Perdoem-me os
leitores por abordar um assunto tão insignificante. Tratarei de batatas — mais
especificamente, de batatinhas que nascem e se esparramam (ou não) pelo chão.
Tenho ouvido desde o Ensino Médio que, na famosa trovinha, o segundo verso
não seria “[se] esparrama pelo chão” — como tradicionalmente se declama —, mas,
sim, “espalha rama pelo chão”. Segundo dizem, isso se deve ao fato de as
batatas serem tubérculos e, sendo assim, crescerem debaixo da terra. O que se espalharia “pelo chão” seria a ramagem da batata. Confesso que,
durante a infância e a adolescência, estive muitas vezes sobre batatas ainda na
terra, mas nunca me ocorreu verificar se elas formam algum tipo de
rama. Aí está um assunto para biólogos e agrônomos discutirem. Abordarei a questão por outra perspectiva.
Nunca soube qual é
a origem do famigerado “espalha rama”. A figura mais proeminente a quem se atribui tal correção da trova é o professor Pasquale Cipro Neto, conhecido do
grande público por oferecer dicas de Português em jornais, revistas e programas
de televisão. Geralmente, o verso corrigido é apresentado ao lado de expressões
populares que, com o passar do tempo, teriam sido “deformadas” na boca do povo.
É o caso, por exemplo, de “cuspido e escarrado”, cuja versão original seria
“esculpido em [mármore] carrara”, ou ainda “cor de burro quando foge”, que,
originalmente, dizia-se “corro de burro quando foge”.
Entretanto, existe
uma diferença aqui: enquanto os casos mencionados se referem ao gênero dos
provérbios ou dos ditos populares, “Batatinha quando nasce” é uma trova (ou
quadrinha) que, como tal, possui uma estrutura definida: estrofe de quatro
versos, geralmente em redondilha maior (versos heptassílabos, isto é, de sete
sílabas poéticas) e com rimas alternadas (esquema abab ou abcb). Vejamos:
Batatinha quando
nasce,
Esparrama pelo
chão,
Menininha quando
dorme,
Põe a mão no
coração.
Cuja escansão fica
da seguinte maneira:
Ba/ ta/ ti/ nha/
quan/ do/ nas – 7 sílabas
Es/ par/ ra/ ma/
pe/ lo/ chão – 7 sílabas
Me/ ni/ ni/ nha/
quan/ do/ dor – 7 sílabas
Põe/ a/ mão/ no/
co/ ra/ ção – 7 sílabas
Além desta estranha
“coincidência” no número de sílabas poéticas, há outra no que se refere aos
acentos dos versos:
Ba/ ta/ ti/ nha/ quan/ do/ nas – as 3ª,
5ª e 7ª sílabas são tônicas
Es/ par/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão – as 3ª, 5ª
e 7ª sílabas são tônicas
Me/ ni/ ni/ nha/ quan/ do/ dor – as 3ª,
5ª e 7ª sílabas são tônicas
Põe/ a/ mão/ no/ co/ ra/ ção – as 3ª e 7ª
sílabas são tônicas e a 5ª, subtônica.
Subtônicas são
sílabas que, mesmo não sendo a tônica, possuem um som mais marcante do que as
átonas mais tênues, que antecedem ou sucedem imediatamente a
tônica. É um artifício muito comum contá-las como tônicas, a não ser no lugar
das cesuras.
Escandindo os
versos, utilizando o “esparrama pelo chão”, percebemos que existe uma
regularidade métrica. O mesmo se dá quando consideramos a versão “se esparrama
pelo chão”:
Sees/ par/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão
Mais uma vez,
encontramos um verso heptassílabo com acentos nas 3ª, 5ª e 7ª sílabas poéticas.
Isto ocorre porque a última vogal de se
e a primeira de esparrama se fundem
numa mesma sílaba poética durante a pronúncia (fenômeno conhecido como crase); dizemos: “sesparrama pelo chão”.
Agora vejamos “espalha rama pelo chão”:
Es/ pa/ lha/ ra/ ma/ pe/ lo/ chão
Eis um verso de 8
sílabas poéticas (octossílabo), com acentos nas 2ª, 4ª, 6ª e 8ª, o que foge do
esquema métrico da trova, quebrando completamente seu ritmo. A partir disso, é
possível deduzir que “[se] esparrama pelo chão” faz parte da versão original e que
“espalha rama” é a distorção, a deformação, ao contrário do que se tem dito por
aí.
O que houve foi
uma “supercorreção”, quando se corrige algo que já estava correto.
Provavelmente, alguém deduziu que, como as batatas crescem sob o solo, então o
verso só poderia estar errado e tratou de adequá-lo ao sentido que julgou ser o
mais correto. Quem quer que o tenha feito, caiu numa cilada boba: ignorou a função
poética da linguagem, em que os significantes são mais importantes do que o
significado, isto é, em que o como se diz
é mais importante do que aquilo o que se quer dizer. Se há realmente alguma
impropriedade em dizer que as batatas se espalham pelo chão, isso não tem
importância, pois os versos da trova estão obedecendo a critérios sonoros,
fônicos, e não botânicos. O ritmo da estrofe tem a primazia sobre a estrofe.
Desafio qualquer um a estabelecer uma relação convincente de paralelismo lógico
entre batatas nascendo no chão e meninas dormindo com a mão sobre o peito. As
duas imagens são relacionadas na trova apenas por critérios que dizem respeito
à dimensão rítmica da linguagem verbal.
Para não parecer
que estou falando de um caso isolado, vejamos outras trovas de nossa cultura
popular:
Se essa rua fosse
minha,
Eu mandava
ladrilhar
Com pedrinhas de
brilhante
Só p’ro meu amor
passar.
Nessa rua tem um
bosque,
Que se chama
solidão,
Dentro dele mora
um anjo
Que roubou meu
coração.
Os versos são todos
heptassílabos, com acentos nas 1ª, 3ª, 5ª e 7ª sílabas, sendo que, por vezes, a
5ª é subtônica.
Atirei o pau no
gato,
Mas o gato não
morreu,
Dona Chica
admirou-se
Do berro que o
gato deu.
Este é um exemplo
interessante, pois o esquema métrico é formado por versos heptassílabos com
acentos nas 3ª, 5ª e 7ª sílabas. O quarto verso, no entanto, possui os acentos
nas 2ª, 5ª e 7ª. Solucionamos essa discrepância cantando “do berrô que o gato deu”, adequando a prosódia
ao ritmo da trova.
Ou ainda:
O cravo brigou com
a rosa
Debaixo de uma
sacada,
O cravo saiu
ferido,
A rosa,
despedaçada.
Em que:
O/ cra/ vo/ bri/ gou/ co’a/ ro – 7
sílabas poéticas (acento nas 2ª e 5ª sílabas)
De/ bai/ xo/ deu/ ma/ sa/ ca – 7
sílabas poéticas (acento nas 2ª e 4ª sílabas)
O/ cra/ vo/ sa/ iu/ fe/ ri – 7 sílabas
poéticas (acento nas 2ª e 5ª sílabas)
Ea/ ro/ sa/ des/ pe/ da/ ça – 7 sílabas poéticas (acento na 2ª,
sendo que tanto a 4ª quanto a 5ª sílabas podem ser contabilizadas como
subtônicas).
Não há uma
regularidade métrica tão estrita quanto nos outros exemplos, mas existe um
paralelismo em que, considerando-se no quarto verso a quarta como a subtônica,
temos um revezamento de versos heptassílabos com diferentes acentos, acompanhando
a alternância das rimas: as rimas são cruzadas (abcb), assim como os versos com acentos nas 2ª e 5ª sílabas
(digamos, x) se alternam com aqueles
acentuados na 2ª e na 4ª, da seguinte forma: (xyxy), sendo que os versos rimados (b) são ambos y. A
alternância de tipos de versos com o mesmo número de sílabas, mas com acentos
diferentes, é comum nos sonetos parnasianos brasileiros, nos quais costumavam alternar
os decassílabos heroicos (acentos nas 6ª e 10ª sílabas, às vezes na 2ª) com os
sáficos (acentos nas 4ª, 8ª e 10ª sílabas poéticas).
Já em
Ciranda,
cirandinha,
Vamos todos
cirandar,
Vamos dar a meia
volta,
Volta e meia vamos
dar.
O anel que tu me
deste
Era vidro e se
quebrou,
O amor que tu me
tinhas
Era pouco e se
acabou.
... o esquema métrico
é de versos heptassílabos com acentos nas 3ª, 5ª e 7ª sílabas, sendo a 5ª, por
vezes, subtônica. A única exceção é o primeiro verso, com seis sílabas,
acentuadas as 2ª e 4ª. A regularidade rítmica permite-nos supor que,
orginalmente, o verso era “cirandinha, cirandinha”, que se encaixa
perfeitamente no esquema do restante da canção, talvez reduzido para “ciranda,
cirandinha” para eliminar a repetição desnecessária (uma questão de economia possível
de ser observada com alguma regularidade quando estudamos fonética). A hipótese
não é tão absurda porque a variação “cirandinha, cirandinha” é bem menos
frequente, mas também pode ser ouvida em alguns lugares.
A questão é que,
até a década de 1990, não se escutava essa história de “espalha rama”. O ônus da
prova cabe a quem afirma que a tradição oral está errada. E como se poderia
prová-lo? Simples, indo atrás das transcrições mais antigas da trova e
verificando se os documentos registram “esparrama” ou “espalha rama”. Até que isto
seja feito, não há real motivo para duvidar da versão que nos foi legada, pois
ela se adéqua melhor a outros indícios verificáveis, como a estrutura própria
das trovas. Não se trata, como possivelmente ocorre em “Ciranda, cirandinha”,
de um verso que se adequava a um esquema métrico pré-estabelecido e que foi
“descaracterizado” no uso corrente. Seria o oposto disso: um verso irregular
que foi regularizado com o passar do tempo, deixando de ser “espalha rama” para
se tornar “esparrama”. Mas a grande pergunta é: por que o verso, em sua origem,
seria irregular?
Embora, até onde
saibamos, o autor seja anônimo, é óbvio que houve um autor, pois trovas (com
sua estrutura específica), ao contrário do que certa superstição populista
poderia conceber, não surgem espontaneamente da cultura popular. O povo apropria-se
da trova, que passa a fazer parte de seu repertório cultural, e ele (na verdade, indivíduos que o compõem) pode fazer-lhe alterações e
distorções, modificando o texto original. O que seria inexplicável seria o fato
de a trova ter sido composta inicialmente de maneira irregular, a menos que se
tratasse de um provérbio adaptado à forma de uma trova. Tal hipótese é pouco provável, pois os versos não possuem um significado relevante ou definido e aparentam se relacionar única e exclusivamente por conta da sonoridade do
conjunto. Quer dizer, se esses versos não compusessem desde o princípio uma
trova, fica difícil imaginar o que eles pudessem querer dizer. A estrutura na
qual eles estão encaixados parece ser sua razão de existir.
Esta discussão pode
parecer uma implicância boba de minha mente neurótica (e talvez seja mesmo!). Entretanto,
o que me incomoda é isso ser disseminado pelas escolas de todo o
país, desacostumando os alunos à fruição da poesia. Ignora-se a função
poética e tenta-se adequar a trova a um uso utilitário da linguagem, de forma
que tudo se enquadre num significado corrente, lógico. No processo, perde-se a
dimensão lúdica da poesia e deixamos de alimentar a imaginação e a
sensibilidade de nossos jovens. Depois não adianta reclamar que os alunos não
gostam de poesia, pois estamos lhes ensinando que a linguagem poética não se
diferencia daquela de um verbete de dicionário. Por que então perder tempo com poesia?