segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Dostoiévski entre a inspiração e a ideologia

O texto abaixo é adaptado de um trecho da minha dissertação. Porque é possível infundir vida mesmo nos corpos mais cadavéricos.
Quem não leu Os Irmãos Karamázov pode ler "O Grande Inquisidor" aqui. Sugiro que o faça não apenas para acompanhar este artigo, mas porque aí há mais conteúdo condensado do que em metade dessa estante cheia de livros que você não leu. Sem exagero. Fica a dica.

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Ferrenho combatente de utopias reducionistas, Dostoiévski não deixou de idealizar a sua própria. Mesmo os críticos mais próximos de sua visão de mundo (Berdiáiev, Ellis Sandoz) não deixam de notar este seu ponto fraco: Dostoiévski identificou problemas e escancarou feridas, e o fez com precisão inacreditável, mas não obteve o mesmo êxito quando tentou propor soluções. Um exemplo sumário disto se dá em sua representação de duas personagens antagônicas: Ivan e Aliócha Karamázov. Não será exagero dizer que as falas de Ivan no famoso diálogo entre os dois irmãos, que ocupa o que são provavelmente os três principais capítulos de Os Irmãos Karamázov, fecundaram com suas dúvidas e sua angústia toda a história intelectual do século XX, na Rússia como no Ocidente. Porém, não é possível dizer o mesmo de Aliócha e seu stárietz Zossima, ainda que suas falas contenham as ideias “positivas” do próprio Dostoiévski[1].

Nas Notas de Inverno se dá algo semelhante: os pontos mais fortes do texto, onde o narrador é mais eloquente em suas tiradas ácidas, referem-se às críticas feitas tanto à Europa quanto à Rússia. Já os momentos em que é exposta a utopia pessoal de Dostoiévski deixam o leitor pouco convencido; por mais que a porção eslavófila do discurso do narrador desperte interesse, destoa do – por assim dizer – dinamismo do resto. Dostoiévski nos acostuma a sempre considerar um objeto por seus ângulos mais contrários, nos convence de que a verdade, não sendo mutável, é ainda assim bem mais complexa do que os esquemas conceituais e simbólicos que inventamos para expressá-la. E, ao fazê-lo, ele paradoxalmente se aproxima da verdade; mas, ao mesmo tempo, por uma imperfeição em sua consciência artística, julga necessário apresentar também um modelo em duas dimensões do que acabou de expressar com a eloquência fulminante de seu “realismo superior” – e aí prejudica a harmonia do conjunto.

Tanto a “Lenda do Grande Inquisidor” quanto os sermões do stárietz Zossima são inspirados pela mesma intuição da verdade, com a diferença de que Zossima é esta inspiração desfigurada pela ideologia naródnik de Dostoiévski. Como bem notou Nikolai Berdiáiev, “no Cristianismo russo há sempre o grave perigo da predominância do elemento popular (naródnik; narod = povo) sobre o Logos Universal, da alma sobre o espírito. Este perigo pode ser visto no próprio Dostoiévski: sua divindade é com frequência o deus russo e não o Deus universal.”[2]

Outra importante diferença é que a Lenda se insere no labirinto de contrários que é Os Irmãos Karamázov, e sua força advém justamente de conseguir sustentar-se diante de todas as tensões adversas que a provam por todos os lados. Já o Livro VI, “Um Monge Russo”, onde Aliócha compila os sermões de seu mestre, soa como um adendo artificial aos capítulos anteriores. Aí já não fala mais o Dostoiévski artista e sim o ideólogo; as intuições luminosas dão lugar ao wishful thinking.

O ponto a ser enfatizado é que talvez esse “anticlímax” representado, nos Karamázov, pelo Livro VI (e, em outras obras, por outras falas ou personagens) esteja na origem da universalmente experimentada dificuldade de se precisar o sentido da obra de Dostoiévski, ao ponto de haver quem tome tal dificuldade por impossibilidade. É como se Dostoiévski criasse seu próprio espantalho e desviasse, involuntariamente, a atenção do leitor a um pastiche (o Livro VI) da verdade que acabou de expressar em toda a sua vivacidade e complexidade (a Lenda). Então, o leitor desavisado, distante da cosmovisão de um Zossima e culturalmente predisposto a compartilhar da angústia de Ivan, entende, para seu comodismo, que a “lição de moral” do livro está naquelas falas adocicadas do velho monge, e que portanto o poema alucinado do jovem intelectual Karamázov só pode ocupar-se de outra coisa, só pode ter valor “negativo”, já que a “positividade” está expressa alhures. É de fato muito difícil entender que textos tão distintos – um tão próximo de nós, outro tão olimpicamente frígido – sejam tentativas de expressão da mesma verdade.

No fundo, o grande problema é aproximar-se de Dostoiévski buscando nele as categorias de “positivo” e “negativo”; se há, de fato, ideias com que Dostoiévski tem afinidade e outras a que é hostil, sua expressão literária da dinâmica entre essas ideias e os sujeitos e sociedades que as produziram é bem mais complexa. Pode-se, para fins didáticos, elencar Ivan Karamázov entre as “personagens negativas” de Dostoiévski: o tipo social e psicológico por ele representado era considerado pelo autor como um aspecto doentio da cultura russa. Porém, o que dizer da “Lenda do Grande Inquisidor”, produto da imaginação de Ivan e inserida no romance a partir de suas falas? Seria a Lenda também “negativa”? O próprio Dostoiévski considerava que não:

A ideia [do capítulo “Revolta”] é apresentar o extremo da blasfêmia e as sementes da ideia de destruição, na Rússia deste momento, entre a geração de jovens que se apartaram da realidade. As convicções de Ivan formam o que eu considero a síntese do anarquismo russo contemporâneo. A negação não de Deus, mas de Sua criação. Todo o socialismo emergiu da negação do sentido da atualidade histórica e chegou ao programa da destruição e do anarquismo. Os principais anarquistas eram, em muitos casos, homens sinceramente convictos. Meu herói escolhe um tema e, em minha opinião, um tema inexpugnável: a falta de sentido do sofrimento das crianças – e daí deduz a absurdidade de toda a atualidade histórica... E a blasfêmia do meu herói será triunfantemente refutada no próximo capítulo [“O Grande Inquisidor”], no qual estou trabalhando agora com temor e tremor, pois considero minha tarefa (a refutação do anarquismo) uma proeza cívica.[3] (Grifo meu)

Para Dostoiévski, estava muito clara a disposição de “negatividade” e “positividade” entre os capítulos “Revolta” e “O Grande Inquisidor”. Ainda assim, é um fato que a constituição artística da Lenda envolve ambas as noções, pondo-as em franco embate, e durante este embate ambas estão como em pé de igualdade: se o bem vence no final, é após uma batalha sangrenta, da qual o autor não exclui mesmo as armadilhas mais perigosas, ainda que sua simpatia esteja o tempo todo com o Cristo torturado. E não é por acaso que a Lenda é assim composta: se Dostoiévski poupasse sua “ideia positiva” (Cristo) de qualquer dos ataques da “negatividade” (a revolta de Ivan; o Grande Inquisidor), não demonstraria satisfatoriamente sua solidez. O pouco poder de convencimento do Livro VI advém justamente desse isolamento de forças contrárias.

Note-se ainda que isto é análogo ao próprio procedimento de Cristo junto aos homens, segundo exposto na Lenda. Deus permite a existência do mal enquanto condição de possibilidade da liberdade humana: é preciso que os homens sobrevivam ao vale de lágrimas terreno lutando apenas com a força do exemplo dado por Cristo, pois de outro modo serão títeres nas mãos do poder divino, não criaturas dotadas de vontade (livre arbítrio). Ou seja, como o Cristo dostoievskiano diante do Grande Inquisidor, o único modo de o homem demonstrar sua dignidade e grandeza é enfrentando o mal; Dostoiévski não poupa suas próprias crenças de descer à arena para digladiar-se com crenças contrárias do mesmo modo como Deus permite o mal entre os homens.

E o mais curioso é que em ambos os casos tal procedimento gera confusão. Com a “Lenda do Grande Inquisidor”, Dostoiévski de fato refuta a revolta de Ivan Karamázov – do ponto de vista intelectual e textual. Porém, é controverso afirmar o sucesso de tal refutação enquanto “proeza cívica”, isto é, o quanto a obra artística de Dostoiévski é culturalmente eficaz na defesa dos valores que se propõe sustentar. No fim das contas, os últimos cento e trinta anos têm mostrado que a grande maioria de seus leitores não consegue acompanhar o combate sutil entre Cristo e o Grande Inquisidor, saindo da Lenda incertos quanto a seu sentido, especialmente no contexto maior de Os Irmãos Karamázov, com o eslavofilismo de Zossima e silhueta vaga de Aliócha complicando o coro de vozes.

            De modo que não é necessário um grande esforço de imaginação para supor, digamos, um Mikhail Bakhtin trajado de inquisidor soviético, brandindo em uma cela escura o dedo inflamado diante de um Dostoiévski ressurgido das cinzas:

... Por que voltaste? Por que vieste nos atrapalhar? Tu compuseste um labirinto insondável, povoaste-o com vozes desconcertantes e foste embora antes mesmo de escrever a maldita continuação do livro. Ninguém sabia o que fazer com tua obra! Os revolucionários proibiram-na, os emigrados transformaram-na em expressão do puro espírito descarnado. Enquanto isso, apenas os fortes chegavam à metade do teu labirinto; e só raros, raríssimos, somente os eleitos do Dostoievskianismo desvendavam seu sentido final! Mas quantos Berdiáievs há sobre a terra? Tu escreveste para os poucos e fortes, mas nós – nós corrigimos a tua façanha! Tu escondeste tua verdade sob uma enlouquecedora malha de vozes; a esta eu chamei polifonia e então mandei tudo pelos ares: não há pote de ouro no fim do arco-íris dostoievskiano! Parem de procurar, seus idiotas! – E tu pensas que eles resistiram? Achas que hesitaram em abraçar o relativismo polifônico, que fizeram questão de continuar perseguindo às cegas tua verdade apenas insinuada? Até parece! Tu dirigiste tua palavra aos espirituais, mas eu a difundi entre socialistas, anarquistas, feministas, psicanalistas e toda uma gama interminável de minorias que, sob o teu pseudomonologismo, não passariam nem da porta do labirinto de vozes que criaste. Mas hoje eles são legião! Quem? Ora, os MEUS dostoievskianos. Por que me olhas assim?  Achas que não posso ser eu mesmo um dostoievskiano? Hahahah! Eu bem sabia que adivinharias. É isso mesmo: eu não estou contigo, não sou um dostoievskiano! Não decifrei o labirinto, não sei o que há no final, nem me interessa saber. Meu único interesse é habitar a tua carcaça. Quiseste pintar aos homens um quadro fidedigno da realidade, e assim povoaste tuas cenas com anti-heróis diante dos quais teus mocinhos são insignificantes como lesmas. Realista, deveras! Genial, realmente! E muito conveniente à MINHA obra. Então não, não pensa que vais reaparecer assim do nada, com esses ossos pendurados e essa barba suja de cal: não precisamos mais de ti. O mundo já não pode viver sem Dostoiévski, mas tu, tu destruirias o Dostoiévski que EU dei ao mundo conhecer, o único possível, o único acessível a todos indiferentemente, o Dostoiévski polifônico, amorfo, inconsequente, fonte inesgotável de inspirações a quem se quiser fecundar de tão pr...

          Neste momento, o cadáver ressurreto de Dostoiévski cai no chão da cela e começa a debater-se; uma espuma esverdeada lhe escorre dos lábios, e Mikhail Bakhtin fica atônito a contemplar a cena sem atinar com o que fazer.







[1] Para certificar-se disto basta comparar o Livro VI de Os Irmãos Karamázov, no qual estão reunidos os sermões de Zossima, com os artigos de Dostoiévski no Diário de um escritor.
[2] Nicholas Berdyaev, Dostoevsky. Meridian Books: 1968, p. 185.
[3] Carta a N. A. Liubímov, 10 de Maio de 1879. In: Fyodor M. Dostoevsky, “Dostoevsky on The Brothers Karamazov”, New Criterion, IV (1926), 552-553.
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