O que vai abaixo
não é exatamente uma mensagem que escrevi a alguém: em meu último post foi
assim, mas dessa vez eu aproveitei a deixa de uma troca de mensagens para organizar
em texto algumas ideias esparsas, já tendo em vista outros leitores além da
interlocutora original, a distinta Sra. Míchkina. Mantenho o formato
de carta porque ele facilita a exposição. E também porque
o texto é orientado por questões levantadas pela Sra. M.
Os leitores me
perdoem a insistência nos mesmos temas. Acontece que tudo isso – literatura, poesia,
contemporaneidade – é, usando uma imagem brega, o papel de parede do meu mundo.
São as coisas sobre as quais eu penso por necessidade pessoal. Todos têm
direito a sua cota de ideias fixas.
***
I
Começando pelo
tópico fácil, M.: sim, eu deletei meu blog de poemas. O motivo é o mesmo
que tem me feito controlar minha participação na internet: combater a pressa, o
imediatismo (“combater” não no mundo – o que seria ridículo –, mas na minha
própria vida). A internet funciona por esse mecanismo do feedback instantâneo:
você produz algo (um texto, um comentário, um poema), solta na rede e
imediatamente começa a receber feedbacks. Isso é muito positivo em algumas
áreas, como o jornalismo informativo e o debate blogueiro, mas para as artes é
desastroso. A não ser que seu interesse seja produzir experimentos
sócio-artísticos, desses que contam com a participação ativa do leitor/ouvinte/espectador.
Digo que é
desastroso porque o artista, aos poucos, vai se submetendo à velocidade do
processo de recepção virtual. Você não passa anos trabalhando num poema ao qual
a internet não dedicará mais do que 24h. Sei que há exceções, mas tenho a
impressão de que a qualidade da leitura que as pessoas em geral fazem na
internet é bastante baixa; lê-se com pouca atenção, com pouca paciência. O
escritor “de internet” está fadado a dissolver-se nessa lógica, a integrar-se a ela; quem tem maus leitores fatalmente escreverá mal, ou pior do que
escreveria em mais estimulantes circunstâncias.
Se tivesse de dizer em uma linha, diria que a principal consequência
da atual cultura da informação para a cultura como um todo é a perda da
densidade – densidade que qualifica o intelecto daquele tipo em extinção, o
erudito. Não é que o intelectual contemporâneo seja, utilizando a expressão do
Gustavo Nogy, um “especialista em nada”; talvez ele até seja demasiado
especialista, como aqueles professores da Filosofia USP que desde a graduação estudam
o conceito X dentro da obra do filósofo Y. Mas a “cultura total” do antigo
erudito (aliás nem tão antigo assim) é algo de que, no Brasil, nessa última
geração, se apareceu algum exemplar foi totalmente a despeito do meio. E o
problema é que as áreas do conhecimento humano são bem mais interdependentes do
que querem nossos libertários que não leem literatura nem sabem usar crase.
Longa e velha discussão, pois é.
Mas, voltando ao
ponto: temos que parar de escrever “para a internet” – nós, cuja
responsabilidade é não deixar a literatura brasileira desparecer completamente,
nós que, salvo pessimismo meu, somos uma geração de atravessadores, destinados
a traficar a maior quantidade possível de bens culturais lá da porção saudável
das letras do país e fazê-los chegar até essa ilhota misteriosa que é o futuro,
onde, ao que tudo indica, o terreno estará mais firme do que hoje para a
produção de obras duradouras. Nossa geração teve uma vida cômoda demais para
ser protagonista. Mas, voltando ao ponto: é necessário participar da vida
virtual, pois ela nos dá a medida do que é o mundo contemporâneo e é nosso
correio e ponto de encontro. Porém, aquilo que nós queremos – se é que queremos
– comunicar às próximas gerações deve ser preparado com muito cuidado e muita
calma, à margem do turbilhão da internet, posto que não somos gênios (somos
atravessadores) e nosso trabalho é sobretudo braçal (apenas os gênios podem
contar com a fecundidade da preguiça e do acaso).
Poemas devem ser
escritos e reescritos demoradamente, até serem o melhor que podem ser.
Romances, contos, teatro – idem. Nada de correr para mostrar seu primeiro
rascunho aos amiguinhos e ganhar likes no
Face.
Passei as duas
últimas semanas com essas frases martelando na minha cabeça. Há meses não
escrevo um poema que preste. Por vezes cheguei perto, mas a pressa foi
abortiva. So long, blog de poemas.
II
Agora, sobre seu
desejo de se tornar escritora: eu penso, M., que antes de mais nada o que um
escritor precisa é ter o que dizer. O
escritor não é tanto aquele que diz “tenho vontade de escrever livros” quanto
aquele para quem há a gritante necessidade de comunicar tal coisa. Nunca tentei escrever prosa de ficção, mas minha
experiência com escrita de modo geral me diz que uma ideia bem cultivada encontra
como que naturalmente sua forma perfeita. Mas é claro que isso só funciona
quando você já tem ao menos o domínio básico das regras do gênero no qual se
propõe escrever. Se você não sabe como funciona a métrica em poesia, não espere
“intuir” um belo alexandrino (um, talvez; mas um conjunto de catorze ou vinte e
oito belos e harmônicos alexandrinos...). Porém, uma vez tendo afinado o seu
instrumento (sabendo escrever uma prosa limpa e maleável, ou redondilhas
certinhas, dependendo de em qual recipiente você quer vazar a sua “tal coisa”; com
o acréscimo de que até aqui a festa é aberta a qualquer um, independendo de
real vocação ou mero diletantismo) – uma vez tendo afinado o seu instrumento (créditos da expressão ao Emmanuel Santiago),
resta perguntar-se o que você tem a dizer. É sua atitude diante dessa pergunta
que fará de você escritora ou diletante.
Tenho visto uma
quantidade alarmantemente grande de escritores jovens com algum talento, mas
que não têm o que dizer. Ou ao menos ainda não o conseguiram. São montes de
poemas e histórias sem norte, com um horizonte embaçado ou simplesmente vazio. O escritor
senta diante da página em branco, sobre a qual incide a luz de uma janela
aberta, e logo expele algo como: “A janela aberta na tarde em branco / eu isso
eu aquilo / meus sentimentos”. O que acontece aí? Acontece uma pessoa cuja
vontade de escrever um poema vem antes da consciência do que tem a comunicar. Quem nunca protagonizou tal cena atire
a primeira pedra!
Sylvia Plath, em
seu romance autobiográfico, The Bell Jar,
brinca com isso engenhosamente. É um romance sobre sua juventude, quando ela
era uma aspirante a escritora; nele, a personagem aspirante a escritora escreve
uma história sobre uma jovem aspirante a escritora. A personagem está sentada
no jardim com uma máquina de escrever, e o parágrafo de abertura do que ela
escreve diz: “Fulana estava sentada no jardim com uma máquina de escrever”.
Isso é a imagem
do diletantismo, ou do fetiche pela arte literária. Sylvia Plath é um bom
exemplo de escritora de talento que foi consumida pelo fetiche. Desde muito
cedo ela quis ser escritora, onde
isso correspondia não tanto ao trabalho de quem tenta mapear o mundo com palavras,
mas sobretudo a certos traços de personalidade supostamente comuns a quem
escreve; escrever seria menos uma atividade com fins para além de si mesma do que um modo de ser e viver. É
bastante natural que até certo momento tudo que se tenha seja uma inclinação
vaga à expressão por meio de palavras, e Plath tinha isso genuinamente, o germe
da literatura, mas ela acabou desperdiçando sua vocação (e, pior, sua vida) no
culto a esse ídolo fajuto que é o Escritor Com Problemas Psicológicos. Mas
antes fosse esse seu único ídolo. Quando estava feliz, Plath cultuava o
Escritor de Salões Literários. Há uma passagem em seu diário em que ela exclama
(cito livremente, de memória; só por muito dinheiro eu abriria de novo o diário
da Sylvia Plath): “Eu nasci para isso! Para presidir reuniões literárias e ser
a mulher escritora de um escritor!” Que lindo, Plath... Trocando a vida real
por estereótipos livrescos, não é de se estranhar que seu casamento com o
(também poeta) Ted Hughes tenha virado uma guerra de egos que terminou com você
inalando gás, sua feather-headed fool.
De fato,
conhecer as trajetórias pessoais e artísticas dos escritores nos ensina muito.
Conhecer a história de Sylvia Plath me ajuda a manter meus próprios fetiches no
cabresto (nem sempre consigo, mas estou tentando). Outro diário muito
interessante de se ler é o do Lúcio Cardoso. Eis outro exemplo de vontade
ardente de ser escritor, mas sem a correspondente capacidade de controlar os
próprios demônios. Lúcio Cardoso atirou para todos os lados: conto, novela,
romance, poesia. Foi em tudo medíocre. Seu diário, porém, revela um espírito
profundo e um pensador capaz. Acompanhar as muitas páginas de suas
considerações literárias e filosóficas e as anedotas de suas batalhas pessoais
nos ensina uma grande lição de humildade: mesmo os mais aplicados aspirantes a
literatos podem dar em nada – e com grande frequência é o que acontece. Dizendo
ainda de outro modo: o mundo não estará necessariamente interessado nos ardores
do seu coração, aspirante a escritor. Sim, o diário do escritor fracassado
deveria ser leitura obrigatória a todo aspirante a escritor. (Nota maldosa:
Lúcio Cardoso não respondia as cartas de Clarice Lispector, que na juventude
teve por ele uma paixão não correspondida. Ela, que foi a escritora com “E”
maiúsculo que ele nunca conseguiu ser. Aqui se faz, aqui se paga.)
Mas é claro que
também devemos olhar para os exemplos de sucesso. E é claro que entre estes eu
citarei Dostoiévski. É verdadeiro dizer de Dostoiévski que todos os seus
protagonistas eram partes dele mesmo. Mas não é menos verdadeiro dizer que sua
grandeza estava em saber ser outros, e outros extremamente opostos a si próprio.
A literatura de Dostoiévski põe em prática a ética do amor ao próximo. Como em
sua própria casa, ele recebia em cada um de seus livros os tipos humanos mais
abjetos, dava-lhes de comer e beber, abrigava-os e conversava com eles de igual
para igual. Seus protagonistas eram ele mesmo na medida em que representavam problemas que o moviam. Quando
Dostoiévski começava a escrever um novo romance, era porque estava engasgado
com algum desses problemas, que em sua escrita tomavam a forma de um ou mais
homens (porque no mundo real também eram formas humanas). Dostoiévski não
sentava para escrever sobre Dostoiévski querendo escrever; seu uso de
experiências biográficas não era de fundo narcisista, era, quando muito, uma
das pontas do novelo de suas criações literárias (desejo sorte aos que tentarem
encontrar a outra ponta). O que impelia Dostoiévski à palavra era, primeiro, a
urgência de resolver para si certos problemas e, segundo, a intenção de modificar
os homens ao seu redor. “Ter o que dizer” é isso: é ter uma ideia melhor para o
mundo em que você vive; é saber algo que, do modo como você o dirá, ainda não
está dito. E pode ter certeza de que a cada dia tudo muda tanto que os
problemas humanos, sendo sempre mais ou menos os mesmos, sempre podem ser
revisitados.
Eu tenho grande
confiança no potencial de utilidade de cada indivíduo humano. Não só cada homem
é entre todos um universo único, mas em relação ao ambiente ao seu redor (sua
família, seu grupo de amigos, seu país) esse – como dizer? – dom de originalidade
torna-se ainda mais notável. Isto é, sempre há algo que nós, e muito
especificamente cada um de nós, pode fazer pelo mundo que nos cerca. A cada dia
não há nada de novo sob o sol, e ainda assim quanto não existe de importante, de
imprescindível até, que vem sendo esquecido? Dizer incansavelmente as coisas
importantes, repeti-las ao largo dos tempos, adaptando a mensagem aos olhos e
ouvidos dos espectadores e ouvintes do momento presente – é para isso que no mundo
existem escritores, além de engenheiros e professores de inglês. (Nota: Já me
criticaram por “ficar falando do Bruno Tolentino como se fosse novidade quando
há dez anos o Fulano e o Fulano já diziam tudo isso mimimi.” Pois é, e pode ter
certeza de que, se daqui a dez anos mais gente não tiver se juntado ao coro, o
serviço ainda estará incompleto.)
Agora, voltando
a você, M.: acho que é possível ajudar um jovem escritor a partir de certo
ponto – comentando seus escritos, por exemplo. Mas antes disso há um momento
que eu creio seja inevitavelmente solitário, que é aquele em que você se
pergunta onde está no meio de toda essa bagunça. O que há por trás do seu
desejo de escrever? Qual problema causa em você essa alfinetada que impele às
palavras? O que é isso que você tem a nos contar, que está diante dos nossos
olhos, mas não vemos nem ouvimos? Após essas perguntas, todo o resto é trabalho
braçal. E o trabalho não é pouco. Eu desconheço caminho além de ler e escrever,
exaustivamente. De preferência, tendo leitores de confiança que sirvam de
cobaias para suas tentativas – aliás, sem isso é praticamente impossível
avançar.
E tentar, com
todas as suas forças, não sucumbir à internet e aos elogios fáceis que a
sustentam.