por Filipe Celeti
Não é inteligente julgar um livro pela
capa, mas não é desonesto aquele que julga uma obra pelo primeiro parágrafo.
Uma boa história começa boa. O bom texto te prende, te fascina, te estimula e
te alimenta com uma sensação de necessidade de devorar cada pronome, verbo,
artigo, advérbio, adjetivo, conjunção etc. Não é à toa que Platão utiliza a
metáfora do começo de uma obra para falar da importância de pensar a educação.
“O começo é a metade de toda obra” (VI 753e), afirma o personagem “Ateniense”
em As leis.
São inúmeros os bons livros que começam
bem. Lembro do Morgenstern me apresentando Arquipélago gulag, com a
história deles comendo uma salamandra ancestral congelada na Sibéria. Lembro da
primeira folheada no clássico Lavoura arcaica e de meu encantamento ao
ler os contos sartreanos em O muro. Não poderia esquecer do mestre
Machado, encantando antes mesmo das Memórias póstumas começarem, ao
dedicar o livro ao verme que roeu o seu cadáver.
Apesar dos brilhantes começos, há um livro,
não literário, mas acadêmico, que conseguiu o primor de dissecar e apontar o
modo como a sociedade tem vivido. Publicado em 1971, Sociedade sem escolas,
de Ivan Illich, transcende o debate acerca da educação. O parágrafo com o qual
inicia o primeiro capítulo nos permite discutir até a exaustão, mas pretendo
não te cansar, caro leitor.
Illich escreve:
Muitos
estudantes, especialmente os mais pobres, percebem intuitivamente o que a
escola faz por eles. Ela os escolariza para confundir processo com substância.
Alcançado isto, uma nova lógica entra em jogo: quanto mais longa a
escolaridade, melhores os resultados; ou, então, a graduação leva ao sucesso. O
aluno é, desse modo, «escolarizado» a confundir ensino com aprendizagem,
obtenção de graus com educação, diploma com competência, fluência no falar com
capacidade de dizer algo novo. Sua imaginação é «escolarizada» a aceitar
serviço em vez de valor. Identifica erroneamente cuidar da saúde com tratamento
médico, melhoria da vida comunitária com assistência social, segurança com
proteção policial, segurança nacional com aparato militar, trabalho produtivo
com concorrência desleal. Saúde, aprendizagem, dignidade, independência e
faculdade criativa são definidas como sendo um pouquinho mais que o produto das
instituições que dizem servir a estes fins; e sua promoção está em conceder
maiores recursos para a administração de hospitais, escolas e outras
instituições semelhantes. (p.16)
Ao dizer que muitos estudantes percebem o
que a escola faz por eles, de forma intuitiva, Illich está dizendo que, mesmo
sem saber ou entender, as pessoas percebem que na verdade a escola não serve
pra nada. Após passar mais de 10 anos numa instituição de ensino, muito pouco
do que ali foi dito, pensado ou debatido se relacionará com a vida. O meu medo é que a escolarização tem tido tanto êxito, que a quantidade de pessoas que
percebem tem diminuído drasticamente. Os alunos formam-se institucionalizados
e, quase robôs, pouco fazem ou são capazes de fazer com aquilo que foi
programado e registrado em suas mentes.
O que a escola faz? Confunde processo com
substância. Faz com que as pessoas confundam anos de estudo com resultados, ter
se formado com sucesso. Não demora muito para o pobre perceber que comprou uma
ideologia furada. Foi bombardeado com slogans que afirmavam que passar mais anos
estudando lhe dá mais chance, e depois percebe que muitas vezes a conclusão de um
curso não resulta na mágica entrada para o mercado de trabalho. Percebe também
que seus colegas com habilidades esportivas e persistência, outros que cultuaram
o próprio corpo, e aqueles que se dedicaram a fazer ruídos com letras sobre
gastar dinheiro e dormir com muitas mulheres, “deram” muito mais certo do que
os que estudaram com dedicação. Pode perceber também que o culto aos anos de
formação impede os anos de experiência. Comprou gato por lebre, ao viver
debaixo da institucionalização da educação.
Adentrando o mundo da educação, a confusão
entre processo e substância leva a entender o ensino como aprendizagem. O
processo do ensino não é o fruto de um ensino bem realizado. Estar presente num
ambiente em que existe ensino, não resulta em aprendizagem. Entretanto, vivemos
sob o mantra do discurso metodológico confundido com resultados de aprendizagem
– quando esta já não foi descartada totalmente em nome do processo oco.
Confundir a obtenção de graus com educação
é o que faz a nossa sociedade medir seus índices e multiplicar estatísticas
sobre a população escolarizada e o tempo da escolarização. “Veja como estamos mais
educados! Passamos de uma média de 5 anos para 8 anos de educação.” Todo tipo
de artificio nefasto é utilizado para melhorar os dados que dizem apenas que as
pessoas passam mais tempo inútil numa construção arquitetônica denominada
escola. A aprendizagem e a educação estão muito distantes disto. Illich mostra
ao longo de seu texto como este pensamento se perpetua para angariar mais
fundos para esta instituição responsável pela “educação”.
Nesta sociedade confusa, o que mais se
multiplica é a inexistência de competentes à medida em que mais pessoas
tornam-se certificadas. Muitos querem ter um papel, poucos querem ser, viver e
saber. A cultura do diploma é a manifestação da grave doença burocrática que
visa impedir que as pessoas sejam o que desejam se não estiverem dentro de
critérios puramente arbitrários.
Por último, a cegueira institucionalizada
cria um mundo de palpiteiros que, dominando minimamente a língua, pensam-se
capazes de dizer algo novo acerca da realidade. A aprendizagem, a educação e a
competência não importam, pois o que vale é o processo.
A imaginação também é escolarizada. Lembro
de Georges Didi-Huberman falando sobre a imaginação rasgada (déchirée)
de nosso tempo, nos impedindo de ver, interpretar o que vemos e de ir para além
do que enxergamos. Pode ser este pano de fundo estético o responsável pela
aceitação de serviço em troca de valor. Não há criadores de valor no universo
de repetidores de ações, incapazes de refletirem sobre o que realizam.
Para além da educação, temos a institucionalização
de tudo. Não há mais saúde fora dos sistemas. Os médicos tornaram-se os
sacerdotes e feiticeiros, responsáveis pela verdade e pelos encantamentos de
vida e de morte. É preciso sempre ter uma instituição para cuidar daquilo que
pertence ao indivíduo. Para a segurança temos a polícia, para a defesa temos o
exército, para a melhoria de condições de vida temos os programas de
assistência social, para a justiça temos os tribunais burocráticos, para a
validação de contratos temos os cartórios. Nada escapa da institucionalização.
Para viver com quem se ama, para vender um produto e para consumir plantas
alucinógenas invoca-se uma instituição que será responsável por aquilo que o
indivíduo poderia realizar sem autorização e sem invocar tal autorização. Mas
esta é a condição da sociedade escolarizada.
O término do parágrafo de Illich não
poderia ser diferente. Quando “saúde, aprendizagem, dignidade, independência e
faculdade criativa” são vistas como resultados dessas instituições que dizem
ser as únicas responsáveis por tal substância, temos obviamente a demanda
infinita de recursos para fazer cumprir tais resultados. É a partir deste mito
que escolas, hospitais, tribunais, ONGs, ordens profissionais, sindicatos e
legisladores retiram a legitimidade que inventaram para si mesmos como os
verdadeiros provedores daquilo que, sem eles, as próprias pessoas poderiam
conseguir.
A institucionalização da vida é total.
Vivemos na época de delegar aos outros a responsabilidade que deveria nos ser própria.
Uma época na qual
o medicar-se a
si próprio é considerado irresponsabilidade; o aprender por si próprio é olhado
com desconfiança; a organização comunitária, quando não é financiada por
aqueles que estão no poder, é tida como forma de agressão ou subversão. A
confiança no tratamento institucional torna suspeita toda e qualquer realização
independente. [...] Em toda parte, não apenas a educação, mas a sociedade como
um todo precisa ser «desescolarizada». (p.17)
Ivan Illich iniciou seu livro de maneira
primorosa. Que este autor que vos escreve tenha conseguido, mutatis mutandis,
algo parecido em sua estréia neste blog.
Referências:
ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas.
Petrópolis: Vozes, 1985.