Está depositada na devida secretaria. 148 páginas. Resta às engrenagens acadêmicas triturá-las e transformá-las em pasta. O tempo que essas páginas custaram,
e o mal que produziram, jamais serão recuperados. Indo depositá-la, tinha o
desejo de que, logo que a tivesse entregue, uma ânsia mais forte do que eu me
fizesse correr ao banheiro e vomitar copiosamente, tirando das entranhas o bolo espiritual que me pesava. A realidade foi bem mais serena, e voltei mais leve mesmo
sem fazer jorrar minha bile nos canos da FFLCH. Finalmente me libertei do espírito
maligno de Santo Tomás de Aquino (sim, apaguemos o título! Foi a primeira e mais
sábia lição da faculdade). Não é dele, contudo, que quero falar.
Ele foi apenas o meio, o diabinho subalterno a serviço de uma máquina funesta que
certamente foi pensada no inferno, mas que criou consciência própria e
desbancou a Lúcifer e todos os outros.
Pós-graduação em Humanas numa instituição séria deste país é negócio de réprobos. Exotericamente, vende-se trabalho acadêmico,
um domínio do texto de algum palpiteiro célebre do passado. O que se prepara,
contudo, no plano esotérico, é a possessão voluntária da alma estudantil pelo espírito do morto.
Muito se critica a universidade brasileira por não formar
filósofos, mas historiadores de filosofia, eruditos de filosofia. Sabem o que Platão ou Espinosa diriam do PT, mas são incapazes de formular
algum argumento que vá além dos chavões. O que ninguém diz, ou ninguém quer ver, é que a ausência de
filosofia não é uma escolha, ou mesmo, como achei em momentos mais ingênuos
(quando estava por fora, achando que todos “tinham pontos”), efeito de uma
falta de coragem, um medo de se expor. Isso implicaria que a possibilidade de
fazer filosofia é rejeitada, quando na verdade ela nem existe.
Ao ler qualquer texto, a reação da pessoa normal
minimamente formada (que já transcendeu o “se está escrito, é verdade”) é se perguntar se aquilo é verdade. A
afirmação bate com sua intuição e sua experiência sobre o assunto? O autor dá
algum argumento? Os argumentos são bons? Se for falso, quais as implicações? E
se for verdadeiro? Isso é uma mente normal em funcionamento. Mas a vida
acadêmica em Humanas não é compatível com uma mente normal. E isso não é de todo o mal...
No começo de uma vida acadêmica, a grande luta é deixar de
lado essa faculdade de julgar; abrir mão da pergunta básica por trás de toda empreitada cognitiva: “Isso é
verdade?”. A postura é sábia. Para entender um pensador, deixa-se de lado as
próprias convicções (e mais, os gostos e preconceitos) e lê-se o que ele disse
de espírito aberto, procurando reconstruí-lo e entender a lógica interna
daquele pensamento. Junto com o entendimento ganho, vem também o demônio de brinde.
Primeiro ele te dá o gostinho bom que vem ao se habitar o mundo
conceitual que se estuda. Um mundinho pequeno, fácil de se localizar. Saber
operar dentro das regras dadas pelo sistema, discutir, investigar os menores
recantos à procura de novas migalhas de informação; como é bom encontrar aquele
detalhe textual que embasará toda uma nova interpretação!
Às vezes a pergunta ressurge: mas será que ele acertou
quanto a essa opinião? Será que Tomás fez bem ao propor a pena de morte a
hereges, ou ao dizer que os bem-aventurados do Céu se alegrarão ainda mais ao
contemplar a desgraça dos condenados? Só que já não é tão fácil respondê-la,
dado que cada termo dele exige uma definição também nos termos dele, e que as
posições em jogo – agora já se sabe – se davam num contexto conceitual
diferente do nosso, etc. Matéria e forma, potência e ato, intelecto passivo e
ativo; quanto mais se lê, mais difícil transplantá-los para este nosso mundo de
facebook e jogos universitários.
Imagine uma foto digital. Temos ali uma representação relativamente fiel, embora imperfeita, de um aspecto da realidade. Agora aumente o
zoom milhares de vezes, de modo que cada pixel ocupe sua tela inteira. Vida
acadêmica é maximizar pixels. Uma vez nesse nível, aprende-se a ir de um a
outro; dá até para prever como será o próximo; decorar a ordem dos pixels,
entender o sistema por dentro. Só que nesse nível a questão da representação
desaparece, pois aqueles quadrados monocromáticos obviamente não se referem a nada.
“Hã? Esse negócio de potência e ato, intelecto agente, synderesis, era para ter
a ver com o mundo real??” O único
modo de se entender qualquer um desses conceitos, em Tomás, é segundo os termos
que ele próprio usa. Onde termina a terminologia e começa a realidade que ela nomeia? Quanto
mais se lê, mais a resposta tende ao “nunca”.
Logo, a única resposta possível é ver se a tal opinião
concorda ou não – ou melhor, remodelar todo o sistema conceitual para que a tal
opinião concorde – com o resto do sistema. E daí você já está tão dentro do
labirinto que esqueceu o caminho de volta e nem quer mais voltar; esqueceu que
há algo fora dele e o resquício de memória, já bem abafado pelo inconsciente,
só suscita dor e medo.
Um dia você acorda e o diabinho já terminou o serviço: a
possibilidade da questão sumiu. O que era mapa virou quadro virou mundo. O
mundo em que a synderesis abarca os
princípios da lei natural não tem nada a ver com o mundo em que a Dilma se
reelege, não porque estejam distantes no tempo, mas porque habitam universos
paralelos. (“Mundo como ideia”? Não, nada a ver, e não me façam falar de uma
raça ainda mais perdida...). Não é que os acadêmicos brasileiros tenham medo de
discutir certas questões. É que é impossível conceber certas questões, a
verdade é algo que não surge. Não é uma defesa do relativismo ou do
subjetivismo, mas a total indiferença – ou melhor, incompreensão e esquecimento
– quanto à própria noção de verdade.
Já repararam que os grandes filósofos nunca foram bons
leitores da filosofia alheia? Aristóteles “não entendeu nada” de Platão. Onde
já se viu, achar que refuta a noção de participação com aqueles argumentinhos
rasteiros! Tomás por sua vez não compreendeu Aristóteles, tentando encaixá-lo num
outro universo de pressuposições. Leibniz tinha parca noção dos escolásticos que tanto respeitava, e adulterou-os sem limite. É tudo verdade. Descartes, Espinosa, Kant,
Hume, Wittgenstein; se citaram a outros, foi para mostrar que nem existia filosofia séria antes deles.
Não foi por acaso. É justamente porque não foram leitores profundos que escreveram coisas profundas. Agora durmam com essa!