Mas o certo é que na desordem de um primeiro encontro houve um momento em que os dois, enfim esquecidos do que penosamente queriam copiar para a realidade, houve um momento não preparado por ambos, dom da natureza, em que ambos precisaram saber por que o outro era o outro, e se esqueceram de dizer “por favor”; um momento em que, sem um injuriar o outro, cada um tomou para si o que lhe era devido sem que um roubasse nada do outro, e isso era mais do que eles teriam ousado imaginar: isso era amor, com o seu egoísmo e sem este também não haveria dádiva. Um deu ao outro a avidez em ser amado, e se havia certa tristeza em submeter-se à lei do mundo, esta obediência também era a dignidade deles. (…)
Foi com um ar obediente e agradecido, como o de uma mulher, que ela avisou a Martim que ia remendar suas roupas. Sobretudo, obstinada, o que ela queria era prolongar-se no ambiente seguro que o homem, vivendo no depósito, ali terminara por criar: esporas no chão, a foice, botas enlameadas, mundo palpável. Pegando, calma, nas roupas a emendar, ela sentiu uma felicidade muito menor do que era capaz de sentir, mas tratava-se dessa coisa que se quer: concreta. Então ela o olhou: obrigada por você ser real, disseram seus olhos abertos.
O homem não entendeu, mas inflou um pouco o peito. Quanto a ela, agora poderia sem mentir usar a palavra amor, e com tanta esperança ingênua como se o desconhecesse. (…) Então a moça se levantou, como dando ao homem uma ordem de ir embora e deixá-la só.
— Você é meu dono, dizia o modo altivo e mudo como estava de pé, serena e sem humildade.
Ele pareceu entender, e ele não queria ser dono de ninguém, e assobiou disfarçando, depois olhou para os próprios sapatos: mulher era sempre mais impudica que um homem, ele encabulou. Ela estava nobre. “Teve o que quis”, pensou Martim ofendido na própria castidade e disfarçando-se com um novo assobio desajeitado. “Você é meu dono”, dizia com tirania o modo como ela estava de pé; ele grunhiu assentindo, incomodado, com vontade de se livrar dela. Os ombros dela eram finos e quebráveis, a pele de criança, e, como se ele tivesse quebrado a atualidade da moça, havia algo de antigo nela. (…)
E talvez porque sua submissão àquela mulher fosse o modo como ele próprio a submetia, ao sair do depósito Martim se tornara poderoso e vivido, e com alguma insolência.
Martim respirou profundamente como se até agora tivesse sido amordaçado. É que era doce e poderoso um homem sair e uma mulher ficar. Assim provavelmente é que deviam ser as coisas.
In: LISPECTOR, C. A Maçã no Escuro. Ed. Rocco. Pp. 163-164.
Há muito que se dizer sobre Clarice Lispector no sentido de defendê-la das acusações absolutamente indevidas que lhe fazem: mulherzinha histérica, literatura profunda (grossas aspas jocosas envolvendo o adjetivo), autora de afetações sem preocupações sérias, universais, objetivas.
Por ora falarei de apenas uma característica que sozinha já destacaria a obra de Lispector dentre a literatura brasileira: seu modo de lidar com a dita questão feminina. Não é que Lispector se (pre)ocupasse com as picuinhas feministas; acontece apenas que, sendo mulher e criando seres humanos ficcionais, ela nos presenteia com uma admirável atitude em relação ao feminino e ao que se poderia chamar de condição existencial da mulher.
É verdade que não se precisa ser mulher para se ter essa atitude (a qual logo explicarei), que consiste finalmente em uma visão de mundo. Raros são os grandes nomes da literatura que conseguem ser grandes tratando a mulher como algo diferente disso: uma mulher. (Não consigo pensar em nenhum grande autor que caiba nessa exceção, mas vá lá, é possível que os haja.)
Pois eis a atitude lispectoriana em relação ao feminino: suas mulheres são desavergonhadamente mulheres. Em primeiro lugar, Clarice Lispector não tem vergonha de admitir que ser mulher é desejar a força e a virilidade de um homem. Ser a mulher quebradiça de um homem bruto não é uma culpa. Querer ser fecundada e possuída não é uma culpa. Remendar altivamente as roupas do homem amado: as personagens de Lispector o fazem “altivamente”. Clarice não macaqueia a natureza feminina para lhe conferir a seriedade e relevância que esta supostamente não tem pelo que simplesmente é. Clarice nos mostra a Mulher Rainha querendo ser domada como égua braba pelo touro semeador. E não nos deixa dúvidas: é a Mulher Rainha.
Clarice é um problema para os simples de pensamento. Ela consegue escrever os trechos mais despreocupadamente machistas (é como o vulgo os chamaria se tivesse força de enfrentá-los!) da literatura universal e ao mesmo tempo ser ícone das feministas. Porque, apesar de tudo, no fim das contas vem à tona a dicção por assim dizer menstruada de seus textos. Clarice escreve como uma mulher, e tanto, que não sobra alternativa a suas colegas de sexo senão se sentirem incluídas por ela. Sem contar que haver uma mulher com a força de Clarice Lispector (a inteligência, a técnica, a disciplina, o espírito) é algo tão na contramão da literatura brasileira que os feministas tupiniquins seriam burros se não a tomassem como aliada.
Essa bizarra aliança se faz daquele modo que já conhecemos: lê-se a obra de Lispector ao bel prazer dos aproveitadores. Suas mulheres universais, arquetípicas, são reduzidas a estereótipos sociais cuja criação teria como óbvia finalidade evidenciar a luta de classes e defender a igualdade entre os sexos, dívida histórica a ser paga às mulheres. Apontam-se suas protagonistas economicamente independentes, que moram sozinhas e têm quantos amantes desejam. Mas o que esses leitores mal-intencionados esquecem, não entendem ou fingem não entender é que todas essas mesmas mulheres sofrem, via de regra, da grande carência feminina por forças que as subjuguem. Se livres, dissipam-se, maiores do que si mesmas. (Cf. Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, “A Imitação da Rosa”, A Maçã no Escuro, “Amor”…)
E, no entanto, se existe subjugação nas relações, se existe escravidão, se os opostos se traduzem em maior e menor, forte e fraco, dominador e dominado — em Clarice Lispector isso são meros símbolos, quando o que importa em verdade é o produto final do embate criador entre os sexos (tal produto seria, talvez, a própria realidade?). Homem e mulher são igualmente perfeitos cada qual em seu nicho. Se em terminologia humana receber é um tipo de passividade, por que seria inferior em natureza, em essência? Qual o fundamento real, não teórico, do senso comum que eleva o ativo em detrimento do próprio fundamento deste — o passivo? Por que uma mulher deveria se envergonhar de, em certo sentido, desejar entrar em posse de um homem?
O que precisamos esclarecer é esse “certo sentido”. Aqui estive falando o tempo todo em arquétipos, porque é sobre isso que se debruça Clarice Lispector. Está em jogo aqui precisamente: o que faz de um homem um homem e de uma mulher uma mulher, e a relação necessária (natural) entre ambos. Vocês, que estudam Aristóteles, saberão desenvolver melhor as estruturas do problema. Enquanto mera pessoa e estudante de literatura, digo que não é econômica, nem política, nem socialmente que compete à essência feminina suportar-se no masculino. É ontologicamente?