É lugar-comum conservador criticar a época do Natal como desprovida de seu sentido espiritual original, tendo sido reduzida a mera festividade egoísta e materialista, celebração vazia do comércio e do consumismo exacerbado.
Sou o primeiro a deplorar o exército de Papais Noéis que dominam a cidade em novembro, impondo em terras brasileiras o império da cafonice americana (não que careçamos de muitas e abundantes cafonices nacionais!), e que hoje começaram a bater em retirada. Mas não é verdade a afirmação de que, se o Natal não é religioso, ele é egoísta, materialista, ou o que o valha.
O Natal continua a ser uma celebração, ao menos em intenção, do amor entre os homens; de um amor benevolente, generoso, que quer espalhar esperança e alegria a todos. Os dois rituais do Natal laico o ilustram bem: a troca de presentes e a ceia.
Tomem a troca de presentes. Ela não é, de forma alguma, uma mostra de egoísmo e ganância. O que egoístas fariam? Comprariam presentes para si, e não para os outros. Do ponto de vista material, o Natal é uma grande perda econômica. Faça o cálculo com você mesmo: calcule o montante que você gastou com presentes este ano. Suponha que este montante de dinheiro equivalha precisamente ao valor monetário dos presentes que você recebeu. Agora pegue todos esses presentes recebidos (os calções de banho, as meias, etc.), olhe-os com calma e reflita honestamente: valem o que custaram? Não valem. Se o dinheiro tivesse sido dado em sua mão, você poderia fazer um uso muito melhor dele. Quem melhor sabe o que você quer é você mesmo; não seu tio-avô.
O valor da troca de presentes está em ser troca; em pensarmos nos nossos familiares e amigos e dar-lhes algo de que gostem. Fora um ou outro presente ideal - categoria mítica que designa o presente tão bom que supera o que a própria pessoa poderia comprar para si - o benefício dos presentes está nos laços de amor que unem os participantes da troca, que são com ela fortalecidos. A ceia também não vale pelo peru e pela farofa, mas pela união familiar que celebra e efetua. Para muitas famílias, é a grande reunião do ano; e, em geral, uma reunião alegre. Assim, a festa de Natal laica, a festa de Dickens, de Frank Capra e do Papai Noel, não é a festa do egoísmo, mas do amor entre os homens.
Não foi Dickens, contudo, quem inventou o Natal. Ele sempre foi uma ocasião festiva no Ocidente, com banquetes, cantigas, peças dramáticas religiosas, trocas de presentes (dados seja pelas muitas versões locais do Papai Noel, oriundos de S. Nicolau, ou pelo Menino Jesus em pessoa) e celebrações várias. A árvore de Natal existe desde pelo menos o século XVI na Europa central. A cantiga "Noite Feliz", criada por um padre austríaco e até hoje uma expressão clara da ternura e alegria do espírito natalino, data de 1818, ou seja, é anterior ao conto de Dickens. O Natal antes dele nem passava batido e nem era uma bacanália camponesa.
Enfim, se Dickens não criou a festa, podemos dizer que seu conto manifesta, com maior força, o espírito do Natal laico; espírito cuja gênese histórica está no Natal religioso mas que busca se afirmar como realidade autônoma, aberta e atrativa a todos, não apenas aos cristãos. É esse o Natal público de nossos dias, naquilo que ele tem de melhor, e seu representante é o Papai Noel, figura que só alguém inacreditavelmente ranzinza quereria destruir.
Essa festa laica, contudo, corre o risco de se esvaziar. Quando a compra dos presentes vira uma obrigação custosa e estressante e a escrita dos cartões um processo burocrático; quando a ceia familiar é um ritual tedioso e do qual se quer escapar; quando as decorações de Natal, cujo objetivo é transmitir alegria, tornam-se objetos de competição e vaidade. Então, a "good will to all men" sai gradativamente de cena, deixando em seu lugar enfeites e embalagens coloridos que escondem um espírito cinza, um espírito que com o tempo convencerá a todos que a festa custa mais do que vale. Esse terceiro espírito, o do puro egoísmo materialista, terá vencido quando, e se, o mundo não mais celebrar o Natal e não mais trocar presentes.
Pode ser que o espírito laico do Natal, universalmente acessível e valorizado, se descolado do espírito religioso que o originou, degenere irremediavelmente no espírito materialista que o nega. E se esse for o caso, não se ofendam os ateus com presépios e manjedouras. Permitam, tolerem; ou melhor, abracem, encorajem e até participem das cantigas, Missas e rezas, pois o império do Papai Noel pode levar à morte do Papai Noel. Sem esperança de ressurreição.
Um feliz Natal a todos!
Sou o primeiro a deplorar o exército de Papais Noéis que dominam a cidade em novembro, impondo em terras brasileiras o império da cafonice americana (não que careçamos de muitas e abundantes cafonices nacionais!), e que hoje começaram a bater em retirada. Mas não é verdade a afirmação de que, se o Natal não é religioso, ele é egoísta, materialista, ou o que o valha.
O Natal continua a ser uma celebração, ao menos em intenção, do amor entre os homens; de um amor benevolente, generoso, que quer espalhar esperança e alegria a todos. Os dois rituais do Natal laico o ilustram bem: a troca de presentes e a ceia.
Tomem a troca de presentes. Ela não é, de forma alguma, uma mostra de egoísmo e ganância. O que egoístas fariam? Comprariam presentes para si, e não para os outros. Do ponto de vista material, o Natal é uma grande perda econômica. Faça o cálculo com você mesmo: calcule o montante que você gastou com presentes este ano. Suponha que este montante de dinheiro equivalha precisamente ao valor monetário dos presentes que você recebeu. Agora pegue todos esses presentes recebidos (os calções de banho, as meias, etc.), olhe-os com calma e reflita honestamente: valem o que custaram? Não valem. Se o dinheiro tivesse sido dado em sua mão, você poderia fazer um uso muito melhor dele. Quem melhor sabe o que você quer é você mesmo; não seu tio-avô.
O valor da troca de presentes está em ser troca; em pensarmos nos nossos familiares e amigos e dar-lhes algo de que gostem. Fora um ou outro presente ideal - categoria mítica que designa o presente tão bom que supera o que a própria pessoa poderia comprar para si - o benefício dos presentes está nos laços de amor que unem os participantes da troca, que são com ela fortalecidos. A ceia também não vale pelo peru e pela farofa, mas pela união familiar que celebra e efetua. Para muitas famílias, é a grande reunião do ano; e, em geral, uma reunião alegre. Assim, a festa de Natal laica, a festa de Dickens, de Frank Capra e do Papai Noel, não é a festa do egoísmo, mas do amor entre os homens.
Não foi Dickens, contudo, quem inventou o Natal. Ele sempre foi uma ocasião festiva no Ocidente, com banquetes, cantigas, peças dramáticas religiosas, trocas de presentes (dados seja pelas muitas versões locais do Papai Noel, oriundos de S. Nicolau, ou pelo Menino Jesus em pessoa) e celebrações várias. A árvore de Natal existe desde pelo menos o século XVI na Europa central. A cantiga "Noite Feliz", criada por um padre austríaco e até hoje uma expressão clara da ternura e alegria do espírito natalino, data de 1818, ou seja, é anterior ao conto de Dickens. O Natal antes dele nem passava batido e nem era uma bacanália camponesa.
Enfim, se Dickens não criou a festa, podemos dizer que seu conto manifesta, com maior força, o espírito do Natal laico; espírito cuja gênese histórica está no Natal religioso mas que busca se afirmar como realidade autônoma, aberta e atrativa a todos, não apenas aos cristãos. É esse o Natal público de nossos dias, naquilo que ele tem de melhor, e seu representante é o Papai Noel, figura que só alguém inacreditavelmente ranzinza quereria destruir.
Essa festa laica, contudo, corre o risco de se esvaziar. Quando a compra dos presentes vira uma obrigação custosa e estressante e a escrita dos cartões um processo burocrático; quando a ceia familiar é um ritual tedioso e do qual se quer escapar; quando as decorações de Natal, cujo objetivo é transmitir alegria, tornam-se objetos de competição e vaidade. Então, a "good will to all men" sai gradativamente de cena, deixando em seu lugar enfeites e embalagens coloridos que escondem um espírito cinza, um espírito que com o tempo convencerá a todos que a festa custa mais do que vale. Esse terceiro espírito, o do puro egoísmo materialista, terá vencido quando, e se, o mundo não mais celebrar o Natal e não mais trocar presentes.
Pode ser que o espírito laico do Natal, universalmente acessível e valorizado, se descolado do espírito religioso que o originou, degenere irremediavelmente no espírito materialista que o nega. E se esse for o caso, não se ofendam os ateus com presépios e manjedouras. Permitam, tolerem; ou melhor, abracem, encorajem e até participem das cantigas, Missas e rezas, pois o império do Papai Noel pode levar à morte do Papai Noel. Sem esperança de ressurreição.
Um feliz Natal a todos!