Moro há pouco tempo no Rio e,
para mim, que venho de São Luís, cidade que também tem algo de aristocracia
decaída, tudo o que Pedro Sette-Câmara sintetizou neste texto é muito
evidente. Vejo cariocas invocarem a ira dos deuses porque a margarina estava
sem o preço na prateleira do supermercado. Subitamente abandonarem com
violência uma lanchonete porque um garçom lhes apontou a mesa mas não os
conduziu até lá. A recíproca idem: o comerciante carioca não vende – apenas
consente, a contragosto, em sentir-se roubado.
O empresário carioca se acha um mártir do capitalismo: sente cada ato
seu, para que uma moeda lhe caia no bolso, como uma tortura. Aqui o padeiro
nordestino pode ser identificado pela sua boa disposição (até indiscrição) em
atender. E o paulista é aquele cara que sempre ficará para trás na guerra
campal para conseguir pegar um táxi ou entrar em um ônibus – e que às vezes perguntará,
sem que ninguém entenda do que diabos ele fala: “Cadê a fila? Ei, cadê a fila?”
A fila seria uma boa idéia, mas...
A princípio, tive a impressão
terrível de que o carioca é uma versão concentrada da alcovitaria maledicente
que, no geral, é uma marca do brasileiro (o brasileiro jamais será capaz de
considerar um problema político tão a sério quanto considera a vida do vizinho
– o que é muito bom e muito ruim, sob diferentes aspectos). Via pessoas se
tratarem com uma docilidade constrangedora, cheias de ademanes (é a palavra certa) e prestezas, e, ao darem as costas
umas às outras, acusarem-se das maiores baixezas. A primeira impressão é que
seja um caso quase patológico de falsidade. Mas não é falsidade. O carioca
trata muito bem seu interlocutor, caso esteja em uma situação “não mediada” (se
não estiver em causa uma relação comercial, por exemplo); enquanto o faz, o faz
com toda a sinceridade. Com toda a idêntica sinceridade com que em seguida o
chamará de mau caráter, aproveitador e sabe Deus o quê – a mesma, mesmíssima
sinceridade, com que será capaz de num terceiro momento voltar a tratar o mau
caráter em questão como um rei que recebe, com todas as honras, um estrangeiro
em seu paço imperial. O carioca quer tudo mesmo quando não pode quase nada; age
com base nisso. Ele diz e desdiz e não está nem aí. “Afinal, para que
permanecer rígido em uma mesma posição, uma mesma idéia?” – é o que todo
carioca parece dizer. A sua disciplina é de outra ordem. Ainda não sei
exatamente de qual.
A propósito, mas mais a propósito do que disse no primeiro parágrafo, encontro no Dicionário Universal de Citações (verbete
“Rio de Janeiro”) de Paulo Rónai o trecho de Genolino Amado que segue. O estilo
é ruim, mas tem sua verdade:
“Nas cidades
tristes, nevoentas, como Londres, ou mesmo como São Paulo, o esforço do
trabalho está somente em trabalhar. Mas, no Rio, o primeiro e grande esforço
está somente em ir para o serviço, em aceitar a pequenez de um destino
burocrático ou proletário, quando vem dos panoramas, inundando o coração da
gente, a imagem de tantas grandezas, a sensação do mundo em festa.” (Os Inocentes do Leblon)
Um parêntese.
Certa vez um estrangeiro que
viveu no Brasil observou que a pergunta cuja resposta todo brasileiro deve
saber – “Quem descobriu o Brasil?” – não faz o menor sentido para um inglês ou
um italiano. Ninguém descobriu a Europa. A Europa sempre esteve lá e de lá os
europeus vieram. E então passam, os europeus, a discutir o quanto a Europa tem
de Israel, de Grécia, de Roma, de Bizâncio ou de Índia. Vocês conseguem
imaginar um brasileiro discutindo o quanto o Brasil tem de ibérico,
mediterrâneo ou árabe? Há bons livros a respeito – e algumas figuras
excêntricas, como um amigo meu que, vendo Afonso I se materializar no ar, diz, punho
em riste, ser brasileiro há mais de 800 anos –, principalmente quanto aos
elementos indígena e africano; mas esse tipo de especulação definitivamente não
é esporte nacional.
O que é esporte pelo menos
provincial, ao menos em minha província, São Luís, é enobrecer-se pela discussão
de quem descobriu a terrinha; ou qualquer outra discussão similar. Uns tantos
de nós ludovicenses (ludovicense > Ludovicus > Luís XIII – o “rei menino”
que se homenageou com o nome da ilha) separamos todo dia 8 de setembro,
aniversário oficial da cidade, para fazer alguns inimigos. Uns são partidários
de que na data realmente se deve comemorar a fundação de São Luís; ou seja, de
que foi fundada pelos franceses de Daniel de La Touche em 8 de setembro de
1612. Outros são partidários de que a data não é esta; ou seja, de que foi
fundada pelos portugueses de Jerônimo de Albuquerque, em algum momento de 1615 ou 1616, após expulsarem os franceses. Sou do primeiro time, e me
ufano de sê-lo, mas aviso a possíveis adversários que não discutirei isso aqui.
Independentemente de quem estiver certo (mas eu estou, disso eu sei), o fato é
que o partido lusitano sofre da mesma inclinação que acusa nos “oficialistas”
pró-franceses: querer enobrecer a cidade com uma fundação “mítica”; no caso,
com a ascendência em um nobre que, não bastasse ser francês, era ainda pirata e
huguenote, a trazer consigo capuchinhos que deixariam os melhores relatos
(melhores inclusive literariamente) sobre uma missão no Brasil nos primeiros
séculos; coisa que tornaria São Luís bastante excêntrica frente ao resto da
colonização brasileira. O partido lusitano, por sua vez, enobrece a fundação
por outro meio: atribuindo-a a Jerônimo de Albuquerque, um homem de guerra já
sexagenário, aclimatado à terra, filho de português e de índia, que se casou
pagã e cristãmente com uma nativa e teve dezenas de filhos, experimentado em
diversas guerras de mata cerrada ao longo do litoral nordestino. Uns, então,
querem o exotismo europeu; outros, o exotismo autóctone; mas ambos queremos
algum tipo de extravagância, e São Luís realmente é uma cidade muito
extravagante. Porque a nobreza é extravagante, mais ainda se decadente. E é por
isso que depois de secas todas as garrafas, depois que o Brasil for uma gigantesca São Paulo, continuará sendo uma questão de honra, e bem mais interessante que
decidir o que há de ibérico ou não no brasileiro, determinar se foram os
franceses ou os portugueses que fundaram São Luís.
Fecha parêntese.
O aristocrata decadente que é o
carioca, contudo, infelizmente é um tipo que já rareia entre os mais jovens.
Basta observar o comum de sua fala hoje; entre eles é o português de baile funk
que se dissemina. A tendência natural a realizar uma elevação tonal ao fim de
frases ditas com ênfase (o que dá a impressão de que o carioca quase usa de falsete
ao terminar de dizer algo que lhe indigna) acabou debordando em uma fala ao
mesmo tempo de ritmo lento e melodia de repentista (variações tonais sempre
retornando a um mesmo ponto). É um fenômeno curioso, que eu agora não saberia
descrever de forma muito objetiva, que dirá técnica. Mas é assim que a
insensatez quixotesca de determinadas posturas vai se tornando simplesmente má
educação, deboche e indiferença num português terrível, numa “língua de pau”. Esta é
o produto mais aparente do carioca que deixa de ser aristocraticamente
voluntarioso para ser toscamente queixoso.
Termino apenas lembrando – e esta
é uma observação meio errática, ligada apenas ao fato de que nasci e cresci num
lugar e hoje vivo noutro, ambos com alguma remota marca aristocrática – que a
pessoalidade das relações do carioca não é nada se comparada à necessidade
vital do ludovicense já não digo de driblar a impessoalidade das relações
democráticas, mas de ter boas relações francamente mafiosas. Se os cariocas
tiveram os bajuladores de D. Pedro II, nós ludovicenses tivemos e temos os
bajuladores de Sarney I (nesse quesito a ser substituído por um Flávio Dino ou
outro qualquer – o que é pena, pois também nos levará do voluntarismo à queixa).
E nos é muito mais intragável que a eles que o rei seja, como escreveu Tolstói,
“escravo da História”. História, com a gente, é mesmo com “h” minúsculo e
suscetível de ser atirada ao mar. Somos todos uns reizinhos, mas reizinhos que
efetivamente mandam na história; não
temos satisfação alguma a prestar a essa disciplina de plebeus de cátedra. Por
isso o ludovicense chama o parente sulista para ver o maior prédio em
azulejaria da América Latina ou ver missa em alguma igreja do século XVII, mas não
tem o mínimo pudor em carregar alguns azulejos e relíquias para sua própria
casa. Amamos nossa cidade e por isso
nos achamos no direito de saqueá-la e depredá-la sem piedade.
Mas não conheço nenhum
ludovicense tão folgado quanto o carioca médio. Nenhum.