Agora que meu
mestrado entrou na fase ou vai ou racha,
em que um ano e meio de leituras tem de começar a transformar-se em texto,
achei que era também a hora certa para reler a obra literária de Dostoiévski. É
claro que estou continuamente consultando seus romances e contos, mas uma
leitura integral e minuciosa da literatura dostoievskiana como sistema é algo
que demanda um esforço paralelo à minha pesquisa em si, que é mais sobre
história cultural da Rússia.
Pois bem, tenho
empreendido essa integral e minuciosa leitura. Confesso que às vezes, por mera curiosidade dir-se-ia psicológica, gostaria de voltar ao
ponto em que me era possível defrontar ingenuamente um romance de
Dostoiévski. Por exemplo, voltar à percepção que tinha quando li pela primeira
vez Crime e Castigo e fiquei confusa
quando, no fim do livro, Raskólnikov não
se arrepende explicitamente de seu crime. Lembro de almoçar com a Day Teixeira no bandejão da USP e discutir – quase brigar – por causa disso. Era
estranho, não fazia muito sentido, mas estava escrito lá: entre um êxtase
religioso e outro, o protagonista do livro declarava não se arrepender de seu
crime.
Para completar,
recentemente tive o privilégio mórbido de assistir a uma palestra do tradutor
Paulo Bezerra em que ele, peito estufado de orgulho, declarava: Raskólnikov não
se arrepende! O crime foi um experimento social. Dostoiévski foi, até o fim da
vida, um homem de cosmovisão socialista, se bem que perto da morte tenha
deixado seu socialismo tingir-se de um certo
matiz cristão.
Ao ouvir tal
fala especializada, pude distinguir
nitidamente onde e como o tradutor distorcia as ideias e a biografia de
Dostoiévski, mas ao mesmo tempo havia em minha memória a impressão daquela primeira
e já longínqua leitura de Crime e Castigo:
de fato, parece que Raskólnikov não se arrepende...
Foi nesse
momento que percebi que já estava na hora de parar de ler interpretações da
obra de Dostoiévski e copiosas histórias da Rússia e fazer, por obrigação,
aquilo de que mais gosto: enfrentar os romances, agora desde um ponto de vista abalizado. Alguns deles eu já relera e
treslera, mas curiosamente Crime e
Castigo ficara relegado àquela primeira leitura pueril, talvez por ser
muito comentado pela crítica, o que cria a ilusão de que você conhece bem o
romance só de ouvir falar tanto nele.
Durante a
releitura, fui pensando numa possível justificativa para a frase que encontraria
forçosamente no Epílogo – ele não se
arrependia de seu crime. Pus-me a pensar sobre o pessimismo (ou “realismo
superior”) de Dostoiévski, em como ele mostra as consequências funestas de certas
ideias, elevando-as a sua máxima força e sugerindo, em geral sutil e prolixamente,
que o leitor dê a seu destino um rumo diverso daquele representado em seus
romances. O príncipe Míchkin é esmagado pelo mundo em O Idiota, Piotr Vierkhoviênski escapa no fim de Os Demônios... Ora, não seria tão
absurdo assim Raskólnikov terminar Crime
e Castigo ainda infectado pelo “drama da razão”. O que importa – pensava eu
– é o leitor compreender que ele deveria arrepender-se,
e nesse sentido a figura de Sônia se impõe majestosamente ao longo de todo o
romance.
Seguindo essa
linha de raciocínio, cheguei ao Epílogo do livro. E qual não foi minha surpresa
ao descobrir que Dostoiévski não é nem tão críptico, nem tão enviesado quanto
sonha nossa vã leitura ingênua! Eis o que nos diz, leitor, o Epílogo de Crime e Castigo (considerarei que meu
interlocutor conhece o enredo e as personagens, pois explicá-lo complicaria o
meio de campo aqui):
Após muito
agastar-se e adoecer, às voltas com a consciência de seu crime, Raskólnikov entrega-se
à polícia, é condenado e mandado aos trabalhos forçados na Sibéria. Sônia (a
personagem positiva do livro; o puro espírito cristão) o acompanha. Podemos
dividir o Epílogo em dois momentos diversos e antagônicos: o primeiro é mera
continuação da porção precedente do livro e nele Raskólnikov mantém a mesma atitude soberba
e altiva de antes; não reconhece seu crime; despreza Sônia; não consegue
relacionar-se com os colegas de prisão (em outras palavras, com o povo russo). Esses são os elementos para
os quais devemos olhar se quisermos entender a visão de Dostoiévski sobre seus
personagens. Quando ele quiser nos comunicar a transformação espiritual de seu
protagonista, usará essas mesmas senhas. Todos esses elementos (a relação com o
que Sônia representa e com o povo russo) são passíveis de análise a partir do
Epílogo, mas por questão de foco nos detenhamos apenas no problema do crime.
No primeiro
momento, nos diz o narrador:
Sofrimentos e lágrimas – ora, isso também é vida. Mas
ele não se arrependia de seu crime. Ele poderia ao menos enfurecer-se com sua
tolice, como antes se enfurecera com os seus atos vis e mais tolos, que o
levaram à prisão. Mas agora, já na prisão, em
liberdade, mais uma vez analisou e ponderou todos os seus atos pregressos e
de maneira alguma os achou tão tolos e vis como lhe pareciam antes, naquele
período fatal.
“E por que meu ato lhes parece tão vil? – dizia de si
para si. – Por ter sido uma perversidade? O que quer dizer a palavra ‘perversidade’?
Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometido um crime comum; é
claro que foi violada a letra da lei e derramado sangue, mas tome a minha
cabeça por letra da lei... e basta! Claro, neste caso até muitos benfeitores da
humanidade, que não herdaram mas tomaram o poder, deveriam ser executados ao
darem os seus primeiros passos. No entanto, aqueles homens aguentaram os seus
passos e por isso estavam certos, mas
eu não aguentei e, portanto, não tinha o direito de me permitir esse passo.”
Eis em que ele não reconhecia o seu crime: apenas no
fato de não o ter aguentado e ter confessado a culpa. (p. 554, ed. 34, 2008. Grifos do autor.)
Aparentemente, o
tradutor Paulo Bezerra só leu Crime e
Castigo até aqui. É muito curioso pensar no peso que têm essas palavras sobre a
percepção do leitor. Já disse que eu também me deixei enredar por elas anos
atrás. São palavras claras demais e talvez ganhem realce diante da sutileza do que vem depois. É um efeito
análogo ao que acontece em Os Irmãos
Karamázov: os capítulos que se ocupam da revolta metafísica de Ivan Karamázov
eclipsam os que vêm depois, os quais, segundo desejava Dostoiévski, deveriam
ser “uma refutação triunfal” dos raciocínios de Ivan. Digo eclipsam aos olhos
da crítica: basta comparar a quantidade de análises sobre “O Grande Inquisidor”
com o quão pouco se escreveu sobre o Livro VI dos Karamázov, que contém a filosofia do stárietz Zossima, a qual coincide com a do próprio Dostoiévski. De
fato, não é injusto dizer que o gênio do romancista produz seus mais instigantes frutos
quando representa sua – por assim dizer – filosofia negativa; a expressão de
suas ideias positivas costuma resultar utópica e um tanto piegas (notem que me
refiro à expressão).
Mas voltemos a Crime e Castigo. Imediatamente após o
trecho citado acima, o narrador descreve a reflexão de Raskólnikov sobre o ímpeto suicida que teve antes de entregar-se à polícia, enquanto sofria
esmagado entre o sentimento de culpa
e a convicção da plausibilidade de
seu crime:
Ele sofria também ao pensar: por que não se matara naquele momento?
Por que ficou parado acima do rio e preferiu confessar a culpa? Será que existe
tamanha força nesse desejo de viver e é tão difícil superá-lo? (Idem.)
E então se segue
o turning point, o parágrafo no qual
o narrador nos indica que o presente estado mental e espiritual de Raskólnikov
não é definitivo, não representa o estado do herói com que o romancista conclui
a narrativa:
Ele se fazia essa pergunta atormentado, e não conseguia entender
que, naquele momento em que estava sobre
o rio, talvez pressentisse uma profunda mentira no seu íntimo e em suas
convicções. Não compreendia que aquele pressentimento pudesse ser o
prenúncio da futura transformação em sua vida, de sua futura ressurreição, da
sua futura concepção nova de vida. (Idem. Grifo meu.)
Assim em
destaque esse parágrafo é claro demais, mas é impressionante como certas
leituras (como a de Paulo Bezerra e tantos outros; procurem o livro Crime and Punishment and the Critics)
conseguem fazê-lo passar despercebido. O que esse parágrafo diz? Que
Raskólnikov não se matou porque, no fundo, reconhecia o valor da vida e, mais
ainda, no contexto geral do livro, indica que ele sabia que a condição de assassino o aferrava à existência, pois era
preciso expiar o sangue derramado. Trata-se
do mesmo instinto que o faz entrar na delegacia e confessar o crime, mesmo que
ao longo de todo o caminho ele se perguntasse por que deveria confessar e não conseguisse
chegar, racionalmente, a uma conclusão. Aqui é preciso repetir aquilo que vem
dito na orelha de qualquer edição de Crime
e Castigo: Raskólnikov é um nome derivado de raskól, palavra russa que significa “cisma”; é o indivíduo cindido
entre convicções intelectuais e instinto moral – desenvolvimento de Bazárov,
protagonista de Pais e Filhos, de
Turguêniev.
Portanto, a tão
temida (ou venerada) frase “ele não se arrependia de seu crime” está longe de
ser a palavra final de Crime e Castigo.
O Epílogo continua e nos mostra a lenta progressão espiritual de Raskólnikov.
Sua transformação é precipitada pela figura de Sônia. Habituado a desprezá-la e
a receber com desdém o amor e os cuidados abnegados dela, ele se surpreende com
saudades quando por vários dias ela não o visita, pois ficara doente. Quando os
dois se reencontram, dá-se a cena de seu verdadeiro encontro – Raskólnikov percebe que a ama e enfim consegue receber o
amor dela. Porém tenhamos em mente que Sônia, no âmbito do romance, não é
qualquer mulher – é o puro amor cristão. A partir do momento em que se une a
ela, Raskólnikov retorna a suas “origens”, ao contato com o solo russo, com o
Cristo russo. (Seria complicado explicar aqui a parte da filosofia de
Dostoiévski que diz respeito ao povo e ao solo russo; contentemo-nos com a “infecção”
de Raskólnikov pelo amor cristão.) Tanto é assim que, no mesmo dia em que se
entrega espiritualmente a Sônia, sua relação com os colegas de prisão
transforma-se:
Na noite do mesmo dia, quando o quartel já estava fechado,
Raskólnikov, deitado na tarimba, pensava nela [Sônia]. Nesse dia até lhe
pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o olhavam de modo
diferente. Ele mesmo começou a conversar com eles, e lhe respondiam de modo
carinhoso. Agora ele se lembrava disso com esforço, mas era assim que devia
ser: acaso tudo não devia mudar agora? (p. 559)
Por fim, o
crime. O que pensa Raskólnikov sobre seu crime, agora que foi transformado?
Tudo, até o crime dele, até a condenação e o exílio, agora, no
primeiro impulso, pareciam-lhe algum fato externo, estranho, até como se não
tivesse acontecido com ele. Aliás, nessa noite ele não conseguia pensar de
forma demorada e constante em nada, concentrar o pensamento em nada; demais, agora ele não resolveria nada de
modo consciente; apenas sentia. A dialética dera lugar à vida, e na
consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente. (Idem. Grifo meu.)
Raskólnikov já
não é o indivíduo cindido. Ele abandona o racionalismo – a racionalidade
alijada da vida, da experiência concreta. Uma vez que já entregou-se ao castigo
e aceitou a cruz, está livre da obsessão pelo crime que cometeu.
O romance não
poderia terminar de modo mais significativo: Raskólnikov abre o Evangelho, de
que até então apenas escarnecera. Mas, pensando em Sônia, para quem aquele era
o único livro sobre a terra, ele pergunta-se: “Será que agora as convicções
dela podem não ser também as minhas convicções? Os seus sentimentos, as suas
aspirações, ao menos...”(p. 561; última página do romance) Lembremos que Sônia é o indivíduo que, diante
da confissão de assassino de Raskólnikov, dissera-lhe: “Vai agora, neste
instante, pára em um cruzamento, inclina-te, beija a terra, que tu profanaste,
e depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que
quiseres, e diz a todos, em voz alta: ‘Eu matei!’” (p. 428)
As convicções de Sônia agora são também as de Raskólnikov. Este é o livro
que Dostoiévski escreveu, a despeito do wishful thinking do tradutor Paulo Bezerra.