Há poucos anos, determinados
assuntos estranhos ingressaram no campo de interesses de uma parcela minúscula,
mas cada vez maior e mais atuante (sobretudo em internet), dos jovens
brasileiros. “Educação clássica”, “trivium”, “escolástica” e coisas similares
tornaram-se menos objeto de discussão que de veneração em termos de paidéia e
ideal, o que, em um primeiro momento, não é coisa em si mesma ruim. Creio que o
fenômeno mereça atenção e que se engana quem menoscaba essas coisas, julgando-as
passatempos de moleques que nunca chegarão a ter maior repercussão: uma hora,
acredito, essas aspirações e referências chegarão talvez a receber até
divulgação jornalística. Não, eu não estou sendo muito otimista; estou sendo
até um tanto pessimista, pelo que passo a dizer.
Conheço pessoalmente não uma nem
duas, mas várias pessoas que passam o dia a recolher bibliografias, a cantar
para si mesmas as glórias da erudição e da sabedoria, a entreter sonhos de uma
obra intelectual, de um destino pessoal na cultura, e que assim se tornam
letárgicas e não passam à ação efetiva, a qual não necessariamente as tornaria
gênios, mas pessoas minimamente dignas da imagem pela qual zelam. Isso ocorre
porque há pessoas demais que já não sabem para que serve a cultura e que,
todavia, buscam se adequar a uma imagem edulcorada da “vida do espírito” – o
rapaz larga a prancha de surf hoje e já quer acordar um intelectual amanhã,
mesmo jurando para si mesmo que não, que está ainda só “buscando formação” –; e
o caminho mais curto sempre é o da macaqueação de determinados trejeitos e
interesses. No caso, determinados elementos colhidos em períodos históricos
pretéritos que, por petição de princípio, tomamos logo como indubitavelmente
bons e universalmente inspiradores – impulso esse no qual
sobra apologética, falta dialética.
Há, portanto, muita gente
desorientada (“o que devo ler?”) a buscar orientação – o que é bom; mas há
muita gente a se regozijar com a consciência de sua desorientação (“o Brasil
acabou, preciso voltar para a Idade Média”), o que acaba subvertendo aquele
primeiro e saudável impulso.
Sob esse aspecto, pouco há de
novo na situação atual do Brasil: nós sempre fomos carentes de um senso de
orientação cultural capaz de estabelecer uma tradição de ensino e erudição, com
uma pedagogia apropriada e modelos específicos de homem bem-formado. Só o que
deixou de existir foi o espaço antes garantido (em jornais, por exemplo) a
intelectuais que, pela sua competência, de um modo ou outro acabavam funcionando como ímãs sociais, como mínimo norte de uma bússola cultural
constantemente desorientada. Mas essa desorientação é que é a regra (à qual se
soma hoje um negativismo que vê no denuncismo da decadência uma das mais altas
finalidades da cultura – houve a Escola de Frankfurt, agora temos a brasileiríssima
Escola de Foda-se Tudo). Tanto o é, que esse espaço antes assegurado a
intelectuais o era quase que só aos tipos “letrados”, nem sempre dos mais bem
equipados para oferecer tal tipo de discernimento; filósofos, sociólogos e
cientistas, por exemplo, sempre correram por fora.
Então o possível debate para o
Brasil ao longo das próximas décadas não pode se limitar à discussão ou simples
aceitação da importação – neste caso, histórica, não geográfica; diacrônica,
não sincrônica – de modelos que, de imediato, nada nos dizem respeito. Séculos
atrás, recebemos a aridez do ensino inaciano, sem maior capacidade de
disseminação social (um ensino de elite para um país sem elites na acepção
forte da palavra); pouco depois, aclimatamo-nos à matematização à francesa de
um modelo positivista, no qual ainda se enxertava a “retórica” como estudo mais
ou menos reverencial das “belas letras”, e por isso mesmo irrelevante; quando
do surgimento de nossas maiores universidades, incorporamos o modelo
departamental americano, e com ele o seu carreirismo. E hoje, quando vez ou
outra professores universitários demonstram sua insatisfação diante dos frutos
desses modelos, quando surge uma geração motivada a fazer alguma coisa, apenas reeditamos nosso atavismo histórico, que
embeleza o que nos é alheio só porque soa distante, aéreo, empíreo. No cerne
desse esforço há dessarte uma tendência à kitschização
da alta cultura, provinciana não no bom sentido da palavra, problema que não sei até
que ponto se deve à nossa inclusão entre as “culturas shakespearianas”. De certa
forma, achamos o trivium algo bacana do mesmo modo como achamos a mitologia
hindu algo bacana. E apenas bacana, assim, nesse clima meio esportivo.
Pergunto: quantos dos
intelectuais mais relevantes do século passado, em escala global, foram
educados tendo por base um método extraído diretamente da antiguidade ou da
Idade Média? O leitor talvez possa citar um caso ou outro, mas creio que
buscará seus exemplos entre os intelectuais menos representativos. Com essa
ilustração, creio chegar ao cerne do problema: a qualidade de um projeto
pedagógico está em determinados valores e métodos que não necessariamente têm
algo que ver com modelos que se mostraram eficientes no passado; têm a ver com
o sentido por trás desses valores e métodos, o qual, talvez permanente, pode
ser atualizado em contextos sociais e históricos os mais díspares, porque
naturalmente mutáveis. Uma atualização de sucesso foi a que se fez na Alemanha
dos séculos XVIII e XIX: classicismo e romantismo não foram movimentos
literários apenas, mas concepções inteiras da cultura, e que surgiram, se
complexificaram e duelaram no momento mesmo de estabelecimento da universidade
alemã como projetos para a nação. Por sinal, havia “um consenso universal entre os eruditos alemães
posteriores a 1890 de que a idéia germânica moderna de universidade e de
educação estava irrevogavelmente atada a suas origens intelectuais no idealismo
e no neo-humanismo alemães”, mas esse “consenso” mesmo abrigava divergências feias,
como mostra Fritz Ringer neste estudo famoso.
[Por falar em classicismo,
gostaria que alguma boa alma escrevesse, tal como Haroldo de Campos escreveu
sobre o O Seqüestro do Barroco, um
livro sobre o seqüestro do nosso classicismo não árcade na visão comum que temos da história literária brasileira. Pois sim, houve classicismo literário "à renascentista", ainda que incipiente, tardio e local, e inclusive mais ou menos como projeto pedagógico, no Maranhão da
primeira metade do século XIX: João Francisco Lisboa, latinista e prosador que
só tem concorrente naquele século em Machado de Assis – opinião também de José
Guilherme Merquior e Álvaro Lins; o gramático e latinista Sotero dos Reis; o
poeta e tradutor Odorico Mendes, que todos conhecem; e, em parte, Gonçalves
Dias, cuja poesia romântica não mascara a sua formação no mesmo ambiente que os
demais. Mas esse projeto se dilataria mais ainda, com Antônio Henriques Leal,
chegando até ao helenismo radical e modernista de Sousândrade. Aliás, as
próprias traduções de Odorico, como o professor e ensaísta Sebastião Moreira
Duarte lembra na única reedição, em dois volumes, do Virgílio Brasileiro (Edufma, 1995), representavam uma tentativa não
de fazer a Hélade falar ao Brasil, mas de fazer um brasileiro falar à Hélade. Era,
assim, o cume de uma pretensão civilizacional que permanece sem estudo, assim
como a “prosa ática” (Franklin de Oliveira) de João Francisco Lisboa era ela
própria um modelo vernacular, que tanto mais brasileira era quanto mais não
tinha vergonha de ser lusa, evitando ridículos como os de José de Alencar.
Leiam o que José Veríssimo escreveu sobre “Gonçalves Dias e o grupo maranhense”
como ponto de partida para um estudo sobre esse fenômeno cuja gênese permanece
sem explicação.]
Em síntese, a 1) tendência a
introjetar uma série de posturas desprovidas de articulação mais refinada frente
à nossa situação concreta, aos nossos problemas pedagógicos e civilizacionais,
2) a ausência de discussão da suposta validade intrínseca dessas posturas
(sejam métodos propriamente ou não), 3) a letargia advinda de um estetismo da
alta cultura, que se compraz mais no encômio do que na prática, e 4) a própria
indiferença à análise do problema da adequação entre o sentido da cultura e a
transitoriedade das conjunturas levam-nos, mais uma vez, a trair qualquer
compromisso sério que queiramos estabelecer com a nossa situação e seus
verdadeiros anseios. Simplesmente alongaremos nossa antitradição de didatismo kitsch, a não ser que comecemos desde
logo a submeter todas essas aspirações a alguma crítica (Rafael Falcón, parece,
tem boas preocupações nesse sentido e conduz seu estudo de forma responsável).
Ou procedemos a essa crítica
civilizacional ou nunca haverá possibilidade de fazermos frente ao problema
cujo símbolo mais surreal são os quase 40% de analfabetos funcionais em bancos
de nossas universidades. Só quando deixarmos claro o que deu errado no ensino e
na cultura do Brasil, e com que régua medimos o grau de acerto ou erro, é que
seremos capazes de avaliar se as próprias réguas com que nos medimos, novas ou
velhas, não estão elas próprias adulteradas. Ou se não precisam ser adulteradas.