Por um lado, as mulheres com um refinado
senso de progresso consideram a prática abortiva uma mera questão de escolha.
Nesse caso, o aborto deve ser liberado, pois "corpo" caracteriza-se simplesmente como
propriedade da mulher: nem o embrião e nem ninguém têm autoridade
sobre a propriedade alheia. “Meu útero não é de ninguém!”. Como se fosse a
coisa mais óbvia do mundo “mulher” e “corpo” serem concebidos como duas
entidades ontologicamente distintas cuja apropriação se dá por meio de um
decreto. Como se fosse mais óbvio ainda o embrião ser uma parte do corpo da
mulher, ao invés de caracterizar-se como uma entidade ontologicamente
distinta.
Por outro lado, presume-se que o estatuto
biológico do embrião coincide, in toto, com o estatuto de sua
humanidade desde o momento da concepção: o embrião é um ser vivo e humano desde
o momento da concepção. Afinal, por que não seria? Ora, se não somos uma pessoa
desde o momento da concepção até a derradeira hora da morte, então não há o que
nos faça uma pessoa. Ninguém exerce essa autoridade sobre nós: “É humano quando me convém”.
A dignidade não é um título concedido por
uma autoridade externa, por um pacto ou um ato voluntário declarando:
"isto é pessoa, isto não é"; a dignidade está lá, desde sempre. Ou
não estará, para sempre. A nenhum homem foi dado o direito de decidir quem tem
ou não essa propriedade essencial que nos torna humanos. A pessoa humana – este
ser particular cujo nome é João, Maria, José, Ana etc – é ser cujo valor
coincide com o fato: para o homem, o fato de ser já é um valor. Superamos a
linha da animalidade do primeiro instante ao último. O animal no homem é uma
ilusão criada por aquele insuportável excesso de certeza. Deixemos de lado a
questão.
A quaestio disputata sobre o aborto não
implica exatamente quando a vida começa – todos sabemos quando a vida de uma
pessoa começa e é preciso de muita má-fé para pensar o contrário –, mas se a
proprietária do útero tem o direito de interromper a gestação quando bem
entender.
Devido à fragilidade de sua
natureza, o embrião necessita habitar o corpo de uma mulher para
viver. É uma espécie de “inquilino”, embora não tenha escolhido “morar” naquele
útero. Caso venha a ser um inquilino indesejável, a mulher teria o direito
em despejá-lo – garantido pelo direito de liberdade e de propriedade privada,
enquanto o direito à vida do embrião é mero detalhe.
Como o embrião foi parar em um útero? Ele
ocupa um lugar que não lhe pertence e está ali por uma espécie de "favor".
A gestante resolve despejá-lo e isso tem um preço elevado: custa a vida do
pequeno (tão amontoado de células quanto qualquer um de nós). Assim, a
questão é ainda mais profunda: o embrião não escolheu habitar aquele
útero, não foi um contrato voluntário entre as partes, ocupa aquele
lugar por acaso (cá entra nós: escolhas
irresponsáveis).
No caso de a gestante ter engravidado por “acaso”,
ela e seu parceiro são os responsáveis e nada mais razoável do que arcarem com as
consequências indesejáveis. Com exceção dos inocentes, todos nós sabemos
da impossibilidade de uma mulher ficar grávida do “vento”, como dizia minha avó.
E a cegonha já se aposentou do imaginário popular faz tempo. Sabe-se das
escolhas profundas que precedem uma gestação e, por isso, deveriam preceder
o ato sexual.
Planejamento familiar não significa
instrumentalização do sexo, mas a sua humanização. Nesse sentido, o ato sexual
diz respeito à moralidade (capacidade de amontoados células refletir antes de
agir: conhecer os fins e os meios da ação). O prazer pode trazer consequências indesejáveis e é sinal de maturidade saber
lidar com elas. Não tem nada de fundamentalismo religioso em desenvolver
maturidade sobre a vida sexual. A consciência dos fins é uma característica
típica dos amontoados de células pensantes; e estes pequenos seres que
representam o extremo da inocência não são lixo – ou mero capricho? – do extremo fundamentalismo dos irresponsáveis.