Perdoem a escolha do tema antigo; isso é tão novembro/2013! Espero que valha a pena. Estiquemos um pouco a memória e voltemos para
aquelas duas semanas do mês passado em que o esporte favorito das pessoas
lindas foi odiar e ridicularizar o Rei do Camarote. Participei com gosto da
segunda modalidade, e não vejo nada de muito errado nisso. Só acho que os
motivos que suscitaram essas reações não foram devidamente esmiuçados, e por
isso estou aqui para repisar o cadáver. Já aviso que a exposição não será
lisonjeira; nem para ele, nem para nós.
E há dúvida sobre os motivos da hostilização? O sujeito é
ostentador, rico, fútil; plenamente egoísta. É o que andaram dizendo. Outros, mais
conservadores, viram nele a boa e velha “auri
sacra fames”, o sórdido amor pelo dinheiro. Seja como for, mereceu.
Pois eu digo que ele não ama o dinheiro. Amor ao dinheiro é
um vício ascético. É o que acomete o trabalhador compulsivo, o trader para quem o aumento do saldo
bancário é um fim em si mesmo; o poupador muquirana que evita religiosamente
qualquer pequeno gasto a mais. Esses têm o dinheiro como um fim, e não como um
meio para comprar a felicidade. É um vício bem infeliz e solitário. O Rei do
Camarote é infeliz, mas, ao contrário
dos amantes do ouro, esbanjador. Se ele tem e quer dinheiro, é para usá-lo;
para comprar muito luxo.
Só que os bens de luxo também não são, para ele, finalidades em si. Tem
gente (poucos) que querem bens de luxo pela qualidade, pela beleza e por outros
prazeres diretos que eles proporcionam. Dirigir uma Ferrari, por exemplo, deve agregar valor, não ao camarote, mas à experiência
do sujeito. Sentir o ronco do motor, a velocidade, o poder enorme aliado à
elegância das formas; para alguns, isso bastaria.
Não para o Rei do Camarote.
Ouçamo-lo: “Ferrari é um sonho de consumo de qualquer pessoa em qualquer parte
do mundo.” (CAMAROTE, Rei do. 2013.) Ele quer a Ferrari apenas porque todo
mundo quer uma Ferrari. É tudo pelo social; tudo pelos outros. “Uma
questão de status”. Ele não é nada egoísta; não coloca a si mesmo acima de
tudo. Ele coloca a si mesmo abaixo de todos os outros, seu valor à mercê da opinião alheia. Se vamos acusá-lo de algo, é de excesso de altruísmo, preocupação constante com os outros,
em se sacrificar pelos valores dos outros, deixando seus próprios valores de
lado. Gosta de vodka, bebe champagne.
Até aí, contudo, nada fora do comum; quem nunca? A ausência
de amor próprio pode ser um grande pecado, mas não é o que nos levou a condená-lo. O grande pecado do Rei do Camarote não é procurar a glória dos
homens; é falhar nessa busca.
Pobre Alexander. Ele se circunda de todos os sinais
exteriores do poder e ainda assim projeta impotência; continua sendo um
coitado, um loser, um panguão. Não me
levem a mal; aposto que há vários homens e mulheres querendo se aproximar dele;
por oportunismo. É impossível acreditar,
contudo, que algum homem realmente o inveje e que alguma mulher realmente o
deseje. O sucesso feminino de que ele se gaba, e que lhe custa muito dinheiro,
é realidade corriqueira de muito pé rapado.
O insuportável no Rei do Camarote é essa desconexão entre
pretensão e realidade. Alguém aparentando ser o que não é, um tema clássico do
humor (todo mundo sacou, aliás, que o sujeito é gay; isso leva a desconexão a
um outro nível). Puxar o tapete das pretensões alheias; colocar cada um em seu
devido lugar: sempre para baixo. O riso é a arma mais destrutiva de todas. É a
única eficaz na arte da degradação moral e social. Nenhum valor que se queira
absoluto pode tolerar o humor; por isso monarquias antigas e políticos modernos
querem-no proibido, assim como todas as religiões (catolicismo, islã,
feminismo, etc.). O humor é o ácido universal da condição humana e, para quem
ainda nutria alguma nobre esperança, não tem absolutamente nada de moral, ético
ou sustentável. O Rei do Camarote está nu, e nós aproveitamos para jogar um
ácido. Quem mandou sair assim?
Não sei porque achamos graça em demolir pretensões.
Tenho uma suspeita, que acho que deve servir para pelo menos alguns casos. Aparentar
o que não se é é um jeito de tentar ser
o que não se é. Tentar melhorar a própria condição. E no fundinho do coração de
muita gente (não do meu, não do meu!) reside uma linda voz que lhes impele a rebaixar
todo desejo de melhora alheio; que, por contraste, revela o quanto não temos
melhorado em nossa. Humilhá-lo, ainda que em pensamento, alivia um pouco a
angústia de nossa própria nudez.
O ambicioso, muito mais do que o pobre ou mesmo do que o
rico, é sempre mau; é visto e representado ou como risivelmente falso ou como
psicopata. O pecado não é estar em cima, se você nasceu em cima; é tentar
chegar lá. Sendo assim, nem vem ao caso se o Rei do Camarote merece as zoeiras
todas que recebeu (e não foram só zoeiras; teve muito ódio em estado puro
também), pois, merecendo ou não, isso não tem nada a ver com o que nos levou a zoá-lo.
A justiça é o melhor pretexto para as piores crueldades.
O que nos redime é a memória curta. Passado um mês, é só mais uma pessoa normal, vagando perdido neste mundo. E aposto que mesmo seu pior algoz das redes sociais, se porventura lembra-se que ele existe, já não sente mais nada de ruim, espera que ele encontre seu rumo e seja feliz.