para um poeta, da produção das duas ou três gerações anteriores à dele, e como o sucesso delas fomenta o trabalho de quem as sucede. Aqui retornamos à metáfora da escada: sem o suporte das gerações imediatamente anteriores, o salto que o poeta terá de dar para chegar onde deve pode tornar sua tarefa impossível. O poeta que escreveu cinquenta anos antes de mim está mais próximo daquele que escreveu há cem anos do que eu estou; ele me aproxima deste. Falando de modo menos abstrato: sem Bruno Tolentino e João Cabral, sobrar-nos-ia o Modernismo brasileiro em sua bruta forma; aqueles dois poetas, tendo transcendido este movimento, legaram aos poetas de hoje as soluções que os levaram adiante, seus degraus na escada. Seria muito mais difícil escrever poesia hoje sem o link lógico provido pela poesia das gerações de intermédio entre o Modernismo e nós – o que nos permite pensar que, a despeito da esterilidade de suas circunstâncias imediatas, o poeta contemporâneo encontra sua razão de ser na tarefa de comunicar-se com os poetas do futuro, "mantendo a chama acesa" ou algo que o valha.
Poderia dizer ainda que um livro como As Horas de Katharina é um bem em si, cuja composição se justificaria mesmo que para deixá-lo enterrado por todo o sempre, pois o fato de a espécie humana ter vindo a produzi-lo testemunha a nosso favor diante da Eternidade – mas afirmá-lo seria ofuscar os motivos mais imediatos, que existem, para que jovens poetas persistam na tarefa de dizer, ainda que solitários, as verdades mais altas – as quais, evidentemente, só vêm à tona através de formas tendendo à perfeição. Nos nossos dias e em nossa situação, escolher dizer tais verdades por meio da poesia é escolher um caminho dificílimo: além de nadar contra a corrente, e muitas vezes contra si mesmo, para compreender a realidade (e até aqui se está no mesmo barco do filósofo e do cronista), ainda cabe ao poeta reaprender todo um código de representação simbólica e reacostumar-se a formas musicais perdidas, para levar adiante uma arte quase de todo desmoralizada, reduzida pelo senso comum ao ridículo da confissão sentimental.
E tudo isso para quê? Consegui argumentar, creio que suficientemente, no sentido da importância de um poeta para outros poetas – mas e para as pessoas em geral? Por que, afinal, a poesia? Será que, aumentando a erudição (ou a inteligência) de um povo – digamos, da população brasileira – recuperar-se-á o interesse pela poesia? Nos países ainda um pouco educados, ainda se lê e escreve poesia? Eu não sei ao certo, mas sou capaz de apostar um dente da frente na resposta positiva. Se o que nossa população precisa é se reaproximar de verdades eternas e da dignidade humana, tenhamos em mente que poesia e verdades eternas têm andado de mãos dadas há uns milhares de anos. Há alguns casos em que confiar no que é constante ao longo do tempo não é mero conservadorismo covarde, sobretudo quando dentro de nós vive o impulso por integrar essa constância.