Meu avô materno era padeiro e treinador de futebol. Foi amigo do
Bellini, zagueiro e capitão do escrete brasileiro nas Copas de 58 e 62. Apesar
de sempre ter admirado sua carreira semiprofissional de futebol, eu mesmo, desafortunadamente,
nunca levei jeito para o esporte dos bretões. Minha vontade mesmo era ser
padeiro. Como perdi no tal jogo da vida – depois de também ter perdido as
esperanças no proletário esporte bretão – sem ressentimentos aposentei as
chuteiras e me tornei professor de filosofia.
Como todo moleque, gostava de bater bola com os amigos no
campinho improvisado na rua, num terreno qualquer, de traves feitas de chinelo
de dedo. Eu e mais outros dois amigos éramos péssimos. Meu apelido variava
entre “leite-azedo” e “cabide” (magro e branquelo); de um dos amigos,
“bolacha-traquinas” (redondo e sorridente).
Hoje tenho certeza de que a expressão café-com-leite tinha
muitíssimo a ver comigo. Era quase uma vocação: ser café-com-leite. Na vila
onde morava havia uns quinze garotos. O jogo, pra ser competitivo e divertido,
tinha de ter pelo menos seis jogadores para cada lado: um no gol e cinco na
linha. A questão é: como se monta uma seleção de rua?
O senso de justiça na molecagem é impressionante: a coisa é
orgânica e funciona sem precisar da intervenção de pais, estado, governo, ongs,
feministas, veganos etc: em cada dia de jogo, dois moleques montam seus
respectivos times; noutro dia, outros dois... e assim por diante. Como meu
sonho mesmo era ser padeiro, só jogava quando era minha a vez de montar o meu
próprio time, ou na ausência de um dos titulares. Não obstante, nesse último
caso, eu era sempre um dos últimos a ser escolhido. Me consolava lembrar:
"Quero mesmo é ser padeiro".
O senso de justiça funcionava mais ou menos assim: sabíamos
(senso comum) que dos quinze amigos, pelo menos dois eram gênios da bola
(Marrom e Chulé); quatro jogavam bem (Xoxó, Neguim, Lácio e Buda, o dono da
bola); um outro era sempre o goleiro (Pavio); outros quatro sabiam jogar (Mula,
Toco, Paulo e Sabão); dois eram medíocres (Chaveiro e Robson) e, por fim, dois
rigorosamente estúpidos (eu e o Bolacha).
A conta é simples: todo mundo quer jogar, mas só há doze vagas. Como não
existia “cota-perneta”, ninguém falava em exclusão social. Não havia passeatas
em favor das minorias que sofrem o preconceito por serem verdadeiros “bonecos
de Olinda” jogando bola. Então a coisa se ajustava de modo a fazer inveja a
Rothbard, e era absolutamente inconcebível pensar em evocar a autoridade de
algum pai para intervir na disputa por uma vaga. Era a injustiça mais justa de
todas.