O texto abaixo é adaptado de um trecho da minha dissertação. Porque é possível infundir vida mesmo nos corpos mais cadavéricos.
Quem não leu Os Irmãos Karamázov pode ler "O Grande Inquisidor" aqui. Sugiro que o faça não apenas para acompanhar este artigo, mas porque aí há mais conteúdo condensado do que em metade dessa estante cheia de livros que você não leu. Sem exagero. Fica a dica.
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Ferrenho combatente de utopias reducionistas,
Dostoiévski não deixou de idealizar a sua própria. Mesmo os críticos mais próximos
de sua visão de mundo (Berdiáiev, Ellis Sandoz) não deixam de notar este seu
ponto fraco: Dostoiévski identificou problemas e escancarou feridas, e o fez
com precisão inacreditável, mas não obteve o mesmo êxito quando
tentou propor soluções. Um exemplo sumário disto se dá em sua representação de
duas personagens antagônicas: Ivan e Aliócha Karamázov. Não será exagero dizer
que as falas de Ivan no famoso diálogo entre os dois irmãos, que ocupa o que
são provavelmente os três principais capítulos de Os Irmãos Karamázov, fecundaram com suas dúvidas e sua angústia
toda a história intelectual do século XX, na Rússia como no Ocidente. Porém,
não é possível dizer o mesmo de Aliócha e seu stárietz Zossima, ainda que suas falas contenham as ideias
“positivas” do próprio Dostoiévski[1].
Nas Notas de
Inverno se dá algo semelhante: os pontos mais fortes do texto, onde o
narrador é mais eloquente em suas tiradas ácidas, referem-se às críticas feitas
tanto à Europa quanto à Rússia. Já os momentos em que é exposta a utopia
pessoal de Dostoiévski deixam o leitor pouco convencido; por mais que a porção
eslavófila do discurso do narrador desperte interesse, destoa do – por assim
dizer – dinamismo do resto. Dostoiévski nos acostuma a sempre considerar um
objeto por seus ângulos mais contrários, nos convence de que a verdade, não
sendo mutável, é ainda assim bem mais complexa do que os esquemas conceituais e
simbólicos que inventamos para expressá-la. E, ao fazê-lo, ele paradoxalmente
se aproxima da verdade; mas, ao mesmo tempo, por uma imperfeição em sua
consciência artística, julga necessário apresentar também um modelo em duas
dimensões do que acabou de expressar com a eloquência fulminante de seu
“realismo superior” – e aí prejudica a harmonia do conjunto.
Tanto a “Lenda do Grande Inquisidor” quanto os
sermões do stárietz Zossima são
inspirados pela mesma intuição da verdade, com a diferença de que Zossima é
esta inspiração desfigurada pela ideologia naródnik
de Dostoiévski. Como bem notou Nikolai Berdiáiev, “no Cristianismo russo há
sempre o grave perigo da predominância do elemento popular (naródnik; narod = povo) sobre o Logos Universal, da alma sobre o espírito.
Este perigo pode ser visto no próprio Dostoiévski: sua divindade é com
frequência o deus russo e não o Deus universal.”[2]
Outra importante diferença é que a Lenda se insere
no labirinto de contrários que é Os
Irmãos Karamázov, e sua força advém justamente de conseguir sustentar-se
diante de todas as tensões adversas que a provam por todos os lados. Já o Livro
VI, “Um Monge Russo”, onde Aliócha compila os sermões de seu mestre,
soa como um adendo artificial aos capítulos anteriores. Aí já não
fala mais o Dostoiévski artista e sim o ideólogo; as intuições luminosas dão
lugar ao wishful thinking.
O ponto a ser enfatizado é que talvez esse
“anticlímax” representado, nos Karamázov,
pelo Livro VI (e, em outras obras, por outras falas ou personagens) esteja na
origem da universalmente experimentada dificuldade de se precisar o sentido da
obra de Dostoiévski, ao ponto de haver quem tome tal dificuldade por impossibilidade. É como se Dostoiévski criasse seu próprio espantalho e
desviasse, involuntariamente, a atenção do leitor a um pastiche (o Livro VI) da
verdade que acabou de expressar em toda a sua vivacidade e complexidade (a
Lenda). Então, o leitor desavisado, distante da cosmovisão de um Zossima e
culturalmente predisposto a compartilhar da angústia de Ivan, entende, para seu
comodismo, que a “lição de moral” do livro está naquelas falas adocicadas do
velho monge, e que portanto o poema alucinado do jovem intelectual Karamázov só
pode ocupar-se de outra coisa, só pode ter valor “negativo”, já que a
“positividade” está expressa alhures. É de fato muito difícil entender que
textos tão distintos – um tão próximo de nós, outro tão olimpicamente frígido –
sejam tentativas de expressão da mesma verdade.
No fundo, o grande problema é aproximar-se de
Dostoiévski buscando nele as categorias de “positivo” e “negativo”; se há, de
fato, ideias com que Dostoiévski tem afinidade e outras a que é hostil, sua expressão literária da dinâmica entre
essas ideias e os sujeitos e sociedades que as produziram é bem mais complexa.
Pode-se, para fins didáticos, elencar Ivan Karamázov entre as “personagens negativas”
de Dostoiévski: o tipo social e psicológico por ele representado era
considerado pelo autor como um aspecto doentio da cultura russa. Porém, o que
dizer da “Lenda do Grande Inquisidor”, produto da imaginação de Ivan e inserida
no romance a partir de suas falas? Seria a Lenda também “negativa”? O próprio
Dostoiévski considerava que não:
A ideia [do capítulo “Revolta”] é
apresentar o extremo da blasfêmia e as sementes da ideia de destruição, na
Rússia deste momento, entre a geração de jovens que se apartaram da realidade.
As convicções de Ivan formam o que eu considero a síntese do anarquismo russo
contemporâneo. A negação não de Deus, mas de Sua criação. Todo o socialismo
emergiu da negação do sentido da atualidade histórica e chegou ao programa da destruição
e do anarquismo. Os principais anarquistas eram, em muitos casos, homens
sinceramente convictos. Meu herói escolhe um tema e, em minha opinião, um tema
inexpugnável: a falta de sentido do sofrimento das crianças – e daí deduz a
absurdidade de toda a atualidade histórica... E a blasfêmia do meu herói será triunfantemente refutada no próximo
capítulo [“O Grande Inquisidor”],
no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa
(a refutação do anarquismo) uma proeza cívica.[3] (Grifo meu)
Para Dostoiévski, estava muito clara a disposição de
“negatividade” e “positividade” entre os capítulos “Revolta” e “O Grande
Inquisidor”. Ainda assim, é um fato que a constituição artística da Lenda envolve
ambas as noções, pondo-as em franco embate, e durante este embate ambas
estão como em pé de igualdade: se o bem vence no final, é após uma batalha
sangrenta, da qual o autor não exclui mesmo as armadilhas mais perigosas, ainda
que sua simpatia esteja o tempo todo com o Cristo torturado. E não é por acaso
que a Lenda é assim composta: se Dostoiévski poupasse sua “ideia positiva” (Cristo)
de qualquer dos ataques da “negatividade” (a revolta de Ivan; o Grande
Inquisidor), não demonstraria satisfatoriamente sua solidez. O pouco poder de convencimento
do Livro VI advém justamente desse isolamento de forças contrárias.
Note-se ainda que isto é análogo ao próprio procedimento de Cristo junto aos
homens, segundo exposto na Lenda. Deus permite a existência do mal enquanto
condição de possibilidade da liberdade humana: é preciso que os homens
sobrevivam ao vale de lágrimas terreno lutando apenas com a força do exemplo
dado por Cristo, pois de outro modo serão títeres nas mãos do poder divino, não
criaturas dotadas de vontade (livre arbítrio). Ou seja, como o Cristo
dostoievskiano diante do Grande Inquisidor, o único modo de o homem demonstrar
sua dignidade e grandeza é enfrentando o mal; Dostoiévski não poupa suas
próprias crenças de descer à arena para digladiar-se com crenças contrárias do
mesmo modo como Deus permite o mal entre os homens.
E o mais curioso é que em ambos os casos tal
procedimento gera confusão. Com a “Lenda do Grande Inquisidor”, Dostoiévski de fato refuta a revolta de Ivan
Karamázov – do ponto de vista intelectual e textual. Porém, é controverso afirmar
o sucesso de tal refutação enquanto “proeza cívica”, isto é, o quanto a obra
artística de Dostoiévski é culturalmente
eficaz na defesa dos valores que se propõe sustentar. No fim das contas, os
últimos cento e trinta anos têm mostrado que a grande maioria de seus leitores
não consegue acompanhar o combate sutil entre Cristo e o Grande Inquisidor,
saindo da Lenda incertos quanto a seu sentido, especialmente no contexto maior
de Os Irmãos Karamázov, com o
eslavofilismo de Zossima e silhueta vaga de Aliócha complicando o coro de
vozes.
De modo que não é necessário um
grande esforço de imaginação para supor, digamos, um Mikhail Bakhtin trajado de
inquisidor soviético, brandindo em uma cela escura o dedo inflamado diante de
um Dostoiévski ressurgido das cinzas:
... Por que voltaste?
Por que vieste nos atrapalhar? Tu compuseste um labirinto insondável,
povoaste-o com vozes desconcertantes e foste embora antes mesmo de escrever a maldita
continuação do livro. Ninguém sabia o que fazer com tua obra! Os
revolucionários proibiram-na, os emigrados transformaram-na em expressão do
puro espírito descarnado. Enquanto isso, apenas os fortes chegavam à metade do
teu labirinto; e só raros, raríssimos, somente os eleitos do Dostoievskianismo desvendavam
seu sentido final! Mas quantos Berdiáievs há sobre a terra? Tu escreveste para
os poucos e fortes, mas nós – nós corrigimos a tua façanha! Tu escondeste tua
verdade sob uma enlouquecedora malha de vozes; a esta eu chamei polifonia e então
mandei tudo pelos ares: não há pote de ouro no fim do arco-íris dostoievskiano!
Parem de procurar, seus idiotas! – E tu pensas que eles resistiram? Achas que
hesitaram em abraçar o relativismo polifônico, que fizeram questão de continuar
perseguindo às cegas tua verdade apenas insinuada? Até parece! Tu dirigiste tua
palavra aos espirituais, mas eu a difundi entre socialistas, anarquistas,
feministas, psicanalistas e toda uma gama interminável de minorias que, sob o
teu pseudomonologismo, não passariam nem da porta do labirinto de vozes que
criaste. Mas hoje eles são legião! Quem? Ora, os MEUS dostoievskianos. Por que
me olhas assim? Achas que não posso ser
eu mesmo um dostoievskiano? Hahahah! Eu bem sabia que adivinharias. É isso mesmo:
eu não estou contigo, não sou um dostoievskiano! Não decifrei o labirinto, não
sei o que há no final, nem me interessa saber. Meu único interesse é habitar a
tua carcaça. Quiseste pintar aos homens um quadro fidedigno da realidade, e assim
povoaste tuas cenas com anti-heróis diante dos quais teus mocinhos são
insignificantes como lesmas. Realista, deveras! Genial, realmente! E muito
conveniente à MINHA obra. Então não, não pensa que vais reaparecer assim do
nada, com esses ossos pendurados e essa barba suja de cal: não precisamos mais
de ti. O mundo já não pode viver sem Dostoiévski, mas tu, tu destruirias o
Dostoiévski que EU dei ao mundo conhecer, o único possível, o único acessível a
todos indiferentemente, o Dostoiévski polifônico, amorfo, inconsequente, fonte
inesgotável de inspirações a quem se quiser fecundar de tão pr...
Neste momento, o
cadáver ressurreto de Dostoiévski cai no chão da cela e começa a debater-se;
uma espuma esverdeada lhe escorre dos lábios, e Mikhail Bakhtin fica atônito a contemplar
a cena sem atinar com o que fazer.
[1] Para certificar-se disto basta comparar o Livro VI de Os Irmãos Karamázov, no qual estão
reunidos os sermões de Zossima, com os artigos de Dostoiévski no Diário de um escritor.
[2] Nicholas Berdyaev, Dostoevsky. Meridian
Books: 1968, p. 185.
[3] Carta a N. A. Liubímov, 10 de Maio de 1879. In: Fyodor M. Dostoevsky, “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, New Criterion, IV (1926), 552-553.