Pensando na mudança de trajes da população e nos valores que ela representa (e, talvez, engendre?), indago qual deveria ser a reação de alguém que não concordasse com os valores da forma de se vestir contemporânea, e quisesse mudá-los. Há um problema prático ligado ao uso das roupas: uma path dependence, ou dependência de percurso: o rumo que as coisas tomaram no passado determina em grande parte o campo de ações moralmente possíveis no presente, e isso acaba tendo consequências complicadas para quem não gosta do status quo.
Começo minha explicação com uma observação simples: São duas coisas muito diferentes usar uma roupa e usar uma fantasia. Uma coisa é pegar uma roupa para ir ao trabalho; outra é vestir-se de pirata ou de centurião romano. É algo difícil, contudo, definir bem a diferença. Vou tentar uma definição provisória: roupa é o que se veste sem nenhuma, ou com pouca, tentativa de se parecer com algo ou de expressar algo. Fantasia é o que se veste com finalidade primária de parecer ou de expressar algo. Tanto a roupa quanto a fantasia expressam algo, mas no caso da roupa não é essa expressão a finalidade que guia o vestir; ela é uma consequência orgânica, espontânea, daquilo que se veste por outros motivos; e aí está o problema.
Pois, como no artigo do Dalrymple que eu linkei no texto passado ilustra, o modo de se vestir expressa valores. Então o estilo dominante estabelece alguns valores, estilos, básicos, que viram como que a linguagem vestuária da época e do lugar. Quem fugir muito dela, cai na fantasia. Isso pode se dar para várias direções: o cara independente, descolado, metido a artista, que usa chapéu e colete meio solto, está em parte fantasiado; ele visa, antes de tudo, projetar algo. O mesmo para aquele que escolhe sair de sobretudo, ou de terno e colete e relógio de bolso. Ou você fala a linguagem vestuária do seu meio, ou você cai na fantasia. Uma outra analogia é com a linguagem: usar arcaísmos ou fazer questão de estar sempre na vanguarda dos coloquialismos e modas, são jeitos de falsificar a linguagem. É fazer de fim o que deveria ser meio.
Não há uma linha divisória clara entre as duas coisas, mas ela existe. Se o sujeito se veste como se estivesse no século XIX, ou se ele passa meia hora passando pó de arroz e lápis para ser gótico, ele está se fantasiando; está fazendo algo muito diferente de quem escolhe uma roupa porque ele gosta dela e ela lhe cai bem. Quem se fantasia vive num mundo imaginação, um mundo falso em que ele representa, ou quer expressar, um personagem. Não foi por acaso que eu mencionei os góticos: as tribos adolescentes são um exemplo claro de fantasia. O adolescente, inseguro de si, precisa pertencer a um grupo, e isso inclui interpretar um papel falso: punk, gótico, skinhead, mano; não são formas de expressar a própria individualidade, mas de escondê-la.
Com tudo isso, quero apenas tirar um conclusão: somos limitados por nosso vernáculo vestuário. Podemos nos expressar honestamente apenas dentro de seus parâmetros, levando-os mais para um lado ou para outro. Mas quando nos distanciamos muito deles, caímos no falso, na fantasia, na irrealidade; escondemos a nós mesmos atrás de um personagem ou tipo. E por isso não adianta se vestir de forma diferente, excêntrica (a não ser que sua área de atuação seja a moda); isso será apenas falsificar a própria identidade, ou seja, abandonar o mundo real e viver ridiculamente num conto-de-fadas. Quem quer mudar algo, parece-me, tem que se contentar com um caminho mais humilde: descobrir, dentro das possibilidades das roupas atuais, como se aproximar dos valores que se quer comunicar. É um processo muito mais lento, mas também orgânico e, acredito, com potencial real de efetuar alguma mudança no longo prazo.
E essa própria decisão, se for algo consciente, visando a mudança cultural, já terá um pouquinho de fantasia (ou será que não? Posso estar exagerando ao condenar toda instância de self-consciousness como artificialismo). O esperado é que o sujeito com valores um pouco diferentes do padrão social terá também uma percepção estática um pouco diferente: ele achará que está bonito com um tipo de roupa que, embora dentro da linguagem atual, seja um pouco diferente da média. E se os valores dele forem se tornando mais populares, cada vez mais gente se vestirá de formas similares, o que deslocará a média social ao longo do tempo, até que um dia os homens se darão conta que a moda mudou: "Olhe só, eles usavam chapéu, terno e colete; nós não. Algo mudou!"