Rapaz de classe média alta, que dois anos antes sonhava –
sonhava! – com baladas no exterior e roupa de marca, e que decide fazer
Geografia e pega por conta própria resumos de Marx; que passa a nutrir sonhos
de luta armada - sim, pode rir. Esse jovem traz uma bagagem que ele próprio
odiaria conhecer.
Vou te contar algo que ocorreu no fim daquela malfadada
primeira graduação. Acho que o melhor termo é “crime de pensamento”, já que não
passou disso. E mesmo assim senti vergonha. Não que hoje eu me orgulhe. Também
não é nada demais, só que como nunca contei para ninguém, deve ser importante.
Estava no último semestre, o bacharelado parecia próximo.
Época de muito tempo livre, muita solidão e muita leitura. Tinha meus amigos,
óbvio, mas sentia uma desconexão. Eles não levavam as ideias a sério; não como
eu levava. Mesmo os mais engajados me davam a nítida impressão de que não
queriam entender o mundo e muito menos transformá-lo; queriam participar dele
de uma maneira específica. Reproduziam estruturas básicas das relações humanas
que me traziam de volta à parte mais cruel do colegial e a tudo que eu
rejeitava no mundo dos meus pais.
Isolei-me, o que me deu uma boa reputação. Eu lia o que os
outros fingiam ter lido. Um benefício da Geografia é que o conhecimento – ou a
aparência de conhecimento – é um valor. Estava sempre envolvido em discussões,
debates, escrevia pra jornais no campus. Tinha naquele campo de ideias algo que
realmente me engajava.
Minha percepção básica era a de que havia uma ordem no mundo
social, criada pelo homem, mas ao mesmo tempo difícil de ser desvendada. E essa
ordem era sórdida - essa fora minha certeza original. Ela perpassava tudo:
nossas relações econômicas em primeiro lugar, e nossas relações sociais,
culturais, sexuais; até o uso do espaço era deturpado. Era preciso, portanto,
botá-la abaixo e criar uma nova. Mas para transformar o mundo alguns teriam que
entendê-lo; aí que eu entrava.
A questão da justiça era a que mais me incomodava; pois em
todas as relações ela se encontrava violada. Era essa preocupação que
justificava minhas longas estadias na sala de leitura da biblioteca fora do
horário de aula. Só não me pergunte quanto desse tempo era de estudo de fato e
quanto eu gastava pensando na vida ou observando os outros. Criava futuros,
longos devaneios, olhava as pessoas em volta. A biblioteca desenvolve uma vida
social silenciosa. Tinha meus amigos, meus inimigos; gente com quem eu nunca
falaria. Cada um projetava o que queria nos outros, e nos conhecíamos assim. É
sobre uma dessas relações imaginárias que eu quero falar. Óbvio que era com uma
mulher.
Dava-me um certo orgulho sentir atração por uma negra. Feio,
né? Tipo de coisa que não dá pra se gabar, mas que eu adoraria pingar numa
conversa. Acontece que ela não era só gostosa. O conjunto transcendia o físico
e penetrava o campo dos significados. Black
power irretocável, brincos de argola enormes, olhos semiabertos que escondiam
uma inteligência cortante, um leve sorrisinho – ou isso era eu que imaginava? O
caminhar geométrico, determinado, que atropelaria qualquer homem em seu
caminho. Os ângulos retos dos ombros da jaqueta; na parte superior era tudo
ângulos retos. E no meio daquela geometria reta, o arredondado dos quadris e do
rebolado. Um toque de Brasil naquela beleza african-american.
Esse conjunto expressava um conceito: o caminhar inexorável da justiça. O peso
do mundo como se não fosse nada. Tão diferente de mim.
Gastei um tempo com a dialética da minha musa secreta; ainda
tenho as anotações. Era brincadeira pra passar o tempo, mas não totalmente,
sabe? A forma do cabelo, esfera negra perfeita, que devia resultar de um
cuidado meticuloso, parecia a projeção natural daquela personalidade, como se
todos os detalhes irradiassem necessários de um princípio gerador. O corpo
acendia em mim o desejo próprio das relações de poder injustas. Contra isso, e
no mesmo corpo, a práxis e a estética de ideias que negavam aquelas relações. A
síntese final superava a contradição numa possibilidade de união deste e
daquele mundo; gozo e justiça. Deixei uma nota curiosa na margem: a leitura
estava mais pra Hegel que pra Marx. Não julgue.
Nossa relação se resumia a isso; vê-la passar diante de mim em
direção a uma mesa livre, observá-la enquanto lia e fazia anotações, e
finalmente observá-la ir embora. Com certeza ela devia notar o franzino babão a
segui-la com a cabeça, mas nunca o fez abertamente. Na minha imaginação ela me
mandava um sorrisinho quase imperceptível, como que aprovando a adoração e consciente
de que eu jamais teria a coragem de ir além. O rosto era um tiquinho mais cheio
do que o ideal. Não importava. Também não importava o fato de ela dormir com
frequência na biblioteca, o que em outros me desagradava e que eu tomava como
sinal de burrice.
No dia em questão, ela cochilava, cabeça meio de lado
apoiada nos braços - não sei se escorria um fiozinho de baba ou se criei isso
depois. Bom, enquanto ela dormia, um sujeito se aproximou. Era um cara banal,
que eu já vira nos corredores, nunca na biblioteca; desses que gostam de
parecer culto. Óculos de aro grosso, barba por fazer; mas também alto,
atlético, roupas largas, desenvolto. Chegou do lado dela, encostou a mão no
braço, cochichou baixinho em seu ouvido, carinhoso.
Ela abriu os olhos e deu um sorriso preguiçoso, como se ele fosse
um namorado trazendo café na cama. O cabelo estava amassado, não era mais a
esfera perfeita - o artifício revelado. E foi aí que a percebi de modo
diferente. O mesmo rosto, os mesmos traços; me ocorreu que já tinha visto aquele
mesmo tipo de cara, muitas vezes. Era comum no Brasil: uma cara que não
transmitia inteligência nenhuma; apenas uma alegria sonsa de estar viva e ser
jovem. Também não era bonita; por trás da produção havia um rosto sem atrativos.
Olhando para aquela menina que me encantara por meses, senti quase uma repulsa,
e junto dessa repulsa uma palavra brotou de algum porão esquecido.
"Empregadinha".
Repeti num cochicho: "empregadinha". Aquela que eu
admirara por meses, a acadêmica segura de si, minha representante ideal da
mulher negra, a personificação apolínea da justiça social; empregadinha.
O sistema de defesa disparou. Cortei o pensamento. Quis me
distanciar dele. Fora só algum refluxo de tempos anteriores; um coágulo da
experiência da minha classe. Uma bolha de gás, de alguma matéria em
decomposição no solo oceânico, que chegava à superfície tendo viajado milhares
de quilômetros. Era também prova de que eu tinha muito a progredir. Pega bem
dizer-se racista ou sexista, sem bem sê-lo, mostrando que luta para melhorar -
eu era ingênuo, mas esse tanto eu já sabia. O que eu não sabia é que mesmo o
discurso mais sincero pode mentir.
O que mais me estranha hoje em dia é o quanto aquele “empregadinha”
me abalou. Passei a tarde indignado comigo mesmo. Só me acalmei quando concluí
que a verbalização fora o eflúvio final de uma impressão que já escoava para o
esgoto, e era portanto uma vitória. A adoração incondicional estava intacta. Ou
melhor, até mais forte. No fim daquele mesmo dia meus olhos acompanharam
espontaneamente o andar daquela deusa quando ela foi embora: aquele rosto determinado,
aquela beleza superior, aquela bunda.
Daí uns dias depois ela sumiu, e deve ter ficado quase um
mês fora. Uma semana antes das provas - eu continuava na velha rotina, sem já
saber para quê -, reapareceu. Minha alegria foi imediata, talvez eu tenha até
sorrido, e, enquanto eu acompanhava a trajetória, me veio naturalmente e com um
dose de ironia: "a empregadinha voltou". Dessa vez já não me
importei.
Hoje eu acredito numa mecânica newtoniana da mente. Cada
pensamento dispara outro com igual intensidade e direção contrária. Cada elogio
faz pensar numa crítica. Cada ato de devoção exige um sacrilégio. Ou será que o
disfarça? Veja, os povos mais religiosos inventam as piores blasfêmias. O
homofóbico exagerado é homossexual enrustido. A mesma mulher percebida de duas
maneiras; deusa e empregadinha. Quem mudou aquele dia fui eu. Mudei? A espuma
branca nada é a água escura do mar.
Ideias não importam. Ironicamente, nisso eu já acreditava,
ainda que por outros motivos. Ideias decorriam da posição econômica e aquela
coisa toda; exceto para nós, os intelectuais. Só que a irrelevância das ideias
valia sobretudo para nós. Poderia ser
que as melhores intenções produzissem o inverso do que almejavam? Ou ainda, e
se estiverem sempre a serviço de outras, as piores?
Mais de um ano depois, no outro curso - quando entrei nas
nossas amadas engrenagens - fiquei sabendo o nome dela por um ex-colega e joguei
no Google. Eu jamais me dera ao trabalho de descobrir o nome... Joguei no
Google e não deu nada além do mínimo: chamadas de vestibulares antigos, lista
de iniciação científica. Desde então, quando a curiosidade bate, procuro de
novo. Tem o currículo do Lattes, comunicados de concurso. Era da Letras,
doutoranda em literatura feminista. Mais clichê impossível. Seu grande feito
foi ter passado em concurso de uma federal no interior, e isso já faz tempo.
Será que abandonou o tipo? Nunca fez nada de relevante;
nenhum livro. Teve um blog e logo o abandonou. Banalíssimo, alguma coisa sobre
aborto, uns poemas; de doer, sabe? Anos depois do último post eu ainda o
acessava esporadicamente. Nem sei se continua professora – talvez tenha
desistido. Espero que esteja num trabalho que a realize. Aquela menina – assim
como eu – não estava no lugar dela e por isso não deu em nada.
Nunca falei com ela; primeiro por falta de coragem; depois
por desinteresse. Agora é tarde demais, sem falar que nenhuma pessoa real
possível satisfará a necessidade de significado que ela, fictícia, me satisfaz. Quem esteve ali na minha frente todos
aqueles dias? Uma feminista que queria acabar com a opressão patriarcal e com o
racismo? Uma acadêmica que lutava e vencia num sistema que, apesar de tudo,
podia ser usados para uma vida dedicada ao saber? Uma mulata baixinha presa nas
engrenagens do ensino superior, capitalizando uma beleza efêmera e sem saber
para onde ir?