It turns out que meus amigos do face são profundos conhecedores e admiradores do “Madiba”. Parece que só eu faltei a essa aula; só eu não li os livros. Todos manifestaram sua dor, alguns arrebatados pela emoção, desestabilizados com a morte do herói, do raio de luz que guiava suas vidas e que os dava esperança de um mundo melhor. Teceram loas ao fim do racismo, à democracia, à paz, ao espírito acolhedor dos sul-africanos. Bem, nem todos. Alguns outros amigos, minoritários, acusaram a farsa, pintando um outro Mandela: terrorista sanguinário e/ou monstro corrupto. Veja este e este links (calma, é da Piauí e da Enciclopédia Britânica; não do ARENA-Jovem).
Há um quê de espírito de porco na tentativa de destruir os
ídolos alheios, por mais justa que seja a destruição. Aliás, especialmente se for justa. Mas, sendo
justa, como não aceitar suas conclusões? Mandela não foi herói; foi apenas demasiado
humano numa escala maior do que a dos outros mortais. Mandela o comunista radical,
stalinista, o aliado de ditadores sanguinários e magnatas do diamante; Mandela
o terrorista; Mandela o corrupto; é tudo verdade. Sustento, no entanto, que
Mandela o herói também existiu. A discussão é o embate entre dois símbolos – um
bom e outro mau – que não correspondem ao ser humano real. A posição
minoritária não acrescenta nada, e acaba aparentando oposição aos valores
representados pelo símbolo bom.
Mandela tinha seus esqueletos no armário. Não foi um puro,
um santo. Mas representou para muita gente – via seleção midiática – coisas
boas. Sua vida representa a vitória sobre o preconceito racial e, para
coroá-la, a atitude da reconciliação ao invés da vingança. Eu penso que, se
simboliza coisas boas, e há alguma razão para aplicar o símbolo ao sujeito
real, deixem o herói estar. Que me importa se, no fundo, Mandela foi um
canalha, ou se seu governo falhou em garantir a paz e prosperidade? Só não
acreditem literalmente no herói, no santo. Em verdade, ninguém é santo; nem mesmo os santos.
Os dois lados da polêmica Mandela me lembram das brigas
acerca da nossa história. Dos paulistanos que vandalizaram a estátua do
Brecheret no Ibirapuera, e que querem derrubar a estátua do Borba Gato em Santo
Amaro. Os bandeirantes não foram heróis; foram monstros, gananciosos, caçadores
de índios. Concordo, desde que se adicione: e
foram heróis. A coragem desses homens do mato, a sede pelo ouro, ou pedras ou
escravos ou o que fosse, a determinação de entrar na mata fechada, de ser
indiferente à morte como só um predador faminto é capaz; esse pecado desbravou
nosso território e formou nosso país. Viva!
Os homens do nosso século são incapazes de querer algo com a
mesma veemência e falta de culpa com que os homens da Renascença queriam.
Olhamos para trás e nos horrorizamos com a violência. Os vícios dos outros são
sempre mais chocantes. Algo similar ocorre quando olhamos os ícones políticos
de meados do século 20; todos – Che, Churchill, Mandela –, envolvidos em muito
mais violência do estamos prontos a tolerar hoje em dia.
Não quero adotar o papel ridículo daquele que condena o tempo
em que vive para exaltar um passado virtuoso, que, sabemos, não existiu. Digo
que estamos corretos em condenar a violência política daqueles tempos, mas
temos também o dever de compreendê-la em seu contexto; o mesmo vale para a
escravidão. E vou além: nossos revoltados anti-bandeirantes também têm um herói
legítimo para substituir os bandeirantes: Zumbi dos Palmares. Para o bem da
inocência deles, espero que jamais leiam uma biografia de Zumbi. Ou melhor,
espero que leiam. Inocência é coisa perigosa; adora atirar a primeira pedra.
O panteão dos homens é como o dos deuses gregos – grandes feitos
e grandes defeitos; e não menos digno de culto. Celebremos Mandela, os nossos
bandeirantes, Zumbi. A Inglaterra, país tão conciliador, tem lições a nos dar: celebram
Henrique VIII e Thomas More – nenhum
dos quais era flor que se cheirasse.
Crescer individualmente requer, entre outras coisas, perder
a devoção incondicional aos pais, aos professores, etc.; vê-los como os homens
que são. Uma cultura madura, da mesma forma, não acredita na verdade literal
dos heróis; e por isso mesmo pode prestar-lhe homenagens mais verdadeiras. A
admiração de uma figura heroica, que fez algum grande bem, não requer a
salvação de sua alma. Mandela lutou pelo bem, marcou a percepção de seu tempo
de forma positiva. Sendo assim, viva Mandela, ainda que eu – e não só eu – não saiba
nada do homem!