1.
Diante da morte, desde sempre, mulheres choram, enquanto
homens cavam sepulturas.
Tal imagem, de autoria de Eugen Rosenstock-Huessy,
impressiona pela sua verdade intrínseca. Vale, assim, mais que pencas de argumentos
no sentido de que, contrária à ideologia de gênero, existe, sim, uma divisão do
trabalho e uma diferença de caráter inerentes ao homem e à mulher – no sentido
de que, por fatores de ordem objetiva, homem é homem e mulher, mulher, e que
todas as demais construções culturais recorreriam a tal fundamento (e
fundamento algum, se de fato o for, não pode ser cultural).
Todo o senso comum testemunha a oposição e
complementariedade do masculino e do feminino. Mesmo a compreensão vulgar do
homossexualismo, inclusive por parte dos próprios homossexuais, volta a tais
termos (de que o indivíduo em questão seria mais feminino que masculino, a
despeito da masculinidade do seu gênero biológico; vê-se que é um raciocínio,
do ponto de vista da “identidade homossexual”, um tanto suicida). Há uma longa
e mais ou menos convergente tradição em torno da “metafísica dos sexos”, bem
como um simbolismo que lhe é próprio. Talvez o mais conhecido e banalizado seja
a analogia que põe o lunar, a determinabilidade (ou “matéria” ou como queira
chamar, a depender do plano ontológico que se tome para análise) e o feminino,
de um lado; e o solar, a determinação (ou “forma” ou idem) e o masculino, de
outro. Igualmente longa, além de inseparável da questão, é a história do
arquétipo do andrógino, do ser de sexualidade “completa”, cuja última imagem
exemplar Mircea Eliade encontra no romance Serafita,
de Balzac. É uma tradição, e tradição é testemunho abalizado: vale até certo
ponto, necessitando, a partir de determinadas circunstâncias, ter os seus
fundamentos revistos – ou pelo menos explicitamente
vistos.
Para um público não cristão, os comentários de Lorena Miranda e Day Teixeira aos textos de Aline Brodbeck podem ser pouco aceitáveis,
tanto quanto o que escreveu esta, justamente por supor a naturalidade e
objetividade do “masculino” e do “feminino”. As três estão de acordo quanto a tais
naturalidade e objetividade. Discordam, é o que parece, quanto aos meios pelos
quais tais fatos devem ser integrados à vida da mulher e seu comportamento
público – ou talvez também quanto à própria substância do “feminino”. Também
estou de acordo quanto àquela naturalidade. Só não sei se pelos mesmos motivos,
pelo que achei conveniente expor brevemente a visão do filósofo austríaco Otto
Weininger (1880-1903) – que não é, em si mesma, cristã – em Sexo e Caráter (1903), o estudo mais pinel
e genial que conheço a respeito, do qual me é muitas vezes impossível, em que
pese a repugnância inicial despertada por muitas de suas idéias, discordar
quanto ao essencial. O doidivanas escreveu este estudo, que vai da biologia à
filosofia da história, da caracterologia à lógica e metafísica, sem um salto
argumentativo sequer, quando mal passava de moleque de vinte anos de idade,
portanto três anos antes de se suicidar. É o caso mais cabal que conheço de
genialidade precoce, tanto mais impressionante por se tratar de alguém que,
desprovido de imodéstia, tinha total consciência da sua própria genialidade e
se dedicou a investigar, assim, em que consiste o gênio (talvez por mais científicas, as páginas que escreveu a
respeito superam, por exemplo, as de um Goethe ou de um Ortega y Gasset sobre o
mesmo tema).
As citações feitas a seguir referem-se à edição Sexo y Carácter, trad. Felipe Jiménez de
Asúa, Editorial Losada, Buenos Aires, 1942. Peço aos leitores, sobretudo às
leitoras, que tenham um pouco de paciência com a possível estranheza das
concepções do autor, bem como com a extensão da exposição.
2.
A biologia, nota Weininger na primeira parte do livro (que é
a que menos interessa aqui), nos mostra que a natureza desdenha de nossas
noções de masculino e feminino. Fenômenos como o dimorfismo sexual, a
bissexualidade e o hermafroditismo estão disseminados na natureza em proporção
tal que, com honestidade, redunda impossível dizer que o ser humano seja, em
sua integralidade, masculino ou feminino no mesmo sentido em que os demais
animais e plantas o são. Na natureza impera o “princípio dos graus
intersexuais”; não há tipo feminino e tipo masculino isolados, pelo menos não
na maioria dos seres. A embriologia, a endocrinologia e a anatomia humanas
poderiam levar a crer, com razão, que o ser humano só existe enquanto uma
mescla e equilíbrio de elementos sexuais caóticos que jamais se agrupam em um
caráter sexual específico. Mas, aduz Weininger, tal impressão se esvai quando
passamos dos elementos “psicofísicos” para os “introspectivos”, passagem na
qual “impõe-se uma acentuada restrição à existência universal do princípio dos
graus intersexuais” (p. 111).
No gênero humano, psicologicamente, haveria sempre uma
disposição sexual especificamente masculina e outra especificamente feminina,
inclusive em duplas homossexuais. Encontra-se no ser humano “uma espécie de
polarização dos extremos com inumeráveis gradações entre eles” (p.113). Mas
essa premissa da caracterologia dos sexos não é verificável por uma psicologia
que se centra na “doutrina das sensações” (as sensoriais, dos cinco sentidos),
mas por uma que levante o problema da sede do indivíduo senciente, o “eu”, que
não corresponde inteiramente ao da psicanálise e para o qual o autor aventou
uma nova disciplina, a “biografia teórica” (p. 174), que levaria em conta os
modos diversos como homem e mulher experimentam o tempo (do que se falará
adiante). Tão logo se inverta a perspectiva, passando a ver a experiência desde
aquele que a vive integralmente, e não desde a própria experiência tomada à
parte, nota-se que cada ato do indivíduo é, em si mesmo, testemunho da sua
configuração total:
Do mesmo modo como a célula
guarda em si as propriedades do indivíduo em seu conjunto, assim também cada manifestação psíquica de um sujeito não
nos dá simplesmente “traços do seu caráter”, senão toda a sua essência, da qual, de acordo com o momento, ressalta
esta ou aquela particularidade (p. 116).
Sem, portanto, supor, de uma parte, a polarização
psicológica entre homem e mulher de maneira qualitativamente distinta da que a
biologia verifica na natureza, e, de outra parte, a integridade da manifestação
do caráter em cada particularidade do indivíduo, toda a discussão sobre o
“masculino” e o “feminino” cai ou presa de determinismo biológico – e assim não
se trata este animal como especificamente humano
– ou de um indutivismo alucinado – em que cada dado apreensível do ser humano
não encontra fundamento em nenhum modo próprio de existir enquanto humano.
Contudo, se o “princípio das formas intersexuais” não se aplicasse até certo
ponto a nós, seria impossível, por exemplo, que um homem compreendesse uma
mulher, pois seria como se não guardasse em si também algo de feminino.
Ora, ao falar-se em gênero sexual, é natural que se parta do
sexo em sentido estrito, o ato sexual, averiguando qual seria a diferença entre
o homem e a mulher quanto às suas propensões específicas frente ao intercurso. Weininger
leva em conta os dois momentos do impulso sexual distinguidos por Albert Moll:
o “impulso à detumescência” (o descarrego, por assim dizer, da tensão sexual) e
o “impulso à contração” (o prolongamento da tensão). E diz:
Enquanto o homem possui tanto o
impulso à detumescência como o impulso à contração, a mulher carece
completamente do primeiro, em sentido estrito. Isso se deve a que, no ato
sexual, é o homem que cede uma parte de matéria, enquanto a mulher retém tanto
as suas secreções como as do homem (p. 122).
A contrabalançar a possível arbitrariedade da afirmação,
Weininger elenca um sem-número de constatações. Uma delas é a de que a
constituição anatômica confirmaria isso: a proeminência da genitália no homem
(diferente do que se dá na mulher) o mostraria como o portador de algo a ser
vertido (uma “vasilha”, o autor o chama). Outra: o “desejo de atuar”, em toda a
natureza, tem no macho a sua realização, e até os espermatozóides o ilustrariam
– pois são os masculinos que vão em busca dos femininos. Haveria, assim, aquela
conhecida atribuição de “atividade” ao homem e de “passividade” à mulher, do
ponto de vista sexual; mas não só isso. Enquanto o homem buscaria no sexo um
abrandamento da tensão sexual, a mulher buscaria o seu prolongamento. Enquanto
o homem, assim, investe em direção à mulher para desfazer-se do impulso à
detumescência, a mulher se daria à investida para amplificar o impulso à
contração.
A mulher é – agora falaremos
pela primeira vez de uma diferença real – sexualmente
mais excitável que o homem; sua irritabilidade (não sensibilidade) fisiológica é, no que diz respeito à
esfera sexual, muito mais intensa. A
mulher se consome na vida sexual (...). O homem, ao contrário, não é
unicamente sexual (...) Somente a diferente extensão da esfera sexual no
homem e na mulher constitui uma diferença específica de importância
extraordinária entre os extremos sexuais (p. 124). (...) a mulher não é outra coisa que a sexualidade, pois é a sexualidade
mesma (p. 128).
Weininger elenca várias evidências de que o tipo feminino é
aquele essencialmente responsável pela sexualidade no ser humano. Uma das mais
interessantes é a contraposição das posturas do menino e da menina diante da
puberdade. Para o homem, o período de ingresso na maturidade sexual é um
período de crise; o garoto “sente que algo estranho penetra o seu ser, algo que
se acrescenta involuntariamente aos sentimentos e pensamentos até então
vividos”. A mulher, ao contrário, entra facilmente na maturidade sexual; “todo
o seu ser se encontra dotado de novos poderes e sua importância aumenta
enormemente diante dos seus próprios olhos”; “desde os primeiros anos espera
tudo” da puberdade, do finalmente “tornar-se mulher” (p. 126).
Haveria, portanto, segundo Weininger, uma divergência de
foco de atenção entre o homem e a mulher, sobretudo em razão da extensão
ocupada pela sexualidade em suas vidas. Weininger a encontra no que chama de hénide, que representa, cognitivamente,
o primeiro estágio da “descrição evolutiva do fenômeno” percebido. É preciso,
com respeito à psicologia (mas também à lógica), notar que o conhecimento se dá
por aproximação do indivíduo às notas objetivas do dado apreendido, limando-o,
aos poucos, dos conteúdos confusos e subjetivos que lhe turvavam em uma
primeira apreensão (“primeira” no sentido biográfico; a “simples apreensão” da
lógica clássica lhe dá sua estrutura e validade, mas pouco tem a ver com o seu
conteúdo). É como ir se aproximando de um objeto que antes se via só de longe;
é um processo de clarificação das
notas específicas do ente apreendido (p. 135), processo cujo primeiro estágio
de nebulosidade – sobreposição do psicológico ao lógico e ontológico – é a
hénide. Weininger afirma existir uma diferença no homem e na mulher quanto ao
processo de clarificação:
O homem tem os mesmos conteúdos
psíquicos que a mulher, mas em forma articulada, e, enquanto esta pensa mais ou
menos em hénide, aquele já pensa em representações claras e distintas que se
ligam a sentimentos determinados, que lhe permitem separá-los de todo o resto.
Nas mulheres, “pensar” e “sentir” são dois atos inseparáveis, coisa que não
ocorre no homem. A mulher, contudo, tem muitos acontecimentos em forma de
hénide quando o homem já é chegado a uma notável clarificação (p. 140).
Daí que a mulher tenderia a se apartar menos daquilo que
experimenta diretamente da realidade, preservando e alongando a primeira
apreensão (o que o senso comum refere ao ter a mulher como mais “intuitiva”),
enquanto o homem tenderia a uma maior abstração. Isso logo levanta a pergunta
sobre quais seriam, tendo isso em mente, as aptidões naturais ao homem ou à
mulher; ou seja, o problema do talento
e do gênio. Este último seria
qualitativamente diferente do primeiro. O talento pode ser específico e até
hereditário, mas a genialidade só pode ser universal e intempestiva. “Um homem
será tanto mais genial quanto mais homens encerre dentro de si”; “o ideal do
gênio da arte é viver em todos os homens, é perder-se em meio a todos,
diluir-se na multidão” (p. 147). Isso depende diretamente da clareza e
objetividade daquilo que ele percebe e produz; daí que:
A consciência genial é a que se
encontra mais distante do estado de hénide, pois possui a maior claridade e
transparência. A genialidade, portanto, aparece já como uma espécie de
masculinidade superior e, em conseqüência, a mulher não poderá ser genial [mas somente
talentosa]. (...) Pode-se definir o homem genial como aquele que sabe tudo sem
tê-lo aprendido (p. 153).
Subsumido no problema da universalidade da experiência
acumulada está o problema da memória
e da fantasia, e a primeira coisa que
Weininger nota a respeito é que “a hénide absoluta não pode ser recordada”, por
conta da sua nebulosidade constitutiva; ela nunca é alcançada, é um limite, do
qual no máximo podemos nos aproximar, mas para o qual a mulher tende mais (p.
156). E, uma vez que a capacidade imaginativa corresponde, em parte, a um jogo
de possibilidades com base no que se experimentou e recordou, “é absolutamente
falso que as mulheres tenham mais fantasia que os homens” (p. 161).
A absoluta falta de importância
das mulheres na história da música é
atribuível também a motivos mais profundos; contudo, já demonstra a ausência de
fantasia na mulher. Para a criação musical se necessita infinitamente mais de
fantasia do que para as restantes atividades artísticas e científicas, e essa
fantasia excede em muito a que poderia ter a mulher a mais masculina. Nada
existe na natureza que se possa comparar a um tom. A música é estranha ao mundo
da experiência e na natureza não existem tons, acordes nem melodias. Tudo, até
os últimos elementos, foi criação humana (p. 161).
Uma mulher pode ser uma poetisa ou uma pintora de
extraordinário talento, diz Weininger, justamente por se tratar de artes menos
abstratas (já a arte do desenho
escaparia às suas melhores capacidades; na pintura, diz-lhe mais respeito a
sensorialidade da cor do que o traço). E dessas conformações diferentes da
memória e da fantasia se seguiria que a experiência que o homem e a mulher têm
do tempo é inteiramente diversa. Se “a memória faz com que os acontecimentos
não estejam sujeitos ao tempo e, nesse sentido, triunfa sobre o tempo”; se o
processo mais intenso de clarificação dá ao indivíduo uma maior compreensão do
desenrolar dos acontecimentos pretéritos da sua vida, desprendendo-o da
imediatez dos fatos, então aquele que menos atrelado estiver à hénide terá
maior capacidade de abranger o sentido da sua própria história – o homem,
conclui Weininger (p. 176). Também o homem, tendo assim maior consciência da
unidade da sua vida, experimenta mais intensamente o princípio de identidade em
sua própria biografia; com o que ele seria mais naturalmente “lógico” que a
mulher (trata-se de formalidade da experiência, não de inteligência) (p. 195).
A consciência da unidade do
homem, que freqüentemente não chega a compreender o seu passado, se manifesta
na necessidade de compreender-se, e
essa necessidade leva implícita a premissa
de que ele sempre foi o mesmo, apesar da sua auto-compreensão atual. Quando
pensam em sua vida passada, as mulheres jamais
compreendem a si mesmas, mas tampouco sentem a necessidade de compreender-se
(...). Um ser que como a mulher absoluta não se sentisse idêntico nos
diferentes momentos sucessivos não possuiria sequer a evidência da identidade
do objeto do seu pensamento nos diversos instantes (p. 195).
Para concluir este esboço de algumas idéias – e de só uns
poucos capítulos – de Sexo e Caráter,
recordo a mútua implicação apontada por Weininger entre memória e moral. Porque
mais atento à coerência da sua biografia, ao homem seria mais imediato
considerar todo e qualquer erro como uma falta
moral; é como não honrar o que antes apreendera e guardara na memória: a
mentira, para ele, é qualquer coisa que não se coadune com o sentido da sua
conduta, é uma traição a si próprio e, portanto, objetiva; para a mulher,
contudo, a memória não seria eminentemente moral, e assim nem todo esquecimento
implicaria culpa e arrependimento – a
mentira (a falta para consigo mesma) não pode, a rigor, existir objetivamente.
Seria só uma disposição natural do caráter feminino (p. 199).
3.
De minha parte, recorrendo à minha experiência pessoal, sem
muita pretensão de justificar o que escrevo – e ainda a me valer de espantalhos
conceituais, imprecisos o quanto sejam –,
eu diria o seguinte sobre os “tipos” feminino e masculino. O que digo
não é um reconhecimento de deveres, mas apenas de aptidões.
A mente feminina sugere a concretude de um tomismo de pedra
misturado ao interesse vívido e saudável de uma fofoca de porta de casa, ao
passo que a mente masculina, no primeiro descuido, já incorre em um idealismo
especulativo misturado a uma espécie de ufanismo de torcedor corintiano; só o
homem consegue ser metafisicamente dogmático, e isso é sua glória e sua
desgraça. De maior interesse é que, sendo assim, seja o homem, naturalmente
mais sonhador do que em geral supomos, que tende a se dedicar às atividades
práticas mais brutais, como o ofício do sacerdócio e da guerra, enquanto a
mulher, mais ponderada, se dedica a atividades práticas que, apesar de
rotineiras e amiúde mais amenas, são mais complexas e requerem maior
tenacidade, como o cuidado dos filhos.
Como se o homem fosse buscar no mundo a concretude que não
encontra dentro de si.
Como se a mulher fosse buscar dentro de casa a abstração que
não encontra no mundo, da qual já é senhora por natureza.
4.
Uma observação de teor histórico.
Se levarmos a sério a distinção prática que Ortega y Gasset
faz entre épocas “jovens” e “velhas”, “masculinas” e “femininas”, encontraremos
exemplos curiosos no período da história ocidental mais devotada aos
sentimentos de humildade e martírio, a cavalheiresca e masculina Idade Média,
idealizada tanto por detratores quanto por apologistas. O detrator feminista
dirá que em tal período a mulher era submissa e alijada socialmente, com o que
ficará confuso se lhe mostrarem a proeminência social de santas e cortesãs, que
ousavam ir contra vento e maré, Coroa e Igreja. O apologista cristão dirá que
nunca a mulher teve sua nobreza tão cantada em verso e prosa quanto no medievo
e que nunca lhe foi mais fácil dedicar-se ao estudo e à “vida do espírito”, e a
tratará como tendo uma qualidade tão excelsa, no porte como na educação, com o
que ficará chocado se lhe mostrarem uma balada de Arnaut Daniel que fala de uma
dama – nobre, ela – que tornou pública a sua decisão de só se entregar ao
amante se este lhe beijasse o ânus (V. a balada “Que Raimon ou Truc Malec” na
tradução impecável de Augusto de Campos, em Invenção
– de Arnaut e Raimbaut a Dante e Cavalcanti).
É que a Idade Média, afinal, muito mais mundanamente alegre
do que geralmente estamos dispostos a admitir, foi um período de razoável
equilíbrio social entre o “profano” e o “sagrado”, e assim o culto mariano
poderia ser vertido de versos litúrgicos latinos para a mais prosaica exaltação
da mulher comum na poesia secular, e assim os monges poderiam aos poucos romper
a sisudez de sua homofonia, aprendendo com os mestres laicos a polifonia. Ora,
a época que viu o surgimento da filosofia de Santo Tomás também viu o
surgimento da pândega de um Arnaut Daniel, que nada tinha a ver com a priapéia
antiga; não é à toa que os mosteiros eram, antes de mais nada e materialmente,
grandes depósitos de livros e cerveja. E, também nesse período, e possivelmente
pelas mesmas causas, os papéis do homem e da mulher eram razoavelmente bem
compreendidos, a ponto tal que, com um sabor de referência a um ideário já
antigo em sua época, podemos ver no Auto
da Sibila Cassandra, de Gil Vicente, a dama a brincar em torno dos
benefícios e malefícios do matrimônio: ela pode, comportando-se como um
moleque, fazer troça de tudo, menos da certeza do seu destino de relicário e
fortaleza da pureza, à qual está obrigada por ser, talvez próximo do que
postula Weininger, a própria sexualidade, o “eterno feminino” goethiano.
Mas o período das “luzes”, incontestavelmente padrinho de um
tipo de sensibilidade inconformista superficial que, se não levou, pelo menos
abriu caminho a uma série de confusões similares às da nossa época, começou a
trocar o essencial pelo inessencial. É abusivo supor, eu reconheço, mas não
chega a ser ilícito imaginar que só assim começaríamos a nos perguntar o quanto
a maquiagem está de acordo com a modéstia requerida de uma mulher católica,
preterindo questões mais substantivas, como relatou Day Teixeira em seu texto.
(Aliás, é conveniente lembrar que nenhum período foi tão
perigoso para uma mulher “emancipada” e solteira quanto aquele de quando se
começou a perder de vista o que seja a mulher e a confundir “feminilidade” com
submissão normativa, a soldo de puritanismos tanto católicos como protestantes:
no fim do século XVI, mulher “emancipada” e solteira, sobretudo se velha, era
bruxa e tinha de ir para a fogueira, na quase totalidade dos casos através de
tribunais civis, não eclesiásticos, e sob aplausos de luminares da ciência. V.
o ensaio “A mania de bruxas nos séculos XVI e XVII”, de Hugh Trevor-Roper, historiador
que pode ser chamado de qualquer coisa, menos anti-modernista).
5.
O desespero, calmo e resignado como o seja, originado da
perda do senso concreto do que seja “a” mulher, talvez não se o possa encontrar
melhor acabado literariamente que no romance A Bem-Amada, de Thomas Hardy. Nele, o escritor Jocelyn Pierston
atravessa seus dias num langor sem fim em busca da mulher que corresponda
perfeitamente à idéia descarnada do “feminino”; nenhum dos vultos que se
apresentam a ele traz essa identidade em perfeição, neles vendo só traços,
notas da tão ansiada “bem-amada”. A impressão imediata, a ser depreendida da
narrativa, seria a de que “a mulher ideal” encontra diversas conformações
reais, sim; mas mais ressalta é a distorção do foco de Jocelyn Pierson: de
certa forma, a idealização despropositada trai mais a distorção que ele operou,
em meio às etiquetas da alta sociedade parisiense, sobre a natureza da mulher
do que a impossibilidade de, um dia, esbarrarmos com a mulher pura e bruta. Em certa medida, tomamos
parte da mesma confusão.