A introdução desta longa discussão econtra-se aqui.
2. Respostas ao Quodlibet Antiliberal de Sidney Silveira
“1- Do ponto de vista psicológico: o liberalismo parte da
falácia da consciência individual autônoma. Isto o leva, entre outras coisas, a
forjar uma idéia totalmente equivocada de liberdade.”
Essa crítica parte de um equívoco comum dos meios
conservadores, que é tentar jogar todos os debates e discussões na conta da
filosofia. Como se, para fazer uma proposta política ou um juízo moral, fosse
necessário ter uma definição perfeita e filosoficamente irretocável de “indivíduo”,
“consciência”, etc. Não está nada claro que a defesa de uma posição política ou mesmo sobre a boa vida humana necessite de um tratamento filosófico
cuidadoso da noção de liberdade e consciência. Está bem claro, para a maioria das pessoas,
que os homens valorizam diversas coisas boas, e que o Estado pode ou não ter um
papel para ajudar nessa busca. A maior parte das defesas liberais, inclusive,
são feitas com argumentos econômicos, que visam mostrar que a medida estatal
proposta não alcança sequer os objetivos que seus próprios defensores dizem
buscar.
Ademais, é complicado falar que o liberalismo parte de uma
base filosófica qualquer, pois há diferenças filosóficas enormes entre diversos
autores liberais: Mises, Rothbard, Rand. Filosofias radicalmente diferentes por
trás de posições políticas próximas. Há até liberais radicais que, metafisicamente
falando, são deterministas; isto é, acreditam que não existe livre arbítrio,
que toda ação é inteiramente determinada por condições (físicas e/ou
psicológicas) anteriores; mas, ainda assim, reconhecem que a vida humana em uma
sociedade com pouca ou nenhuma interferência do Estado é melhor. E que é um grande
bem que cada indivíduo possa escolher os rumos de sua vida nos campos mais
importantes da existência (suas ideias, as atividade produtivas que ele pratica
e o uso de seu tempo de lazer).
Dito isto, o liberalismo me parece a melhor posição política
que se pode derivar de uma correta apreciação da liberdade humana e da consciência
individual. O homem se guia por princípios objetivos, mas sua ação se dá em
meio a circunstâncias particulares e há uma grande dose de latitude para se agir
dentro dos parâmetros da moralidade; é vão tentar prescrever legalmente um
certo modo de agir como sendo o único aceitável, pois é certo que haverá casos
em que a melhor ação não segue a norma estatística (exceção feita às violações
voluntárias dos direitos fundamentais ou de negações práticas diretas de algum componente necessário da vida humana plena). Além disso, a ação virtuosa ou vem de
dentro, ou não existe. Muito pelo contrário: a tentativa de impor a moral, ao
obrigar a adesão externa sem a persuasão interna, antes cria desprezo pela lei
e, por contágio, pelo próprio princípio moral em jogo, ainda que ele seja
correto.
Já o sistema de livre transação denominado mercado também
engendra um tipo de imitação moral, mas virtuosa. É servindo aos outros que se
é servido. A educação no livre mercado é a educação sobre como deixar de lado
os próprios caprichos e preferências atuais para produzir algo de valor para os
outros. Assim, promove a harmonia entre interesses individuais e coletivos e
estimula as boas relações e a confiança entre as partes (que são, ao mesmo
tempo, pré-requisito e produto de seu funcionamento). Por fim, o mercado mantém
todos os seus membros em contato com a realidade de suas escolhas: ele não
premia e nem pune nada para além do que a própria realidade social, isto é, a
realidade dos desejos das outras pessoas, premia ou pune. E ele também não
obriga ninguém a se pautar pelo desejo dos outros. Um artista seguro de estar
produzindo uma obra-prima ainda incompreendida tem total liberdade para
fazê-lo; só não deve esperar que seus esforços sejam subsidiados pela produção
dos demais. E, a bem da verdade, mesmo os artistas – pintores, músicos,
dramaturgos – ao longo da história (especialmente na Renascença) tiveram uma
relação muito mais simbiótica com o mercado. E ainda têm: é só ver como o
mercado de traduções, edição de textos e aulas particulares sustenta escritores
e estudiosos independentes hoje em dia.
Assim, alguém que tenha ojeriza pela pornografia ou pela
prostituição tem total liberdade de se recusar a consumi-las mesmo pelo preço
zero. E, ao fazer isso, desestimula a oferta por esses serviços. Daí a bela
resposta do general francês às reclamações do general americano sobre o alto
preço das prostitutas parisienses: “O preço delas é diretamente proporcional à
virtude de nossas mulheres e ao vício de seus soldados”. Todo juízo de valor
entra na composição do sistema de preços; que não é, ele próprio, normativo, e
sim o resultado de diversos (e nem sempre concordantes) juízos de valor.
Da mesma forma, vícios, aqueles hábitos que afastam o homem
da felicidade que ele poderia alcançar, não são subsidiados e seus efeitos não
são partilhados artificialmente entre todos os membros da sociedade. Passou os
anos na pornografia, nas drogas e no instagram? Sua escolha engendrará sua
própria recompensa. Se a virtude e o vício se definem com base na realidade da
natureza humana, nada melhor do que deixar que a realidade fale mais alto do
que as decisões políticas, por mais bem intencionadas que possam ser.
“2- Do ponto de vista gnosiológico: o liberalismo sempre
acaba por optar pelas posturas idealista e/ou imanentista, ainda que, aqui e
ali, sob o disfarce realista;”
Novamente, é difícil ligar o liberalismo a uma ou outra
posição gnosiológica. Cada pensador terá sua posição. Qual delas é representa o
“verdadeiro” liberalismo? Prefiro aceitar que todas são liberais e indagar qual
delas é verdadeira.
Assim, posso dizer que o liberalismo é perfeitamente
compatível com o realismo gnosiológico. Ocorre que os homens diferem em seus
juízos de valor e opiniões. E como não é possível – e nem desejável – mudar as
opiniões humanas por passe de mágica, o sistema de liberdade é o melhor para a
interação das diversas opiniões. Os preços, assim, não obedecem à real
capacidade dos produtos de satisfazer a desejos humanos, e sim a capacidade
atribuída a esses produtos pelos consumidores. Vejam só: leitura de mãos tem
valor de mercado superior a zero – sim, nosso povo é supersticioso, fazer o
quê? O bom do sistema de mercado é que, diferente do sistema de determinação
estatal de preços, ele não exige que você adira à posição da maioria: você é
parte constitutiva do processo de formação de preços, nem escravo e nem senhor
dele; seu peso é diretamente proporcional ao quão bem você ajuda os demais
membros dessa rede a satisfazer seus próprios desejos e necessidades.
Isso em nada muda o fato de que existe uma realidade
objetiva cognoscível. Nossos computadores e internet e demais avanços
tecnológicos são frutos desse fato; e adivinha em que sistema a ciência e a
tecnologia encontram espaço mais fértil para avançar? Se você tem conhecimento
da realidade, e é capaz de sustentar esse conhecimento objetivamente, ele pode
lhe ser útil no mercado.
É também no livre mercado de ideias que o pensamento humano
mais avança. Com a livre troca de ideias e opiniões, com a argumentação e a
expressão de novos pensamentos novas doutrinas podem surgir e doutrinas antigas
se renovar. Alguém duvida que, intelectualmente, um autor católico e tomista
está melhor hoje em dia do que estaria em alguma cátedra prestigiosa de alguma
faculdade de séculos atrás? O mal que a falta de liberdade religiosa, e a
autocomplacência por ela ocasionada, fez para as bases intelectuais e para a
defesa racional da religião (e também para a forma como ela é vivida na
prática?) é algo que mereceria mais atenção. Na vida intelectual, como em
tantas outras esferas, desafios são oportunidades.
“3- Do ponto de vista artístico: o liberalismo não consegue
ultrapassar o mais tosco esteticismo, para o qual o estatuto da arte subsume-se
ao “bem fazer”, à poiesis, a um "bom artesanato" com a matéria com
que labora o artista. Nada há, além disso. Do belo como um dos transcendentais
do ser, restou a casca material;”
Aqui a posição de Sidney é ambígua. Ele está se referindo ao
pensamento estético dos defensores do liberalismo ou ao pensamento estético das
pessoas comuns que vivem num sistema de livre mercado? Enfim, seja qual for o
caso, sinceramente não sei de onde ele tirou a ideia da arte como um “bem
fazer”, algo que eu associaria mais à Atenas de Sócrates do que aos dias de
hoje (aliás, a sociedade brasileira atual é bem pouco liberal, caso alguém
esteja se perguntando...); não consigo, ademais, pensar em um pensador liberal
sequer que tenha defendido tal redução das belas artes a um bom artesanato.
Quanto à beleza como transcendental, bem, essa questão não
era ponto pacífico nem mesmo dentro da filosofia de linhagem aristotélica. Haja
visto que, entre os que negavam o status de transcendental (isto é, aquilo que
se conjuga de todas as coisas) à beleza estava... Aristóteles! Aliás, afirmar
que S. Tomás considerava a beleza como um dos transcendentais do ser já é
controverso. Eu já sabia bem que quando S. Tomás lista os transcendentais ele
jamais inclui a beleza. Sidney faz um bom ponto, que eu nunca havia
considerado, ao deduzir que, para Tomás, a beleza deve ser um transcendental
dado sua convertibilidade com o bem. Contra essa opinião, o livro resenhado em
detalhe aqui parece dar conta das passagens que o Sidney levanta. Em suma, o ponto capital da crítica de Sidney sobre a pobreza estética do pensamento liberal é algo que talvez se aplique até a S. Tomás.
“4- Do ponto de vista econômico: o liberalismo transforma os
meios em fins, dado o materialismo em que soçobra: a liberdade de ação dos
agentes econômicos (denominada “livre mercado”) não pode ser limitada por
nenhuma forma de amarra — seja política, moral, religiosa, legal, etc. Ou seja:
a lei do mercado é, na prática, a lei das leis, e a reprodutibilidade dos bens
materiais é o must em uma sociedade, como dizia Von Mises. Além do mais, o
liberalismo econômico é uma teoria política disfarçada, dado que os liberais
“econômicos” vivem a dizer como o Estado deve ou não deve ser;”
Fora um outro partidário do “egoísmo ético”, um tipo de
defesa muito particular do liberalismo, advogado por Milton Friedman e outros
da escola de Chicago (e mesmo eles nunca de forma pura), autores liberais não
costumam defender as avaliações do mercado expressas em termos de preço como
tendo valor normativo, isto é, como sendo “a lei das leis”. Tal posição seria,
por exemplo, impensável em Mises, sempre muito cuidadoso em distinguir fatos de
valores.
Na verdade, ele afirma exatamente o contrário. Por exemplo, falando sobre
literatura: “What characterizes
capitalism is not the bad taste of the crowds, but the fact that these crowds,
made prosperous by capitalism, became consumers of literature, of course, of
trashy literature…. But this does not prevent great authors from creating
imperishable works.” Em outras palavras, ele não confunde o valor de
mercado de um livro com seu valor artístico. Ou ainda, sobre como os artistas
nunca são devidamente reconhecidos por seus contemporâneos: “There has never been an era in which the
many were prepared to do justice to contemporary art. Reverence to the great
authors and artists has always been limited to small groups.” (Ambas as citações
retiradas de seu livro The
Anti-Capitalistic Mentality) Bem conhecidas também são seus textos sobre o
gênio criativo, que trabalha em busca de objetivos que a maioria de seus
contemporários sequer consegue reconhecer.
Caberia, isso sim, questionar o subjetivismo que subjaz
muito do que Mises escreve; ou seja, a insistência dele em negar a objetividade
a qualquer juízo normativo. Mas dizer que ele atribui força normativa ao
consenso do mercado é um enorme equívoco; ele apenas descreve como o mercado
funciona, sem atribuir a ele autoridade moral alguma.
Sorry, epígonos do
poder estatal; ninguém está dizendo que o preço de mercado é uma realidade
última à qual todos devem se curvar; ou que o lucro é o critério último da
virtude de uma ação (embora, eu diga, ele requer sim uma série de virtudes).
Isso é um espantalho criado por vocês. Os preços e os lucros e prejuízos por
eles ocasionados são fruto de uma série de juízos de valor, e não fonte deles.
O liberalismo econômico não é uma teoria política
“disfarçada”; ele é abertamente uma teoria, ou melhor, uma proposta política.
Uma proposta política cuja justificação é feita em termos econômicos, tentando
mostrar como a sociedade é prejudicada quando o Estado decide melhorar as
coisas com alguma lei ou política.
“5- Do ponto de vista político: o liberalismo é afim ao
anarquismo, e a simples menção à palavra “Estado” causa os mais dramáticos
engulhos estomacais num liberal, que fez da liberdade um ídolo (embora confunda
“liberdade” e “ato de escolha”, ou seja: não saiba discernir o que é a
liberdade daquilo que faz a liberdade). Partindo desta idéia equívoca de liberdade,
os liberais pretendem reduzir o Estado ao mínimo minimorum, desconfiados que
são do poder (desconfiança que também, miopemente, erra o alvo, como afirmamos
neste outro mini-artigo). Neste horizonte de questionamentos, o Estado já se
transformou em uma mera superestrutura estanque no meio da sociedade; e também
num "adversário" dos indivíduos (já mostramos, também, que a própria
noção de “indivíduo”, para os liberais, é errônea e não tem base metafísica). O
resultado prático acaba por ser o oposto do que prega a ideologia: uma tirania
da pseudo-maioria sob o nome de “democracia” — e “pseudo” porque manipulada por
elites compostas por minorias intelectualizadas e com objetivos políticos muito
bem definidos (não raro, forjados em sociedades secretas ou “discretas”). A
verdadeira liberdade, num ambiente tirânico com esta conformação democratista,
transformar-se-á em escravidão. Do ponto de vista da Igreja: escravidão do erro
e do pecado, que perdem as almas;”
Confusão básica: liberalismo = democracia. O domínio da
opinião da maioria sobre todos é justamente o que o mercado não é. No mercado,
a única forma de se lucrar é contrariando o consenso da maioria (e acertando!), enxergando mais
longe do que ela quais os meios que, no futuro, melhor atenderão às necessidades dela. Com efeito, a democracia de massas, se não coibida por
defesas legais invioláveis aos direitos individuais, rapidamente descamba em
tirania. E por isso mesmo esse tipo de democracia (digamos, chavista ou
castrista) nada tem de liberal. E se é desse tipo de coisa que ele quer falar,
desse sistema populista e nocivo que tanto eu quanto ele atacamos, qual o
sentido em se trazer Mises e “Estado mínimo minimorum” à discussão? O que ele
está condenando aqui, a tirania democrática da maioria, é justamente a negação
do Estado mínimo.
No Estado mínimo, o escopo da ação política, seja de uma
maioria ou de um ditador, é muito pequeno; incapaz de sujeitar a vida da
população a qualquer tirania. A democracia é em geral defendida por ser um
método mais justo e menos sujeito à violência e ao conflito armado do que
outros; mas não é um fim em si. Aliás, nada mais triste no cenário brasileiro
atual do que ver tanta gente que poderia defender a liberdade tecendo loas
eternas à democracia, como se fossem a mesma coisa.
“6- Do ponto de vista moral: o liberalismo é relativista na
raiz, na medida em que acolhe a tese de que a consciência individual
"autônoma" é intocável por qualquer instância exterior a ela. O
liberalismo, com isto, inaugura a oposição radical entre indivíduo e
coletividade. De um lado, a moral transforma-se em categoria coletiva (ou
transcendental) extrínseca e oposta às vontades individuais; e de outro,
transforma-se em moral privada, independente da moral pública.”
Novamente, é difícil entender qual o objeto da crítica: as
ideias defendidas pelos liberais, ou as ideias que circulam pelas mentes das
pessoas que vivem em sociedades liberais. Coisas muito diferentes! Alguém
acha, por exemplo, que a filosofia de Marx era a mesma coisa que estava na
mente dos russos pobres que viviam sob o socialismo?.
Cito apenas uma autora liberal que não cai em nenhum dos
dois campos apresentados por Sidney: Ayn Rand. Ela defendia uma moral objetiva,
nem determinada pela opinião da maioria e nem pelo capricho do indivíduo que
age. Cabe ao homem descobrir, usando sua razão, como melhor viver no mundo. E
aqueles que falham nisso pagam o preço psicológico disso, em geral voltando-se
contra os demais e erigindo sistemas fictícios para justificar suas evasões e
covardias. Como verdadeira herdeira de Aristóteles, ela desenha então uma estrutura
de virtudes que devem guiar a vida humana. Não vem ao caso aqui discutir
longamente sua filosofia; o exemplo dela basta para mostrar como a tese de
Sidney não vale nem mesmo para a defensora mais conhecida do liberalismo.
“7- Do ponto de vista católico: o liberalismo é uma heresia
CONDENADA SOLENEMENTE pelo Magistério da Igreja;”
Ou seja: “Não pense, aceite o que os papas falaram sem
questionar. Quem não fizer isso vai para o Inferno.”
Vamos por partes. Em primeiro lugar, as condenações solenes
ao liberalismo são contra: o liberalismo teológico e o liberalismo político, que é basicamente o reconhecimento da liberdade de consciência. Dessas, ao menos a segunda foi
explicitamente revertida pelos papas contemporâneos, que têm se mostrado
defensores incansáveis da liberdade de consciência, isto é, da liberdade de cada indivíduo em acreditar e seguir aquela religião que lhe parece
verdadeira. Essa posição, tão sensata (e que foi, por um breve período, a
política do Império Romano católico sob o Edito de Constantino), foi
infelizmente combatida pela hierarquia da Igreja, tanto no Ocidente quanto no
Oriente, por muitos séculos; e alimentou muitas fogueiras. O papa Leão X,
condenando Lutero, condenou inclusive sua proposição de que “queimar hereges é
contrário à vontade do Espírito Santo”.
No século XIX esse tipo de defesa aberta do extermínio dos
hereges já não era mais aceitável. Contudo, permanecia a posição oficial da
Igreja de que o Estado não deveria aceitar o direito de liberdade de
consciência, pois isso implicaria estender direitos ao erro. A fé católica era
a única que deveria ser permitida e encorajada pelo Estado, embora outras
pudessem ser toleradas – vide, por exemplo, as proposições 77-79 do Syllabus de
Pio IX (proposições condenadas). São
condenações diretas e retas, sem meias palavras, de coisas que consideramos
básicas hoje em dia. A Enciclopédia Católica resume bem as condenações da Igreja ao liberalismo. Felizmente, essas condenações caíram (à liberdade de religião, de pensamento, de imprensa - e não se tratava de uma condenação ao direito de se publicar pornografia ou racismo não; a condenação era a coisas mais básicas como a liberdade de se publicar opiniões que não concordassem com os dogmas).
Não diretamente ligadas a essa condenação do liberalismo
estão as encíclicas papais sobre temas ligados à economia e à ordem social. A
primeira delas foi a Rerum Novarum, de Leão XIII. As seguintes, em ordem
cronológica, foram a Quadragesimo Anno, de Pio XI, a Populorum Progressio, de
Paulo VI, e a Centesimus Annus de João Paulo II. Bento XVI, embora não tenha
publicado uma encíclica sobre o mesmo tema, expressou diversas opiniões
econômicas na Caritas in Veritate, que versa mais sobre as relações entre
Estados e seu papel no mundo do que diretamente sobre economia e o ordem econômica
justa. É o conjunto desses documentos e outras opiniões dos papas ao longo dos
séculos XIX e XX que se costuma chamar de Doutrina Social da Igreja.
Há, contudo, um problema: as opiniões expressas nas
encíclicas podem ser bem diferentes umas das outras. Rothbard compara as duas
primeiras aqui. Rerum Novarum era, para os padrões de hoje em dia, filo-liberal.
Quadragesimo Anno, fascista/corporativista. Adiciono as seguintes descrições:
Populorum Progressio, filo-socialista. Centesimus Annus: liberal desde que com
generosas garantias aos trabalhadores. Bento XVI tem se revelado bem menos
simpático ao livre mercado do que João Paulo II, e já defendeu, explicitamente,
a possível necessidade de um governo mundial para mediar as relações entre os
países.
“Perante o crescimento incessante da interdependência mundial, sente-se imenso — mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial — a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitectura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações. (...)O desenvolvimento integral dos povos e a colaboração internacional exigem que seja instituído um grau superior de ordenamento internacional de tipo subsidiário para o governo da globalização e que se dê finalmente actuação a uma ordem social conforme à ordem moral e àquela ligação entre esfera moral e social, entre política e esfera económica e civil que aparece já perspectivada no Estatuto das Nações Unidas.”
Inimigos do globalismo, tremei! E tremo eu também, que abomino a ideia
de uma ONU mais poderosa e de um superestado global.
O que as encíclicas papais revelam? Revelam que os papas, conscientes
de seu papel de autoridade moral e espiritual (e falo de autoridade no sentido
real: o papa é alguém para quem muitos olham em busca de algum exemplo ou
guiamento) pensam sobre os assuntos sociais importantes de sua época, formulam respostas e buscam soluções. Os católicos devem sempre respeitar
e, idealmente, procurar conhecê-las. Mas também deve ter claro que são falíveis, como qualquer proposta. Dizer que há uma Doutrina Social da Igreja
(tm) clara e facilmente identificável é falso, e revela um desconhecimento das
fontes da própria doutrina social. Ademais, é perigoso; pois e se calhar de os
papas todos terem concordado em um ponto que, se implementado à sério na ordem
social, seria catastrófico? Não acho que seja o caso, mas já foi o caso na
Idade Média e Moderna com a condenação da usura.
Assim, sonho com o dia em que os católicos serão capazes de
discutir economia e política sem, a todo momento, insinuar que quem discorda é herege ou pecador. Isso vale até para os liberais, que volta e meia tentam
acusar quem discorda deles de violar o princípio da subsidariedade, ou que
clamam para si a autoridade dos doutores de Salamanca. O fato é que a tradição
de pensamento católica é heterogênea e nunca foi particularmente liberal, embora aqui e
ali existam potencialidades promissoras nesse sentido. E isso não importa. A
verdade sobre questões econômicas não será definida por um pronunciamento ex cathedra, não mais do que a verdade sobre
a física e a química.
“8- Do ponto de vista histórico: o liberalismo é
identificado — desde os seus primórdios até os dias atuais — com os ideais
maçônicos;”
É pra levar a sério? Teoria da conspiração maçônica?
Aproveito para apontar que, segundo alguns católicos antiaustríacos americanos,
a economia liberal, assim como o marxismo, são fruto de uma megaconspiração
judaica e jesuíta. Não sabia que ainda existiam, dentro da Igreja, gente que
fosse antijesuíta. Ou seja, que acredita que os jesuítas foram, desde sua origem, uma tentativa de
infiltrar e perverter a Igreja Católica. Mas vejam só, existe. “As documented in The “Catholic” Arm of
Libertarianism, the Jesuits’ involvement in the Libertarian-Communist false
dialectic is nothing new, and has in fact been ongoing for several centuries.”
“9- Do ponto de vista lógico: o liberalismo é uma quimera do
pensamento mágico que se opõe à lógica aristotélico-tomista, cujo fundamento é
realista. Veja-se bem que não confundimos lógica com gnosiologia, porque na
perspectiva de Santo Tomás — que subscrevemos integralmente! — a lógica ocupa
um lugar importante, mas subsidiário. E, ao passo que, na perspectiva tomista,
a filosofia é de cunho metafísico-gnosiológico, na perspectiva moderna (e
liberal), a filosofia é tão-somente gnosiológica e inverte a relação ser/conhecer.”
Não há relação necessária nenhuma entre essa posição
filosófica e liberalismo. De fato, Mises era bastante idealista em seus
escritos, tentando sempre basear suas conclusões na estrutura da própria razão
humana e pouco afirmando sobre a realidade enquanto tal. Terei que procurara
referência, mas lembro de ele dizer algo como “mesmo que a realidade externa
não exista, toda a teoria econômica continua igualmente válida”, pois ela é
decorrência necessária de certas categorias da razão humana, e o único jeito de
negá-la seria dizer que a mente humana opera necessariamente em erro, e que
portanto nada é cognoscível. Dado curioso: tendo desenvolvido a praxeologia (ramo
do conhecimento que estuda a ação humana no que ela tem de necessário) e sua
vertente mais acabada, a economia, Mises julgava ter encontrado aquilo que
eludira tantas gerações de seguidores de Kant: os juízos sintéticos a priori.
Esse idealismo de Mises aparece moderado no fim de sua
vida. Em seu último livro, The Ultimate
Foundation of Economic Science, ele afirma o óbvio: a realidade objetiva e
a causalidade ordenada do universo não dependem de nossas crenças ou de nossas mentes para existir!
– Estaria ele sob influência da introdução à escolástica e ao tomismo de L.
Rougier que ele cita neste mesmo livro? Não deixa de ser
admirável ver um intelectual de seu porte, aos 81 anos, lendo obras
introdutórias sobre um campo completamente novo de estudo.
Enfim, Mises é um autor liberal, e sua base filosófica não
pode ser atribuída a outros. Rothbard, haja visto suas fontes tomistas, era bem
mais realista, falava sem problema nenhum em natureza humana, lei natural,
metafísica e tantas outras coisas. Ayn Rand, da mesma forma, também era
realista e aristotélica nesse sentido (as duas únicas influências filosóficas
positivas que ela admitia eram Aristóteles e Tomás de Aquino). E mesmo se
atendo ao caso de Mises, dizer apenas que “ele é idealista, contraria a posição
tradicional, e um católico deve portanto rejeitá-lo” não é uma
refutação. É só uma tentativa falha de assustar os leitores menos corajosos e
desencorajá-los a pensar por si mesmos.
“10- Do ponto de vista legal: o liberalismo não ultrapassa o
contratualismo. O seu “império da lei” é formalista e superficial, pois a lei,
no liberalismo, transformou-se em expressão da vontade da maioria, deixando de
ser uma régua da razão que mede as ações e valores humanos de acordo com bens
objetivos inamovíveis, tanto para os indivíduos como para as sociedades. E
inamovíveis porque integram radicalmente a nossa humana natura e a das coisas
com que nos relacionamos.”
Em que autor Sidney pensava ao escrever isso? Rousseau
(dificilmente um liberal.)? Não se aplica a nenhum autor liberal; ninguém duvida
que a vontade da maioria é, frequentemente, ditatorial e nada afeita às
liberdades individuais.
No mais, Sidney parece ignorar que, mesmo aceitando-se que a
lei deva medir racionalmente os atos humanos de acordo com critérios objetivos, falta ainda
saber quem irá decidir esses critérios. Não há, infelizmente, uma instância
impessoal - uma Razão visível - emitindo juízos de valor absolutos no mundo; há apenas pessoas
pensando e discutindo. A saída americana, da definição de direitos pétreos e
invioláveis e grande liberdade individual somados à política democrática,
parece-me a melhor; e mesmo ela é claramente falha. Nunca chegaremos a um
equilíbrio ótimo no campo da política; a entropia social está sempre operando;
é preciso avançar para ficar no mesmo lugar. Mesmo assim, dá para falar em arranjos melhores e piores. Na ótica liberal, aqueles que melhor garantem o desenvolvimento e florescimento dos indivíduos são, por esse mesmo fato, os que garantem o maior bem comum.