domingo, 23 de fevereiro de 2014

Nariz empinado também é filho de Deus



Esnobismo é o sentimento de quem tem um bem restrito a poucos, que o vê sendo invadido por uma classe recém-chegada que o desvirtua e que tenta recolocar o invasor em seu lugar inferior. É patrimônio coletivo da espécie humana. Nobres esnobavam burgueses; judeus, góis; dinheiro antigo, novos ricos; pessoal true, posers; acadêmicos, divulgadores; populares, nerds; e nerds – que recentemente virou motivo de orgulho – esnobam os nerd wannabes.

Há segmentos culturais inteiros dedicados à exclusão: o hipsterismo, por exemplo. Se todo mundo conhecer a banda, a banda não é mais tão legal assim; conhecer e gostar do que é de poucos é parte essencial do que os define. Isso pode não ser lá muito admirável, mas é humano; o homem é um ser hierárquico, quer se sobressair e ser admirado. E para isso é preciso manter os outros em seu lugar.

Não são só os ricos que o fazem. Há o esnobismo da falta de dinheiro (ou da aparência da falta de dinheiro), que esnoba os agentes da gentrificação. O barzinho é descolado até chegarem os playboys. Essa versão indireta, esse esnobismo de segunda ordem, gosta de se pintar como superior, mas é igual a sua versão mais vulgar praticada por socialites e mauricinhos. Talvez seja pior. Uma coisa é o vício ali por inteiro, aberto, direto ao ponto; até inocente. Outra é o vício retorcido, disfarçado, indireto, que tenta dissimular sua real natureza. Quanto mais refinada a mente (e por que negar que meio intelectuais meio de esquerda sejam mais inteligentes que dondocas? Nosso igualitarismo chega a isso?), maior a perversidade de que ela é capaz.

Nossos sentimentos e até nosso corpo incorporam certo esnobismo, certa rejeição pelo que é mais popular. O salgado gorduroso num boteco de favela junto ao córrego não é digno de nossa boca, embora os favelados o adorem; idem para o copo d’água suspeito nas ruas de Nova Deli. Ainda que o cérebro igualitário prevaleça, o intestino não será tão democrático.

A esnobada pode ser ofensiva, quando o alvo é um invasor isolado que não sabe se adequar às normas implícitas da comunidade exclusiva; ou pode ser defensiva, quando toda uma nova classe invade a comunidade, mudando sua configuração. No primeiro caso, o motivo do gracejo é realmente evidenciar a inferioridade do sujeito em algum aspecto: “Pfff, veste camiseta da banda mas só conhece os hits”. No segundo, a esnobada pode nem derivar do desejo de excluir o invasor, e reflete apenas a tristeza perante o desvirtuamento da comunidade ou do item de consumo, agora vulgarizados. Ou vai dizer que você ama o fato de os cinemas e TV a cabo só passarem filme dublado? Pra não falar do que virou o teatro... É o preço da inclusão social e econômica. Podemos gostar dela mas lamentar alguns de seus efeitos, não? Aliás, já repararam que nenhum requeijão presta mais?

Quando a professora Rosa Marina Meyer viu um proletário esculachado no aeroporto, seus instintos esnobes apitaram e fez uma piadinha nas redes sociais. Aquela monstra asquerosa. Seu esnobismo foi do tipo mais inocente, mais puro. O passeio aeroviário, outrora marcado pela finesse e sofisticação, está a metamorfosear-se em ambiente popularesco, com filas quilométricas, barulho, cheiros mil, carne, gordura, pele e pelos à vista; daqui a pouco vão estender varal e trazer marmita. São coisas que a mim não ofendem, mas que a sensibilidade de uma senhora de classe média alta não tolera bem; e quem poderá condená-la se ela ainda por cima leva tudo com bom humor?

No final das contas o esculachado era mais rico que ela, o que indica que o problema era antes com seus modos que com sua renda. Um pobre arrumadinho não causaria o desgosto desse rico esculhambado. Mal sabia ela, contudo, que esse pecadilho, esse ato comum e partilhado por toda a humanidade de variadas formas, é o novo pecado contra o Espírito Santo; nem Deus pode perdoá-lo. Ao saber do comentário, o twitter da Dilma Bolada, essa linda, convocou o linchamento imediato e a gente conscientizada das redes sociais não deixou por menos. A comoção foi tanta, tantas declarações públicas de amor aos pobres, tantas vestes rasgadas, tanto repúdio àquela vagabunda sub-humana, que ela foi demitida. Amém! Que isso nos sirva de lição. Sabe o tipo de reserva e policiamento mental constantes que um político pratica em época de eleição, quando uma palavra mal pensada pode desagradar as parcelas mais medíocres e moralistas do eleitorado? Então, isso agora virou o mínimo exigido de todo mundo o tempo todo.

O comentário da pérfida professora não seria lido pela vítima – aliás, poucos fora de seu círculo o teriam visto, não fosse o linchamento virtual –, a vítima nem era pobre, e mesmo se fosse não teria sofrido nenhuma inconveniência. Da mesma forma, a desigualdade de renda do Brasil, a inclusão dos negros e o progresso da classe C continuam rigorosamente inalterados. O crime da professora foi um crime, nem digo de pensamento, mas de sentimento. Ela sentiu errado. Já a boa ação da Dilma Bolada e as boas intenções (sempre!) dos internautas resultaram num dano real: o fim de uma carreira. Seria o bem mais destrutivo que o mal?

(Não dá, obviamente, para eximir a administração da PUC. Há três cenários possíveis: se ela já queria demitir a professora e usou esse circo irrelevante como pretexto, foi desonesto, mas não fugiu do que as organizações sempre fazem. Se foi um ato servil de medo da opinião pública, é vergonhoso, mas ainda humano. Agora, se ela realmente considera que o esnobismo da professora é incompatível com o padrão ético da universidade, então... que Deus se apiede dessa católica instituição. Não sei o que é pior: que a proliferação dos códigos de ética e da consciência social seja apenas um golpe de marketing ou que as organizações os estejam levando a sério.)

O esnobismo está proscrito, não combina com o alto nível moral de nossos tempos. Mas o vício oposto a ele vai muito bem obrigado. Sim, há um sentimento oposto ao esnobismo: o refastelo na degradação. O orgulho da escória que dissolve a ordem estabelecida. Hordas bárbaras que destroem os símbolos do refinamento e da civilização (muito da qual depende do ímpeto esnobe - o conceito de "bárbaro" não surgiu à toa). Cagar nos cálices de ouro. Arruinar o programa alheio.

Isso, confesso, também me dá um certo prazer, o sentimento da desforra, o triunfalismo do “vamo invadir sua praia”, de finalmente entrar no clube que te rejeitava só para destruí-lo. Esse prazer é, moralmente, pior do que o do esnobismo. Este, afinal, visa preservar; aquele quer apenas destruir, mas para os democratas do espírito ele tem algo de admirável. Viva a farofa, o funk, o rolezinho e o crack! Se só poucos podem ter tudo, que todos não tenham nada, e a primeira parte é opcional.
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