Esnobismo é o sentimento de quem tem um bem
restrito a poucos, que o vê sendo invadido por uma classe recém-chegada
que o desvirtua e que tenta recolocar o invasor em seu lugar inferior. É patrimônio coletivo da espécie humana. Nobres esnobavam
burgueses; judeus, góis; dinheiro antigo, novos ricos; pessoal true, posers;
acadêmicos, divulgadores; populares, nerds; e nerds – que recentemente virou
motivo de orgulho – esnobam os nerd wannabes.
Há segmentos culturais inteiros dedicados à exclusão: o
hipsterismo, por exemplo. Se todo mundo conhecer a banda, a banda não é mais
tão legal assim; conhecer e gostar do que é de poucos é parte essencial do que
os define. Isso pode não ser lá muito admirável, mas é humano; o homem é um ser
hierárquico, quer se sobressair e ser admirado. E para isso é preciso manter os
outros em seu lugar.
Não são só os ricos que o fazem. Há o esnobismo da falta de
dinheiro (ou da aparência da falta de dinheiro), que esnoba os agentes da
gentrificação. O barzinho é descolado até chegarem os playboys. Essa versão
indireta, esse esnobismo de segunda ordem, gosta de se pintar como superior,
mas é igual a sua versão mais vulgar praticada por socialites e mauricinhos.
Talvez seja pior. Uma coisa é o vício ali por inteiro, aberto, direto ao ponto;
até inocente. Outra é o vício retorcido, disfarçado, indireto, que tenta dissimular
sua real natureza. Quanto mais refinada a mente (e por que negar que meio
intelectuais meio de esquerda sejam mais inteligentes que dondocas? Nosso igualitarismo
chega a isso?), maior a perversidade de que ela é capaz.
Nossos sentimentos e até nosso corpo incorporam certo
esnobismo, certa rejeição pelo que é mais popular. O salgado gorduroso num boteco
de favela junto ao córrego não é digno de nossa boca, embora os favelados o
adorem; idem para o copo d’água suspeito nas ruas de Nova Deli. Ainda que o
cérebro igualitário prevaleça, o intestino não será tão democrático.
A esnobada pode ser ofensiva, quando o alvo é um invasor
isolado que não sabe se adequar às normas implícitas da comunidade exclusiva;
ou pode ser defensiva, quando toda uma nova classe invade a comunidade, mudando
sua configuração. No primeiro caso, o motivo do gracejo é realmente evidenciar
a inferioridade do sujeito em algum aspecto: “Pfff, veste camiseta da banda mas
só conhece os hits”. No segundo, a esnobada pode nem derivar do desejo de
excluir o invasor, e reflete apenas a tristeza perante o desvirtuamento da
comunidade ou do item de consumo, agora vulgarizados. Ou vai dizer que você ama
o fato de os cinemas e TV a cabo só passarem filme dublado? Pra não falar do que virou o teatro... É o preço da inclusão social e
econômica. Podemos gostar dela mas lamentar alguns de seus efeitos, não? Aliás,
já repararam que nenhum requeijão presta mais?
Quando a professora Rosa Marina Meyer viu um proletário
esculachado no aeroporto, seus instintos esnobes apitaram e fez uma piadinha
nas redes sociais. Aquela monstra asquerosa. Seu esnobismo foi do tipo mais
inocente, mais puro. O passeio aeroviário, outrora marcado pela finesse e sofisticação, está a
metamorfosear-se em ambiente popularesco, com filas quilométricas, barulho,
cheiros mil, carne, gordura, pele e pelos à vista; daqui a pouco vão estender
varal e trazer marmita. São coisas que a mim não ofendem, mas que a
sensibilidade de uma senhora de classe média alta não tolera bem; e quem poderá
condená-la se ela ainda por cima leva tudo com bom humor?
No final das contas o esculachado era mais rico que ela, o
que indica que o problema era antes com seus modos que com sua renda. Um pobre
arrumadinho não causaria o desgosto desse rico esculhambado. Mal sabia ela,
contudo, que esse pecadilho, esse ato comum e partilhado por toda a humanidade
de variadas formas, é o novo pecado contra o Espírito Santo; nem Deus pode
perdoá-lo. Ao saber do comentário, o twitter da Dilma Bolada, essa linda,
convocou o linchamento imediato e a gente conscientizada das redes sociais não
deixou por menos. A comoção foi tanta, tantas declarações públicas de amor aos
pobres, tantas vestes rasgadas, tanto repúdio àquela vagabunda sub-humana, que ela
foi demitida. Amém! Que isso nos sirva de lição. Sabe o tipo de reserva e
policiamento mental constantes que um político pratica em época de eleição, quando
uma palavra mal pensada pode desagradar as parcelas mais medíocres e moralistas
do eleitorado? Então, isso agora virou o mínimo exigido de todo mundo o tempo
todo.
O comentário da pérfida professora não seria lido pela
vítima – aliás, poucos fora de seu círculo o teriam visto, não fosse o linchamento
virtual –, a vítima nem era pobre, e mesmo se fosse não teria sofrido nenhuma
inconveniência. Da mesma forma, a desigualdade de renda do Brasil, a inclusão
dos negros e o progresso da classe C continuam rigorosamente inalterados. O
crime da professora foi um crime, nem digo de pensamento, mas de
sentimento. Ela sentiu errado. Já a
boa ação da Dilma Bolada e as boas intenções (sempre!) dos internautas resultaram
num dano real: o fim de uma carreira. Seria o bem mais destrutivo que o mal?
(Não dá, obviamente, para eximir a administração da PUC. Há três cenários
possíveis: se ela já queria demitir a professora e usou esse circo irrelevante
como pretexto, foi desonesto, mas não fugiu do que as organizações sempre fazem.
Se foi um ato servil de medo da opinião pública, é vergonhoso, mas ainda
humano. Agora, se ela realmente considera que o esnobismo da professora é
incompatível com o padrão ético da universidade, então... que Deus se apiede dessa
católica instituição. Não sei o que é pior: que a proliferação dos códigos de ética
e da consciência social seja apenas um golpe de marketing ou que as
organizações os estejam levando a sério.)
O esnobismo está proscrito, não combina com o alto nível
moral de nossos tempos. Mas o vício oposto a ele vai muito bem obrigado. Sim, há
um sentimento oposto ao esnobismo: o refastelo na degradação. O orgulho da
escória que dissolve a ordem estabelecida. Hordas bárbaras que destroem os símbolos
do refinamento e da civilização (muito da qual depende do ímpeto esnobe - o conceito de "bárbaro" não surgiu à toa). Cagar nos cálices de ouro. Arruinar o programa alheio.
Isso, confesso, também me dá um certo prazer, o sentimento
da desforra, o triunfalismo do “vamo invadir sua praia”, de finalmente entrar
no clube que te rejeitava só para destruí-lo. Esse prazer é, moralmente, pior do que o do esnobismo. Este,
afinal, visa preservar; aquele quer apenas destruir, mas para os democratas do espírito ele tem algo de admirável. Viva a farofa, o funk, o
rolezinho e o crack! Se só poucos podem ter tudo, que todos não tenham nada, e
a primeira parte é opcional.