Juro que é a última vez que publico trechos do meu mestrado; é que o momento é realmente propício ao tema. O que vai abaixo são as páginas finais da minha dissertação. O texto não está adaptado e por isso o leitor vá perdoando a monotonia do discurso acadêmico, bem como referências incompreensíveis fora de contexto. Creio, porém, que o fundamental está acessível.
O mais provável é que depois disto eu passe um bom tempo sem falar de Dostoiévski.
Para quem ainda não teve coragem de encarar: leia "O Grande Inquisidor" neste link.
***
(...)
É preciso levar em consideração ainda outro aspecto importante do pensamento dos dois
autores aqui comparados: sua eficácia enquanto leitores do processo histórico
no que diz respeito às ideias e revoluções políticas. O fato de ambos
vaticinarem o declínio irreversível da civilização ocidental e seu iminente
assalto por instituições (segundo Herzen) ou valores (segundo Dostoiévski)
russos já os afasta em igual medida do quadro verídico desenhado pela história
do século passado até o momento presente. Ainda assim, em suas previsões
imprecisas – e delirantes, em certos pontos –, cada qual teve sua margem de
erro e acerto. Mais do que checar o “dom de profecia” de ambos, cotejar suas
expectativas com a realidade (na medida em que a ciência histórica tem sido
eficaz em descrevê-la) pode oferecer-nos algumas importantes lições.
Dostoiévski, no Diário de um escritor, quase trinta anos após Herzen profetizar o
cataclismo europeu, pinta um quadro muito semelhante para o futuro da Europa:
A conta final e o acerto da balança
podem acontecer muito antes do que as mais delirantes fantasias predizem. Os
sintomas não são bons. A situação política antinatural dos Estados europeus
pode servir de estopim para tudo. Uma pequena parte da humanidade não pode
possuir todo o resto como escravos, e no entanto foi exclusivamente com este
objetivo que, até hoje, todas as
instituições cívicas (as quais há muito deixaram de ser cristãs e são hoje
inteiramente pagãs) da Europa foram criadas. Esta antinaturalidade e estas
questões políticas “insolúveis” devem infalivelmente levar a uma enorme e
derradeira guerra de partição na qual todos estarão envolvidos e a qual estourará neste
século, talvez mesmo na próxima década. (...)
E
eis que os proletários saem às ruas. O que vocês acham: eles agora esperarão
pacientemente como antes, morrendo de fome? Isto será possível, uma vez que
temos o socialismo político, depois da Internacional, dos congressos sociais e
da Comuna de Paris? Não, agora as coisas não mais serão como antes: os
proletários varrerão a Europa e toda a velha ordem colapsará de uma vez por
todas.[1]
Os fatos previstos por Dostoiévski
são essencialmente os mesmos da projeção de Herzen: a situação
político-econômica da Europa, insustentável a longo prazo, culminará primeiro
em uma grande guerra internacional que desorganizará os Estados europeus;
então, em meio à balbúrdia geral, guerras domésticas eclodirão, com os
proletários das grandes potências industriais tomando as ruas e concluindo a
destruição do “velho mundo”.
Nem Herzen nem Dostoiévski viam
inteiramente com bons olhos este panorama. A diferença é que Dostoiévski
opunha-se a ele em princípio, desde
suas premissas teóricas até suas consequências práticas, ao passo em que a
discordância de Herzen diz mais respeito à metodologia de uma revolução
“descontrolada” do que ao fato em si de se destruir a velha ordem por meio de
um levante popular. Isto é, a onda proletária desfigurando a face do continente
europeu era quase a revolução
idealizada por Herzen; para Dostoiévski, era em todos os sentidos uma ameaça
nefasta e um pesadelo.
E é sobre a perspectiva desta ameaça
que Dostoiévski constrói seu edifício utópico. O papel da Rússia enquanto
retificadora dos erros do Ocidente viria à tona, segundo o romancista, na
esteira da desordem revolucionária europeia:
As ondas [da revolução proletária]
quebrarão inofensivas apenas contra as nossas margens [russas], pois apenas
então, claramente e para todos verem, virá a total revelação de quão distinto é
o nosso organismo do organismo europeu. Então, mesmo vocês, pensadores
doutrinários, talvez recobrem os sentidos e comecem a buscar em nossa pátria
“os princípios do Povo”, dos quais vocês até agora apenas riem. E ainda assim,
hoje, os senhores apontam para a Europa e nos instam a transplantar para cá
aquelas mesmas instituições as quais entrarão em colapso por lá amanhã. (...)
“Eles há muito resolveram seus problemas”, o senhor diz – e isto após vinte
constituições em menos de um século e quase dez revoluções! Oh, talvez apenas
então, livres da Europa por um momento, nós nos aproximaremos de nossos
próprios ideais sociais, aqueles inequivocamente derivados de Cristo e do
aprimoramento pessoal, Sr. Gradóvski.[2]
Entre
as previsões de Herzen e Dostoiévski há, portanto, uma semelhança particularmente
significativa: ambos visualizavam a revolução proletária acontecendo na Europa. Dostoiévski via na Rússia o
“antídoto” à onda revolucionária; Herzen limitava-se a inspirar-se em sua terra
natal para propor uma revolução socialista mais limpa e gradualista, com os
avanços tecnológicos ocidentais aliados ao modelo social da comuna camponesa
russa. Ambos consideravam que a difusão das ideias socialistas, originalmente
europeias, já estava adiantada na Rússia, porém não lhes ocorria a
possibilidade de as condições imediatas de sua terra natal serem mais propícias
à revolução do que no Ocidente.
Enfim, eis que a grande guerra
internacional de fato eclodiu, e os anos de 1914-18 realmente mudaram o mapa da
Europa, desfigurando nacionalidades e fronteiras; e, o que é mais importante, a
guerra criou, com efeito, a ocasião para a revolução socialista – na Rússia.
Neste ponto o século XX foi uma resposta um tanto cruel e irônica às esperanças
eslavófilas de Dostoiévski. O paradigma do poema Vlas, de Niekrássov, do pecador que na hora H se converte e passa a
viver para expiar suas faltas, não descrevia, afinal, o eterno movimento da
alma russa, como o romancista queria crer. O miserável e religioso povo russo
não conteve a revolução; pelo contrário, serviu-lhe de substrato material. À
altura da guerra civil, ambos os exércitos branco e vermelho eram compostos por
camponeses[3].
Se não deixa de ser legítimo, em
certo sentido, dizer que a revolução socialista na Rússia expressou a vontade
de seu povo, da mesma forma, diante dos relatos históricos sobre os variados
destinos de famílias e grupos camponeses durante os anos revolucionários, é
difícil atribuir a uma entidade abstrata chamada “povo” uma única vontade e um
único destino. Ao que tudo indica, o principal traço comum entre as classes
populares russas na virada do século XIX para o XX não era nem seu Cristianismo
“puro”, nem seu tino político naturalmente aguçado, mas o alheamento com
relação aos afazeres da nobreza e da intelligentsia.
Assim, deflagrada a revolução, houve grupos populares que voluntariamente a
abraçaram, como houve os que a rejeitaram, mas a grande maioria quedou indefesa
e atônita sob as engrenagens do momento crítico.
Olhando retrospectivamente,
Dostoiévski e os pótchvienniki
estavam no caminho certo ao aliar a exaltação dos valores populares
tradicionais à necessidade da educação do narod;
afinal, são raríssimos os casos de indivíduos que conseguem aprimorar-se – em
sentido dostoievskiano – apenas com base em intuições morais rudimentares. Já
vimos que Dostoiévski gostava de idealizar alguns camponeses que tomava por
exemplares da “pureza interior” da alma russa, como o mujique Marei e a babá de
Púchkin; para ele, estes indivíduos tinham pouca consciência de seu próprio
valor e do valor daquilo que representavam – o sentimento fraterno de
inspiração cristã –, mas somente o fato de viverem colocando em prática suas
intuições rudimentares já bastaria para se construir, na Rússia, uma muralha
contra os “erros do Ocidente”.
Nada poderia ser mais falso. Não se
contém uma revolução tendo como arma apenas as verdades inconscientes de um
povo. Nesse sentido, a argumentação pótchviennik,
partindo da noção de autoconsciência como base do conhecimento em geral, era
razoável com relação ao problema do campesinato russo ao concluir pela urgência
de sua educação. Com efeito, na hora H da história russa, o narod achou-se incapaz de avaliar seu
próprio lugar histórico – e acabou servindo largamente como massa de manobra a
causas cujo sentido último lhe escapava.
O
Pótchviennitchestvo, porém, também
continha algumas das ideias que, ao longo do desenvolvimento intelectual de
Dostoiévski, degenerariam no aspecto mais equivocado de seu pensamento – seu
nacionalismo xenófobo. A ênfase pótchviennik
na importância da autoconsciência era análoga e complementar à importância
dada à imersão do indivíduo em seu universo nacional. Até certo ponto, isto é
muito razoável: um homem é feito também à
imagem de suas circunstâncias. Mas Dostoiévski parece ter levado este preceito
longe demais e, em seu processo de autoconhecimento por meio da incorporação da
nacionalidade, fundiu-se a sua terra natal, cegando-se a todo o resto e
bloqueando, assim, a própria possibilidade de compreender algo além de suas
projeções da Rússia sobre os objetos que analisava.
Deste
modo, seu talento para perceber movimentos psicossociais antes mesmo de estes
tomarem formas concretas, tendo como base apenas a psicologia humana, acabou
frustrado pelas armadilhas de sua própria psicologia. Mais do que nenhum outro
autor, Dostoiévski entendeu a natureza da revolução russa, e se chamá-lo
“profeta” já se tornou um cliché, mais
difícil é encontrar termo mais apropriado ao seu papel enquanto pensador de seu
tempo. E, no entanto, era ele mesmo um produto da mentalidade revolucionária
russa.
O
mencionado talento perceptivo de Dostoiévski poderia tê-lo feito um antípoda de
Herzen, sendo este o mais perfeito expoente da desfiguração de um espírito
nobre à força de sua exposição a estímulos contraditórios, à crença de que
entre “bem” e “mal” há uma diferença meramente opinativa e de que os desejos
humanos existem exclusivamente para obter a saciedade. Dostoiévski estava anos
luz à frente de Herzen no que diz respeito à compreensão da natureza humana e
de sua relação com tudo o que existe. Mas tem Dostoiévski precisamente a mesma
altura que seu oponente revolucionário quando veste a carapuça de ideólogo. Ao
fim e ao cabo, tendo chegado muito perto de verdadeiramente prever a essência
da história política do século XX, sua ideologia eslavófila o obrigou a
enxergar apenas aquilo que todos os socialistas já afirmavam: que a urbanização
industrial e a política externa colonialista levariam a Europa ao caos, com
guerras impulsionando os proletários às ruas, liquidando o Terceiro Estado e
assim por diante. Dostoiévski precisava deste
quadro para construir sua utopia eslavófila, e não fez questão de enxergar nada
mais além dele. Se tivesse olhado a Rússia com um pouco mais de isenção, ele,
que com tanta precisão descreveu os efeitos da cosmovisão
utilitário-materialista na alma de seus conterrâneos, teria possivelmente
atentado à iminência da eclosão revolucionária em seu país.
Quanto
a Herzen, ele foi, nas palavras do próprio Dostoiévski, um gentilhomme russe et citoyen du monde. Seu sentimento pátrio era
demasiado imiscuído às demandas de seu cosmopolitismo para que lhe coubesse
enxergar o real papel da Rússia na história posterior do Ocidente. Ainda assim,
suas expectativas políticas acabaram revelando-se mais próximas do que veio de
fato a acontecer do que o pan-eslavismo de Dostoiévski. Isto é verdadeiro, ao
menos, quanto ao século XX. Já na história mais recente da Rússia, temos
presenciado o ressurgimento de ideologias muito próximas à professada pelo
autor do Diário de um escritor. São,
porém, as ideias pan-eslavistas de Dostoiévski transformadas pela experiência
soviética, dando origem a doutrinas como Nacional-bolchevismo e o Eurasianismo,
nas quais a ideia de um império encabeçado pela Rússia, destinado a corrigir os
erros do Ocidente, alia-se ao militarismo autoritário tipicamente soviético,
recorrendo ao mesmo tempo à religião ortodoxa como fator de identidade e união
do povo russo.
Tudo
isto nos remete, por fim, a “O Grande Inquisidor”, o verdadeiro coração da obra
dostoievskiana. Uma das leituras mais comuns deste capítulo de Os Irmãos Karamázov o interpreta como
uma antevisão do socialismo posto em prática – o que de fato ele é. Porém,
fazendo uma leitura mais cerrada do texto, vemos que se trata disto e de mais
um pouco.
Diz
o Grande Inquisidor a Cristo:
Sabes tu que
passarão os séculos e a humanidade proclamará através da sua sabedoria e da sua
ciência que o crime não existe, logo, também não existe pecado, existem apenas
os famintos? ‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o que escreverão
na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo será destruído. No
lugar do teu templo será erigido um novo edifício, será erigida uma nova e
terrível torre de Babel, e ainda que esta não se conclua, como a anterior,
mesmo assim poderias evitar essa torre e reduzir em mil anos os sofrimentos dos
homens, pois é a nós que eles virão depois de sofrerem mil anos com sua torre!
Eles nos reencontrarão debaixo da terra, nas catacumbas em que nos esconderemos
(porque novamente seremos objeto de perseguição e suplício), nos encontrarão e
nos clamarão: ‘Alimentai-nos, pois aqueles que nos prometeram o fogo dos céus
não cumpriram a promessa’. E então nós concluiremos a construção de sua torre,
pois a concluirá aquele que os alimentar, e só nós os alimentaremos em teu nome
e mentiremos que é em teu nome que o fazemos.
Este trecho e outros deixam bastante
claro que o futuro referido pelo Grande Inquisidor já se passa em um momento
posterior à revolução socialista. Segundo a profecia dostoievskiana, haverá,
primeiro, o socialismo (“‘Alimenta-os e então cobra virtudes deles!’ – eis o
que escreverão na bandeira que levantarão contra ti e com a qual teu templo
será destruído.”); porém, esta “Torre de Babel” não será concluída e sucumbirá
após trazer muito sofrimento à humanidade. Neste momento de desespero, pois
“quem prometeu o fogo dos céus não cumpriu a promessa”, é que o Grande
Inquisidor e os seus virão “concluir a construção da torre”, e o farão em nome
de Cristo, sob a hipócrita aparência de uma igreja cristã.
Assim,
o mais correto não é dizer que sob uma aparente crítica ao catolicismo
Dostoiévski descreve o socialismo; esta leitura não é equivocada, porém não é a
mais precisa. O que o romancista faz é lançar mão do livro bíblico do
Apocalipse, segundo o qual o advento do Anticristo instaurará uma falsa igreja
sobre a terra, para construir uma parábola carregada de significado, na qual o
Grande Inquisidor não exatamente encarna – como quer uma leitura mais plana do texto
– Stálin ou um ditador declaradamente socialista, mas, mais precisamente, o
antipapa que se apossará da Igreja no fim dos tempos, após o fracasso
socialista e após expulsar de Roma o verdadeiro pontífice, segundo previsto na
escatologia cristã. Ou seja, é impreciso dizer que em “O Grande Inquisidor”
Dostoiévski previu a realidade soviética, pois a profecia aí implícita, se
alguma há, diz respeito a um futuro ainda por vir.
Vale
enfatizar que o mencionado antipapa seria um continuador do socialismo
disfarçado de líder cristão, e por isso é correto ler “O Grande Inquisidor”
como uma parábola antissocialista. Contudo, se bem ler literatura é uma
tentativa contínua de reinterpretação textual à luz de novos dados da
realidade, não podemos deixar escapar esta nuance da obra máxima de
Dostoiévski, tão significativa face ao rumo que vem tomando a história mais
recente do confronto entre o Ocidente e a Rússia. Dostoiévski não tinha dúvidas
de que o chefe impostor da Igreja viria de dentro da própria Roma; talvez haja
aí um erro análogo ao que o fez negligenciar a iminência da revolução
socialista em seu próprio país.
[1] A Writer’s Diary, vol. 2, pp. 1320-1321. “Four Lectures On Various Topics”.
[2] Idem, p. 1321.
[3] “Dada a composição social da Rússia naquele momento, não é de
surpreender que a maior parte dos soldados em ambos os lados fossem camponeses.
Enquanto a maioria dos trabalhadores das fábricas apoiavam os Bolcheviques, os
camponeses tinham uma atitude profundamente ambígua com relação à guerra civil.
Aqueles que podiam ficar de fora, ficavam. (...) O campesinato às vezes apoiava
o Exército Vermelho, às vezes o Branco, mas a crueldade em ambos os lados
rapidamente os alienava.” In:
BROWN, Archie. The Rise and Fall of
Communism. Vintage Books: 2010, p. 53.